sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Sobre esquinas e manhãs seguintes


Tenho por hábito, vez em quando, fazer leituras aleatórias num mesmo livro. Abrir uma página qualquer e a partir de um ponto qualquer começar uma leitura desprovida de métodos "canonizados". Qualquer livro. É uma dessas atitudes necessárias para manter a saúde mental, sobretudo quando a palavra impressa está em jogo. Fico vagando pelos parágrafos a procura de algo que me fixe por mais tempo. A leitura pode durar uma manhã ou terminar na primeira frase. Divertido; divertido profanar palavras alheias. Os que me lêem agora, à vontade.
"... sem algum outro lugar além de um número específico de próximas esquinas e manhãs seguintes, não há e não pode haver humanidade".
Essa frase surgiu numa destas viagens de profanação. É de Zygmunt Bauman, escrita num livro que ainda não li (pelo menos com método "canonizado"). Engraçado, sempre ele. Uma das coisas a que me proponho mudar em 2011 é abrir espaço para outros "pensamentos". Não que eu vá dispensá-lo; Bauman é, para mim, uma dessas figuras carismáticas cujo pensamento vem carregado de sabedoria. Suas abstrações estão bem aqui ao lado. E isso me conforta: saber que pensar é também agir. As palavras em Bauman têm vida porque as vemos todos os dias nas ruas. Ele não é o único com esta capacidade, claro. É só uma questão de escolha; no atual contexto, aleatória.

Digressões, digressões...

Fiquei imaginando a que outro lugar Bauman poderia estar se referindo. Só consigo ver um número específico de próximas esquinas e manhãs seguintes. Até pensei em usar o método "canonizado" de leitura para tentar entendê-lo. Desisti! Preciso achar este outro lugar sem a ajuda divina. Esse compromisso assumi há algum tempo. Os orientais entendem que todo o caminho para a salvação é errático e precisa ser trilhado sozinho. Não há salvação fora dos passos que escolhemos. É neles que está a resposta. E Bauman me vem com esse tal outro lugar.

Os movimentos contemporâneos são estranhos: troca-se, quase sempre, o benefício da dúvida pelas certezas. Nossos lugares de ocupação são mais fixos e rigorosos do que nunca. As responsabilidades inerentes a esses lugares resumem-se a promover espasmos periódicos. Regurgitam-se velhos conceitos sem, essencialmente, mudar o rumo das prosas. As esquinas e manhãs seguintes são rigorosamente iguais não importa quantas vezes passamos por seus espasmos. Será esse o sentido que Bauman quis dar a esse tal outro lugar?

Não importa! Se a leitura é aleatória, posso usar a ideia para expressar o que penso. Esse outro lugar precisa ser ali adiante; ali onde não há esquinas pré-fabricadas com soluções postas em prateleiras para consumo; ali onde as manhãs seguintes não respondem a cronologias, são manhãs kairológicas, daquelas que fazem sentido não importa a que tempo nem quantos a viveram num dado momento. Esse outro lugar está no vazio das ações não instituídas, das atitudes desprovidas de legitimidade. Está no fardo que a história impõe à paciência.

Enxergar em 2011 uma cara de outro lugar é um desafio e tanto. É preciso fazer, para isso, que suas manhãs seguintes não sejam devoradas pelo Deus Chronos e suas próximas esquinas estruturem-se pelo potencial de situação a cada instante. O vazio é sempre o lugar que não ocupamos; por que então ocupar sempre o mesmo lugar? Não perguntem a Bauman. Ele já tem suas respostas. Perguntem a si mesmos sempre que tiverem oportunidade.

domingo, 21 de novembro de 2010

Educação e Ciência, a especialidade e as faces das coisas

O especialista que conhece um único tema a fundo e esquece o resto do mundo vai ser gradativamente substituído pelo jovem que não se contenta em enxergar apenas uma face das coisas.
Renata Spers, pesquisadora do Programa de Estudos do Futuro da Fundação Instituto de Administração da USP, refere-se ao mundo do trabalho num futuro próximo. Significa dizer que uma só pessoa terá de transitar por áreas distintas no que tange à formação para dar conta de assumir as responsabilidades inerentes a esse cenário, de hierarquias flexíveis e redes de produção. Entende-se que as empresas não serão mais caracterizadas por grandes corporações, mas por organizações modulares e interligadas por processos produtivos disponíveis circunstancialmente em projetos comuns.

Neste ambiente, os "profissionais" serão reconhecidos pela multiplicidade de competências desenvolvidas concomitantemente às atividades produtivas, pelo uso da informatização para agilizar a produção e evitar deslocamentos desnecessários, e pela preocupação com a saúde e com o meio ambiente. A inquietude será uma necessidade, na medida em que os salários estarão associados a serviços prestados e não ao tempo dedicado ao trabalho, o emprego será um termo em desuso, a aposentadoria estará fora de moda e as escolhas profissionais não estarão associadas apenas ao retorno financeiro. Os locais de trabalho serão tão fluidos quanto os processos de produção e as decisões relativas a esses processos, descentralizadas.

Há muito mais a prospectar. Diriam os mais céticos, a sofismar. Por mais absurdas que pareçam as questões aqui apontadas, todas estão sendo estudadas, submetidas ao método científico de tese e antítese. Admita-se a possibilidade de os argumentos não conferirem totalmente com o futuro que se avizinha. Entretanto, pensar no que será é reconhecer o que já é. Não há adivinhações. O mundo do trabalho parcamente sinalizado aqui já pode ser visto em desenvolvimento. As novas gerações irão se encarregar de efetivá-lo. Com mais ou menos grau de pertinência quanto a itinerários específicos, o cenário será bem parecido com o que descrevemos. A não ser que enxerguemos outras faces.

As faces das coisas
Ressalvas sejam feitas: as tendências no mundo do trabalho trazem argumentos sempre focados na dinâmica dos negócios e das relações de produção. A visão costuma ser redutora, uma vez que o contexto sociocultural não é considerado em suas dimensões. O cenário prospectado associa-se a um possível disponível. Revelado sob a face das relações de produção, o futuro do trabalho é "projetado" em cima das referências que constituem os ativos da economia. Dizendo de outro modo: as lógicas que determinam os modelos de negócio, que modelam os processos produtivos e seus resultados só entram em questão quando não põem em crise os fluxos já estabelecidos.

As faces das coisas carecem de curiosidade, de inquietude. Não há feições prontas; elas expressam o que somos capazes de criar, de mobilizar. Em termos científicos, a prospecção de cenários tem por base a análise de variáveis cuja combinação permite aferições de possibilidade. Os estudos neste campo levam em conta as lógicas presentes na construção das variáveis até o momento da análise, mas raramente propõem variáveis estruturantes de outros possíveis disponíveis. Sendo assim, os modelos econômicos que regem as bases sobre as quais se apontam as tendências são, considera-se, invariantes.

Trazendo o tema para o mundo acadêmico, as similaridades de prospecção estarrecem. As lógicas da estrutura acadêmica, por exemplo, inscrevem-se numa tradição disciplinar sobre as quais os ativos do conhecimento ganham valor. Em termos econômicos, a titulação é mais importante que o conhecimento; por outra, a titulação é o atestado do conhecimento. Sem generalizações, o fato é que esta lógica valoriza a especialidade pelo aprofundamento de saberes num reduzido campo do conhecimento humano. É de se pensar se o problema talvez não esteja na organização do processo de construção do conhecimento.


Em setembro de 2009, a UnB promoveu durante a IX Semana de Extensão, o seminário Reflexos sobre os desafios da universidade no mundo globalizado e na sociedade do conhecimento. Professor Emérito da UNICAMP, o matemático Ubiratan D'Ambrosio fala sobre o método disciplinar e os problemas de interpretação decorrentes em relação às estruturas. Seu questionamento final, a respeito de como superar as "gaiolas" disciplinares, nos oferece possibilidades de caminhos e perspectivas.

Superar as disciplinas?
Disciplinas escolares são hoje confundidas com disciplinas científicas. Os modelos de organização curricular decorrentes desta lógica privilegiam os conteúdos considerados essenciais para o aprendizado em função de recortes, digamos, arbitrários. É pelo professor que se estrutura o conhecimento. Mas a Ciência não se fragmentou em disciplinas para subdividir categorias de conteúdos. As disciplinas científicas organizam-se em função de objetos e métodos comuns, identificam as faces das coisas que as ilustram; não determinam o que delas se deve apreender nem em que fase da vida.

Sendo assim, a organização da aprendizagem por disciplinas científicas não pressupõe uma estrutura de conteúdos recortados por si mesmos, sem objetivos relacionados aos contextos da aprendizagem. O sentido praxeomórfico desse dilema está no uso momentâneo dos conteúdos para instrumentos de aferição quanto ao que se pôde guardar na memória num dado espaço de tempo. Os avanços quanto aos processos de ensino e aprendizagem, até agora, não provocaram transformações significativas no modo como tendemos a fazer as coisas e como as fazemos costumeiramente.

Não há o que superar quanto aos sistemas de organização do conhecimento propostos pela Ciência. Pelo menos no que diz respeito aos processos de aprendizagem. A Ciência não é o aprendizado. Seus conhecimentos são, no máximo, recursos para a aprendizagem. É a organização curricular que deve estimular a mobilização dos recursos oferecidos pela Ciência em função de ações que nos levem aos possíveis disponíveis num dado momento de nossa vida. E para que tenhamos acesso aos recursos da Ciência, seu sistema de classificação por disciplina dá conta.

Os especialistas em educação alertam há tempos sobre o problema da fragmentação disciplinar. Contudo, a face desse problema ainda é a Ciência e seus métodos. Com franqueza, não há como nem porque depositar sobre os ombros de uma forma de conhecimento toda a culpa pela inoperância do sistema educacional. Curiosidade e inquietude também se ensinam. As disciplinas escolares viraram um porto seguro para os que "conhecem um único tema a fundo". Talvez por isso os jovens estejam buscando outras formas de "enxergar as faces das coisas". Eles estão mais sintonizados com o presente e, portanto, com o devir.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Convergência de recursos e os possíveis disponíveis para o Jornalismo

Pedro Kuhnen (foto), da RBS de Florianópolis, falava na "Noite de Comunicação" sobre as potencialidades do twitter para o Jornalismo. Conversa informal, puxada a partir de ideias levantadas por trabalho monográfico em que ele, Pedro, é fonte de entrevista. Falávamos sobre a possibilidade de os posts no twitter servirem de pauta para os jornalistas e de "manchete" para notícias personalizadas, encontradas nos diversos pontos da rede e socializadas em função de interesses e escolhas individuais. Não houve tempo para aprofundamento. A conversa foi rápida mas inspiradora. Tentemos estendê-la.

Na sociedade contemporânea, já dissemos, o lugar do Jornalismo pede novos espaçamentos cognitivos, estéticos e ético-morais. O que isso significa? Alertam os especialistas que formataram a proposta para as novas diretrizes curriculares em debate: os valores democráticos na atualidade fundamentam-se pelas "armas da linguagem" e através dos "suportes tecnológicos". E é pelo Jornalismo, dizem, que os sujeitos agem discursivamente no e sobre o mundo. Neste sentido, cumpre à atividade assumir "uma linguagem narrativa e uma eficácia argumentativa" no espaço público. Até aqui, nada de novo. Não há outros possíveis disponíveis.

Novos espaçamentos cognitivos, no entanto, situam o Jornalismo como ação mediadora num contexto hoje inusitado. Professores da Universidade de Columbia já falam em formar gestores de comunidades sociais. A concepção aponta para a possibilidade de um exercício intelectual de interpretação do mundo dentro das próprias redes. Uma ação para além de capacidades discursivas, portanto. Jornalistas passarão a ser também os meios, não só arautos de mensagens informativas. Nessa perspectiva, as redes sociais são entendidas como "grande manancial do conhecimento" e a produção de notícias tende a ser mais colaborativa. Jornalistas são percebidos como "curadores de notícias", aglutinadores de informações.

"Mídias interativas" têm sido ferramenta para simulações de aprendizagem nas mais diversas áreas. Também no Jornalismo. Jogos eletrônicos baseados em conflitos mundiais adotam a atividade jornalística como mote; um reforço à ideia de que os valores democráticos necessitam de "guardiões". O importante, contudo, é que estes jogos inscrevem o exercício intelectual de interpretação do mundo na capacidade de mobilização de recursos para a produção de textos sobre temáticas específicas. Não a circunscrevem, portanto, à simples capacidade discursiva.

Diante de um quadro cujas possibilidades ganham exponencial abertura, os espaçamentos estéticos modificam-se de maneira relevante. Fala-se muito hoje em convergência. Os argumentos dão ênfase às mídias, aos modelos econômicos sobre os quais as informações são produzidas e através das quais circulam; reforçam também a circularidade discursiva a respeito dos "fenômenos" midiatizados numa espiral que recria aspectos do cotidiano e inspira interpretações descontextualizadas, afastadas da origem. A concepção de convergência, portanto, diz respeito aos meios expressivos em razão dos meios econômicos.

Novas formas de expressão surgem de habilidades relacionadas à convergência de 
recursos. O ofício jornalístico também merece atenção quanto à sua arte expressiva.

Há outras formas de perceber a convergência para além da miopia a serviço de uma economia que congrega entretenimento, informação e publicidade. Jornalistas têm à disposição ferramentas que reúnem todos os recursos técnicos necessários para, minimamente, exercer a atividade. Não apenas no que tange à produção, mas também quanto à veiculação de informações consideradas relevantes. Essa convergência de recursos talvez seja mais importante que a aglutinação de meios expressivos. Isso porque inverte a lógica do processo: da concentração de meios em relação a diversidade de recursos para a concentração de recursos em relação a diversidade de meios. Julgam alguns estudiosos que as notícias serão personalizadas no futuro; reconheçamos, não tão distante assim.

Espaçamentos ético-morais merecem também reavaliação. Informações instantâneas não nos chegam mais ao vivo; elas estão online. Essa característica é significativa uma vez que tais informações compõem uma espécie de inteligência coletiva, estão organizadas numa prótese de memória sempre disponível quando necessária; não são mais fugazes, não se perdem no tempo. A instantaneidade não pode, contudo, ser relacionada simplesmente aos discursos imediatos sobre acontecimentos, no caso do Jornalismo. Estar online é também estar nesse mundo instantâneo, é também fazer parte dele num contexto político de defesa dos valores democráticos.

Vamos esclarecer: a defesa dos valores democráticos aqui não é simplesmente assumir um discurso de contrapoderes. Se as redes sociais são a bola da vez e a convergência de recursos abre caminho para múltiplos canais de mercado e modos de produção, os valores democráticos inscrevem-se na comunicação como locus de produção cultural, de relações sociais e de desenvolvimento humano. Não haverá mais espaço para meros prestadores de serviço e construtores de discurso preocupados em mediar fontes. O exercício intelectual neste contexto não comporta mais estereótipos baseados num suposto poder de autoridade e legitimidade quanto aos dizeres sobre o mundo.

Se o Jornalismo se pretende professoral, no sentido de ter no cerne de sua atividade "habilidades pedagógicas na prestação de serviços públicos", como afirmam as novas diretrizes em debate; se o Jornalismo precisa assumir a defesa da cidadania pelo viés do esclarecimento, colocando-se como fiscal dos direitos alheios; se o Jornalismo ainda põe-se a "intermediar" influências, pode-se esperar que procure fazê-lo ajudando a criar canais de comunicação e não apenas assumindo discursos esterotipados sobre os possíveis disponíveis à sociedade. O uso do twitter, tema do início de nossa conversa, é um mero detalhe.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ser professor

O termo Ensino não é sinônimo de Educação. Tampouco complemento.
Ensinar é atividade educativa; mas educar não é apenas ensinar.
Educar é também conviver; dividir as complexidades do mundo.
Por divisão entenda-se generosidade de troca.
Educar é também criar; gerar oportunidades de descoberta.
Por descobrir estamos a todo o momento.
Professor é, antes de tudo, educador. É amante de descobertas.
Descobre-se, ele mesmo, na imensidão das incertezas.
Ao orientar-se, orienta; ao experimentar-se, experimenta;
ao aprender, ensina que o caminho para a aprendizagem é próprio.
Professor é, antes de mais nada, um estado permanente do educar.
Em si mesmo, transborda; não cabe em um único ser.
É um ser coletivo, que abarca. Funda-se no princípio do desconhecido.
Sabe que o ato de conhecer é fluido, circunstancial, tem prazo de validade.
Por isso mesmo está em permanente processo. Ele está em ser.
Ser professor é dividir-se enquanto indivíduo e ser com os outros o que não se pode ser sozinho.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Diretrizes curriculares: por uma economia da cultura jornalística

Sexta-feira (08/10) nova audiência pública deu continuidade ao debate sobre as diretrizes curriculares para os cursos de Jornalismo propostas por uma comissão de especialistas em documento entregue ao Ministério da Educação há cerca de um ano. Uma suspeita continua em aberto: o Jornalismo não tem pensado a economia de sua própria cultura. As referências expostas no documento não representam avanço em termos de itinerários formativos nem ocupacionais; reproduzem os ideários curriculares das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e reforçam lugares de ocupação pouco flexíveis enquanto campo de atuação.

O que é pensar a economia de sua própria cultura? É importante salientar que a formação em Jornalismo sugere a necessidade de reflexão sobre novos modelos de produção e canais de mercado. A tradição curricular orienta itinerários que reconhecem lugares de ocupação dados a priori; quando muito, institui o empreendedorismo como atenuante para uma formação que se proponha autônoma em termos salariais. Outro aspecto tido como significativo para o salto qualitativo na formação diz respeito à preparação para a convergência de mídias e seus impactos técnico-tecnológicos. Os currículos mais "avançados" não se alicerçam mais sobre os meios impressos. É pouco! Quase nada, falando sinceramente.

Ora, os argumentos não são ruins; o problema reside na própria ideia de reforma. Como transformar contextos se as bases que delineiam as fronteiras ainda reconhecidas como legítimas não se abrem aos movimentos em sociedade? O ensino superior brasileiro conforma-se como excessivamente conteudista, trata a pesquisa fora dos processos de aprendizagem e não ocupa um lugar de protagonismo no desenvolvimento de propostas que aproximem as pessoas de uma vida sustentável para todos. Se o Jornalismo é uma “forma” de conhecimento, como reconhece o relatório da comissão de especialistas, cultivá-lo só tem sentido quando seus saberes confundem-se com os saberes cotidianos.

Enquanto documentos de identidade, os currículos de Jornalismo ainda tratam formas de conhecimento como formas de esclarecimento. Ao propor o “manejo competente das habilidades pedagógicas na prestação de serviço público”, as novas diretrizes em debate não superam a visão burguesa de Jornalismo como instrumento “para que os cidadãos possam tomar decisões conscientes e responsáveis” (p.6). Sendo assim, para que não haja tutela do poder instituído sobre a vida dos cidadãos, o Jornalismo precisa tutelá-los na esfera do contrapoder denominado “espaço público”.

Para pensar uma economia da cultura jornalística, não tratemos as diretrizes como equívocos. Elas não o são. Na verdade, são escolhas. E escolhas sustentadas pelo senso comum do movimento educacional brasileiro, alinhado com certas visões corporativas do mundo do trabalho. Nas ideias aqui expostas está o entendimento de que o lugar de ocupação para o Jornalismo na sociedade contemporânea pede novos espaçamentos cognitivos, estéticos e ético-morais no processo de formação de seus "atores"; e isso exige a relativização das fronteiras que designam os lugares de ocupação na estrutura das instituições de ensino e no mercado de trabalho. Ou por outra, tais fronteiras são o espaço em que se inscrevem os itinerários formativos.

Novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Jornalismo

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O não lugar da instituição de ensino nos índices de desempenho educacional

Novo relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) confirma um baixíssimo índice de concluintes no sistema educacional de nível superior brasileiro, em que pesem os investimentos estatais. Apenas 11% da população com idade entre 25 e 34 anos concluem o ensino superior. É certo que ainda estamos avaliando informações de 2007, que houve no Brasil um crescimento considerável nos gastos com educação neste nível de aprendizagem ainda sem resultados mensuráveis, e que tais estatísticas são lidas, grosso modo, como critérios de ranqueamento entre os países; para ficarmos com três argumentos suficientemente fortes quanto às consequências de análises decorrentes. Tentemos, então, ampliar um pouco o espectro.

Algumas Instituições de Ensino Superior que dependem de mensalidade têm optado por uma fórmula bem simples para aliviar o déficit financeiro: salas de aula e laboratórios cheios, menos professores e mensalidades mais baratas somam-se para garantir sobrevivência. O público-alvo são as "classes emergentes", com mais poder de compra em função da estabilidade econômica no país e ainda longe das possibilidades de acesso ao disputadíssimo sistema educacional financiado pelo Estado (talvez por isso uma "classe" pouco inclinada a resistências). A fórmula é controversa, claro. E o debate gira sempre em torno da antinomia "preço x qualidade", sustenta-se na perspectiva do ensino e não da aprendizagem, apela para o viés conteudista do processo e não para a formação.

Falta-nos ainda abrir a perspectiva para um debate mais preocupado com as possibilidades de reconhecer processos de aprendizagem e com a valorização de saberes. É fato que salas de aula cheias não são de todo prejudiciais, assim como o ensino a distância não pode ser execrado simplesmente por prescindir da "presencialidade". O problema está, justamente, em associarmos estas estratégias exclusivamente a modelos de negócio. É para uma solução econômico-financeira que adotamos tais procedimentos. Portanto, pensada como modelo de negócios, a superlotação dos ambientes de aprendizagem vira praxe, sustenta as regras de conduta e os programas de ensino.

Falta desempenho, sobra rigidez
Ampliemos um pouquinho mais o espectro: a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, que traz dados de 2009, mostra um Brasil com duas vezes mais analfabetos que universitários. Segundo a PNAD, 7,3% da população brasileira é analfabeta e apenas 3,4% dela está no sistema educacional de nível superior (considerando também a pós-graduação). Percentuais tão extremos reforçam o excessivo afunilamento do sistema educacional. Cerca de 85% dos alunos do ensino fundamental e médio estudam em escolas financiadas pelo Estado; no ensino superior, os percentuais se invertem. O mais interessante é que as chances de ingresso no ensino superior financiado pelo Estado são maiores justamente para a minoria que cursa o ensino fundamental e médio em instituições privadas.

O tempo médio de estudo no Brasil é considerado baixo. A Síntese de Indicadores Sociais avalia que apenas metade dos jovens entre 18 e 24 anos concluem o ensino médio. O levantamento, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estaística (IBGE), sugere que a grande dificuldade para estes jovens é levar concomitantemente estudo e trabalho. Os indicadores não devem, claro, ser usados sem aprofundamento de análise e visão de contexto. Só os números não falam por si mesmos. Contudo, não se pode negar que no Brasil a excessiva rigidez do sistema educacional não tem contribuído com as intenções de melhorias nos índices.

Mesmo os privilegiados, estudantes que conseguem manter seu ritmo de estudos e chegar ao ensino de nível superior mais ou menos encaminhados nas áreas de interesse, mesmo estes enfrentam a rigidez do sistema quando comprovam que estão adiantados. Crescem os casos de estudantes que conseguem aprovação no vestibular antes da conclusão no ensino médio. Dependendo da escola em que estão matriculados e da média escolar, eles perdem a vaga por não obterem a documentação necessária para fazer matrícula na instituição de ensino superior em que foram aprovados. O tema merece discussão; o que não se pode aceitar é a objeção ao processo por falta de décimos na média escolar ou pela justificativa de que o estudante ainda não está pronto para o ensino de nível superior.

Sistema de não lugares
Talvez a grande característica do sistema educacional contemporâneo seja a falta de laços, de memória compartilhada e de identidade. As instituições de ensino organizam-se sem a análise contextual que permitiria enxergar os problemas que nos afetam. Há uma difícil tarefa de encontrar na superabundânica de fatores que caracterizam o mundo contemporâneo respostas para nosso convívio e para a construção de um espaço social que valorize experiências afetivas e desenvolvimento cognitivo. A escola está se tornando um não lugar: de comunicação, mediada pelas tecnologias, de circulação, em busca de diplomas e títulos, e de consumo, em busca de sucesso e ascenção social.

Enquanto lugar de comunicação, as instituições de ensino (em quaisquer dos níveis) precisam garantir o convívio social e a negociação de regras de conduta voltada para o espaço em que se dá a cultura; enquanto lugar de circulação, deve valorizar o conhecimento a partir do reconhecimento de múltiplos saberes e mapas culturais; e enquanto lugar de consumo (se não puder superá-lo) deve, pelo menos, avaliar alternativas quanto aos modelos de produção, inclusive para o ensino. Estudantes não são "passantes"; seus títulos não os credenciam para toda uma vida. Portanto, não é sobre os títulos que o sistema educacional deve organizar seus métodos de aferição. Os processos de avaliação não devem se restringir a instrumentos de gestão. São estes instrumentos os maiores responsáveis pela transformação da escola em um não lugar.


Marc Augé - Strauss from videoteca11 on Vimeo.

Entrevista de Marc Augé ao programa Milênio, da Globo News. Para entender os não lugares e suas decorrências.

domingo, 15 de agosto de 2010

Um lugar na educação para a universidade; um lugar na universidade para a educação

Referências conceituais, muitas vezes, são relegadas em detrimento da objetividade. Não obstante, a própria concepção de objetividade merece releituras sobre as referências conceituais que a produzem. Nosso cotidiano está preenchido de “objetos” desconectados, percebidos dentro dos próprios limites, circunstancialmente utilizados e “descartados” sempre quando sua força instrumental se esvai. Tudo em função do movimento no rumo de metas antecipadamente traçadas.

O modelo de sociedade em que vivemos cerceia espaço para referências conceituais que não se proponham obsoletas, não se insiram no ritmo dos deslocamentos permanentes e individualizados. As interconexões, as interfaces, os entremeios, ou tudo o que dá sentido aos “objetos” do cotidiano, as intersubjetividades que nos dão um lugar de ocupação sempre instável nesse processo forçosamente jogam contra a supressão do tempo vista como necessária para a configuração dos espaços em que transitamos. Esse alerta é necessário: os conceitos não estão adiante; antecedem o movimento.


Entre as Tecnologias de Informação e Comunicação e o professor contemporâneo 
talvez não haja um grande distanciamento. Ambos sujeitam-se à filosofia da eficácia 
sobre o controle do tempo e do espaço para manter a atenção de seu "público".

Enquanto conceito, uma educação reconhecida como permanente pressupõe novas paisagens, cenários complexos e dinâmicos cuja cartografia é constituída por dimensões diversas, variáveis imprevisíveis e personagens múltiplas, todas inscritas no fenômeno chamado educação. Mais que apostar na diversidade, está na aproximação das diferenças o maior desafio. E aproximar diferenças exige alteridade.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss sugere como estratégias humanas duas formas de relação quanto ao reconhecimento da alteridade dos outros. Uma antropoêmica, outra antropofágica. A primeira sustenta a necessidade de manter afastados os tidos como estranhos, “vomitá-los” dos lugares de convivência, negligenciá-los de qualquer contato que configure uma interação social. Zygmunt Bauman descreve como “refinamento” dessa estratégia “o acesso seletivo a espaços e o impedimento seletivo a seu uso”.

O conceito se aplica muito bem aos sistemas de acesso ao ensino de nível superior sustentados pela lógica tecnocrática de exigência de requisitos prévios e de certificações desconexas, usadas para delimitar o grau de legitimidade dos níveis de conhecimento supostamente necessários. Ainda que se enxergue mudanças no processo de reconhecimento e acesso ao sistema educacional, estarrecem os números quanto aos descartados, desprovidos de "oportunidade".



Acesso seletivo e impedimento seletivo sobre o uso dos espaços no ensino superior 
tem lá suas vatagens. Essa estratégia sustenta-se na competitividade como componente 
indispensável para o sucesso em sociedade. Alimenta o desejo por objetos de 
consumo que nos proponha "vantagens".

A segunda estratégia sugerida por Lévi-Strauss, a antropofágica, sustenta-se na ideia de “aniquilação” ou “suspensão” da alteridade dos outros. Consiste em “devorar” os estranhos no sentido de possibilitar minimamente a convivência com eles. Uma alusão possível e também refinada dessa estratégia é o espaço da aula. Diante da “sacralização”, da “canonização” do conhecimento disciplinar, percebe-se uma dose de antropofagia intelectual, em que os “aprendizes” são submetidos a uma certa violência simbólica sustentada na autoridade de “quem sabe” e fundamentada na própria estrutura acadêmica, que teima em “regurgitar” os não adeptos.

Neste contexto, tais estratégias se complementam e se consolidam no discurso sobre o rigor tido como necessário para o que academicamente chamamos de construção do conhecimento. Rigor, via de regra, sustentado pela autoridade docente, não no diálogo com os saberes. Seleção antropoêmica e antropofagia intelectual se configuram em ambientes desprovidos de integração; no caso do ensino superior, de vida acadêmica. Os nichos e guetos são perceptíveis nas estruturas cindidas e fragmentadas das Instituições de Ensino Superior.

Ao mesmo tempo, enquanto objetos de desejo, os “produtos e serviços” acadêmicos (públicos e privados) servem-se de expedientes culturais para engendrar um sentido de “comunidade”, em que o princípio de unidade se dá “tanto pelos valores que estimam quanto pela lógica de conduta que seguem”, segundo Bauman. Dito de outro modo, primeiro expurgam-se os desprovidos de condição intelectual ou econômica, incapazes de ocupar o nobre espaço de construção de conhecimento, reconhecidos como “estranhos”. Depois, o ambiente ocupa-se de moldar os adeptos à lógica do espaço em questão. São lugares cuja imponência se dá pela imagem de inacessibilidade para “os de fora” e cujo sentido de unidade conforta os “de dentro”.


Caracterizados como objetos de desejo, os espaços acadêmicos não são para qualquer 
um. Não basta atravesar a fronteira que institui tais espaços. É preciso ser como quem
 já está nele; as compensações falam por si mesmas.

O antropólogo Marc Augé acrescenta um terceiro olhar sobre esses ambientes: os não lugares. Neles não se pode “ler” a identidade dos que o ocupam, suas relações e a história que compartilham. São lugares que “não integram nada, só autorizam, no tempo de um percurso, a coexistência de individualidades distintas, semelhantes e indiferentes umas às outras”. Mesmo junto com os outros, mas sempre sós, os “passantes” estabelecem uma relação de unidade sempre contratual, cujos símbolos identificam e autorizam circunstancialmente os deslocamentos.

Os símbolos acadêmicos, aqui representados por diplomas e titulações, pode-se dizer, já não sustentam um ambiente constituído pelos deslocamentos no percurso de uma construção coletiva, de vínculos afetivos e regras de convivência decorrentes dessa relação. Diplomas e titulações parecem muito mais simbolizar, para usar uma expressão de Augé, as “tensões solitárias” dos lugares de ocupação compromissados com a trajetória na busca por objetos de desejo para consumo próprio; sempre por um momento.

Diríamos que é para os símbolos que o percurso acadêmico está organizado; não para a consolidação do espaço. Explicitando melhor: o percurso está para diplomas e títulos, não para o processo de configuração permanente de saberes na construção de conhecimento. Importante ressaltar que, na concepção de Marc Augé, os não lugares são caracterizados assim por quem os ocupa; eles não se caracterizam a si mesmos. Portanto, não é da universidade enquanto instituição que estamos falando; mas enquanto organização.


As soluções para os problemas que nos afetam estão confinadas a lugares excessivamente 
preocupados com o controle dos conteúdos, da carga horária... uma relação que estimula 
muito pouco a busca de compartihamento de saberes para construir proposições inovadoras 
de sentido. Não percebemos os espaços vazios. Eis o obstáculo político a ser superado.

Um quarto olhar pode, ainda, ser acrescentado: o dos espaços vazios. Sucintamente, poderíamos descrevê-los, a partir de Bauman, como alijados de nossos mapas mentais. Seriam como lugares potencialmente vivos, mas não vistos. Estão fora de nossas listas de possibilidade justamente porque dependem de outras estruturações conceptuais para materializarem-se. Estruturações que nos levariam, obrigatoriamente, ao desconforto de mudar de lugar, deixar os espaços reconhecidamente preenchidos.

Ao remetermos o conceito para o campo da educação, poderíamos fazer alusão às condições de possibilidade novas, pensadas, eventualmente propostas mas descartadas pela falta de “consenso” sobre sua “eficácia” ou falta de clareza sobre as bases nas quais se estruturam enquanto possibilidade. Num certo sentido, não vemos os espaços vazios pelo próprio lugar de observação que ocupamos. Quanto mais preocupados com o lugar de ocupação mais distantes dos novos mapas conceituais que nos permitiriam percebê-los.

Entre os lugares de seleção antropoêmica, antropofagia intelectual, não lugares e espaços vazios há um sentido político que só pode ser engendrado sob novas concepções de alteridade, novas concepções de valor e novas regras de ocupação, voltadas para as relações em sociedade e não para o compromisso com metas e objetivos (institucionais ou individuais). Estamos falando, portanto, de inserir no processo de formação o sentido das relações que estruturam o que chamamos de realidade. Dito de outro modo, formar para o mercado por exemplo exige entender o que forma o mercado.

Em educação, os projetos dependem das respostas aos sistemas de avaliação que mensuram seu grau de validade. A priori, as propostas acadêmicas precisam prever, com certo grau de precisão, aonde pretendem chegar. Há uma taxonomia a serviço dessa projeção que nos ajuda a localizar em que estágio estamos; o que falta e o que sobra em termos de estrutura para a viabilizar a projeção. Essa taxonomia diz respeito a tudo que já está definido no contexto educacional e é de extrema importância para a construção de mapas de referência.


As estruturas educacionais movimentam-se diante de nós propondo flexibilidade 
suficiente para que possamos conciliar desejos. Contudo, as mesmas estruturas são 
rígidas demais quanto a negociações sobre o processo. Ou nos moldamos, ou desistimos.

Acontece que, quando ela está a serviço dos símbolos que legitimam o conhecimento (titulações e certificações por exemplo), toda e qualquer alteração de rota rumo aos espaços vazios é vista como decorrente de um corpo estranho que precisa ser “regurgitado” ou “devorado”, dependendo dos riscos calculados na relação. Se a estranheza for demais, melhor o exílio; se for passível de cooptação, melhor digerí-la, mesmo que quando “do lado de dentro” ela provoque pequenas alterações de metabolismo. E assim vão-se instituindo os lugares de ocupação sempre passageiros, destituídos de pertencimento e compromisso com o ambiente e suas normas de convivência entre “os de dentro” e “os de fora”.

Vida acadêmica é antes de tudo vida. Se quer dizer com isso que não se pode propô-la sem que haja um ambiente arejado, sem que seus “lugares epistemológicos” se abram para percepções novas, para formas de expressão diversificadas, para além dos catálogos, das coleções, dos cânones. No contexto de uma educação que se proponha permanente, é preciso constituir espaços sociais de aprendizagem capazes de fazer circular por eles saberes diferentes, intenções diversificadas, interesses distintos, mas comprometidos com uma construção coletiva de oportunidades, de perspectivas e de conhecimentos.

Ao compreender que a “democratização da universidade mede-se pelo respeito do princípio da equivalência dos saberes e pelo âmbito das práticas que convoca em configurações inovadoras de sentido”, para usar uma expressão de Boaventura de Souza Santos, o espaço social de aprendizagem decorrente dessa reconfiguração fundamenta-se pela possibilidade de movimento constante em busca de conhecimento, independente de níveis, graus e requisitos prévios, certificações e titulações legitimadas.

Mas que fique claro: a possibilidade de movimento sustenta-se pela necessidade de se estar permanentemente no espaço em configuração.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Educar para as possibilidades é abrir perspectiva para os possíveis disponíveis

Educar para as possibilidades significa negociar e construir ferramentas para pensar e agir em situações sempre novas, muitas delas centradas em problemas que sequer surgiram. Essa concepção de educação vem ganhando corpo em função das constantes mudanças e das incertezas diante da vida e do mundo, características tidas como elementares na sociedade atual. E, de fato, há pouca probabilidade de percebermos nossa existência sem que esses elementos nos conduzam a dilemas profundos quanto às perspectivas de ter o que dizer nestas circunstâncias. Parafraseando Zygmunt Bauman,
(...) a filosofia e a teoria educacionais enfrentam a tarefa pouco familiar e desafiadora de teorizar um processo formativo que não é guiado desde o princípio pela forma do alvo projetada de antemão; moldar sem conhecer ou visualizar claramente o modelo a ser atingido; (...) em resumo, um processo com final aberto, mais preocupado em permanecer assim do que com qualquer resultado específico e temendo mais qualquer encerramento prematuro do que buscando evitar a perspectiva de permanecer para sempre inconclusivo (A sociedade individualizada, 2008, página 177).
A afirmação não traz, em si mesma, qualquer reflexão que não sejamos capazes de fazer. Mas pela tradição epistemológica que sustenta o processo educativo e suas referências conceituais, assertivas como esta legitimam as ações em termos de projeto, incluindo a avaliação dos resultados. Aqui cabe uma ressalva: Bauman não é uma referência canonizada no campo da educação; e, pela característica descrita aqui por ele mesmo, talvez jamais venha a sê-lo. Voltemos à afirmação: o que ela nos traz de imediato é a inquietação quanto ao lugar que ocupamos como educadores. Estamos mais para a tradição epistemológica, ainda!

Significa dizer que as possibilidades para as quais estamos preparados a "ensinar" são as testadas pelas metodologias da ciência e referendadas pelas teorias dos cânones. Isso é ruim? Em princípio, não. Romper com a história do pensamento não parece uma atitude sensata para quem pretende pensar o novo. Romper com as concepções construídas a partir dessa tradição também não ajuda a conceber alternativas. O problema está no confinamento: a ciência não nos trouxe um mundo melhor justamente porque suas verdades são mais verdadeiras do que outras.

Concepções em modelos

Nos útlimos dias, algumas afirmações vindas de lugares aparentemente distintos contextualizam o que dizemos aqui. Diane Ravitch, ex-secretária adjunta de Educação nos Estados Unidos, sustenta que o modelo que ela mesma ajudou a consolidar não trouxe uma educação melhor para o país. Se considerarmos que o modelo está sendo adotado em vários lugares do mundo, incluindo o Brasil, a afirmação é importante. Segundo Diane, o sistema que responsabiliza os professores pelo processo está formando pessoas capazes de responder a avaliações, essencialmente. E melhorar a educação não é melhorar as pontuações nas provas.

Visão semelhante tem o físico alemão Andreas Schleicher. O diretor de Programas de Análise e Indicadores em Educação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e responsável pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) sustenta um modelo de educação menos centrado nos currículos. Adverte Schleicher que a aprendizagem não é um lugar e que, portanto, não pressupõe padrões; a aprendizagem é uma atividade que requer ritmo e espaço próprios a cada indivíduo. Nisso reside o desafio da educação.

Apenas para corroborar com os pontos de vista e trazer o debate para o Brasil emergente, também o ministro da Educação, Fernando Haddad, parece preocupado com esta questão. No encerramento da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ele sustentou que os vestibulares estão sobrecarregando o ensino médio. Logicamente, o discurso está centrado na "eficiência" do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como substituto para o processo seletivo inscrito na tradição das Instituições de Ensino Superior. Mas a referência é válida, na media em que põe em cheque o ensino para provas e processos seletivos em substituição a um processo mais aprofundado quanto às questões que nos afetam.

As três visões sustentam os mesmos pressupostos de Bauman, mas dão sentidos distintos quanto ao que se propõe como ferramenta. O sociólogo polonês não fala de capacitação para o uso de novas tecnologias ou para profissões que ainda não existem; não fala de critérios economicistas de desenvolvimento tampouco de currículos que valorizem cada indivíduo pela sua capacidade de consumo. A assertiva de Bauman está alicerçada na possibilidade de construção de laços suficientemente consistentes para transformar os coletivos humanos em algo que possamos chamar de sociedade.

Sombras do possível

Siegfried Zielinski nos fala em aprender a seguir pistas. Significa aprendermos a reconhecer "eventos e movimentos" resultantes dos meios culturais e técnicos com os quais construímos nossa realidade. E isso pressupõe "manejo", muito mais que poderes sobre os quais sustentamos nossas trajetórias. Em outras palavras, educar para as possibilidades é manejar um processo de construção coletiva quanto aos critérios de sociabilidade e suas decorrências. Sem isso, o possível torna-se "sombra da realidade", profundo equívoco da filosofia segundo Ludwig Wittgenstein. Zielinski prefere uma outra concepção a partir de sua própria experiência:
Em relação às pessoas, às ideias, aos conceitos e aos modelos que encontrei durante essa trajetória de busca anarqueológica [do tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir], esse ponto de vista [da filosofia como sombra da realidade] é virado de cabeça para baixo: seu lugar de morada é o possível, e a relidade, que de fato aconteceu, torna-se uma sombra, em comparação (Arqueologia da Mídia, 2006, página 46).
Há muitos possíveis disponíveis, como acrescenta Isabelle Stengers. Mas eles não estão em exposição e à escolha em função das circunstâncias. Os possíveis disponíveis estão na capacidade de construirmos referências para "transformar e subverter a paisagem dos conhecimentos". Para tanto, é mister romper com juízos de valor que reduzem as práticas humanas a modelos que confinam saberes; educar para as possibilidades é reconhecer nos enunciados a experimentação mesma de narrar possíveis, com o intuito de gerar disponibilidades para as ações coletivas que se pretendam sociais. E ainda não há instrumentos de avaliação capazes de mensurá-los.

Ao analisarmos os dados referentes à educação no Brasil, a partir de um projeto sustentado na quantificação de resultados para elevar os índices do país em rankings construídos por instituições econômicas; ao verificarmos o ranqueamento de escolas em função de exames de desmpenho que desconsideram a experiência de viver situações-problema; ao propormos nossa adequação a um modelo de avaliação pensado para fazer gestão sobre seus resultados, reduzimos o sentido de educar. Talvez porque o problema esteja na adoção de um modelo, obrigatoriamente. Um modelo que vinga por descartar outros possíveis disponíveis.

sábado, 10 de julho de 2010

Tempo pedagógico: diferentes temporalidades entre o ensino e a aprendizagem

Não é de agora a discussão sobre as características do trabalho docente na educação superior. As políticas de contrato que regem a docência ainda estão centradas no ensino como atividade e na sala de aula enquanto espaço pedagógico. A preparação de conteúdos e o planejamento da aprendizagem, além de outras atividades relacionadas à educação, nem sempre são objeto de valorização quando se avalia o nível de remuneração dos professores. Com as "Tecnologias de Informação e Comunicação" inseridas no contexto do trabalho docente, aumentam os questionamentos a respeito da precarização do ensino.

Como mensurar o tempo de atividade docente e relacioná-lo a uma proposta de remuneração considerada mais justa? Claro que há diferentes respostas dependendo da organização acadêmica e administrativa da instituição de ensino. Mas, uma questão em especial, penso, merece avaliação mais acurada. O tempo do ensino não é o tempo da aprendizagem; e nesse sentido, o trabalho docente é efetivo quando se põe generosamente a aproximar as distintas temporalidades inerentes ao processo. Eis a equação que precisa ser resolvida pela gestão educacional.

Na educação formal, o ensino atende ao tempo cronológico. O planejamento didático-pedagógico estabelece os parâmetros a serem alcançados com base nos projetos estruturados num recorte de tempo. Isso garante ordem suficiente para dar conta minimamente de reconhecer as horas trabalhadas na docência. O tempo, neste caso, é uma ferramenta de gestão. É tecnocrático; circunscreve-se às planilhas de alocação de carga horária. A aprendizagem, contudo, não obedece a essa ordem.

O sistema educacional compõe-se de diversos planos horizontais sobrepostos e nós, professores e estudantes, os atravessamos verticalmente de baixo para cima, na medida em que vencemos os requisitos prévios estabelecidos por normas e diretrizes. Esse movimento vertical de baixo para cima não implica necessariamente aprendizagem; significa que cumprimos uma etapa e iniciamos outra. Boa parte do que "estudamos" nessa trajetória perde-se porque não relacionamos os conteúdos com o cotidiano.

Outra questão: o espaço pedagógico é organizado por essa mesma lógica temporal. Nele, as atividades precisam ser controladas para que se possa mensurar os níveis de desempenho em função das normatizações e critérios impostos pela organização do conteúdo num cronograma planejado previamente. Há um certo padrão de respostas esperadas que servem de parâmetro para a verificação dos índices e do alcance das metas estabelecidas pelo professor. A aprendizagem é quantificada pelo volume de respostas mais próximas ao padrão definido.

Os itinerários formativos inscritos nessa raconalidade acadêmico-pedagógica oferecem pouca probabilidade de valorização dos "momentos auspiciosos" no processo de ensino-aprendizagem. O ato de aprender não se resume à memorização de conteúdos, tampouco ao domínio de técnicas específicas para o exercício meramente laboral. O espaço pedagógico efetiva-se no tempo cronológico do planejamento quando submetido à valorização de ações coletivas potenciais que reconheçam a "união de elementos heterogêneos para mobilizar sentidos em trajetórias impensadas", como diz Virginia Kastrup.

Voltando à questão da valorização docente, as chamadas "Tecnologias de Informação e Comunicação", antes de representarem uma ameaça, podem ser uma oportunidade de espandir o espaço de aprendizagem para além da temporalidade tecnocrática do trabalho docente descrito em planilhas de alocação. Neste sentido, as respostas não estão na "capacitação" docente para o uso de novas ferramentas e o domínio do tempo relativo; estão, isso sim, numa outra ordem de fatores que reconheçam diferentes temporalidades na estrutura curricular e na organização administrativa do processo de ensino-aprendizagem.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Áreas de conhecimento e legitimação dos saberes: questão de investimento?

"O doutorando brasileiro está cada vez mais interessado em Machado de Assis e menos em relatividade", diz a primeira frase do texto publicado pela Folha.com sobre o crescimento da pós-graduação brasileira na área das ciências humanas. Contudo, o contexto abordado é o da diminuição de doutores nas ciências exatas entre 1996 e 2008. Não vamos aqui nos perder com números. Interessa discutir as concepções implícitas na assertiva. O estudo foi realizado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e reflete a visão tecnicista da formação científica no país.

Pesquisa é desenvolvimento quando a ciência é tecnologia. Não fosse assim, o interesse em Machado de Assis não seria menos importante que o em Albert Einstein e suas teorias. Os investimentos destinados à chamada pesquisa aplicada concentram-se em áreas fundamentais para o aumento quantitativo das estatísticas que expõem o país no cenário internacional. Mas as justificativas para a mudança de contexto do stricto sensu dizem respeito justamente ao volume de investimentos necessários às instituições de ensino para montagem de laboratórios de ponta que qualificam a formação nas "exatas".

A associação, portanto, é simples: como há mais instituições privadas no Brasil, os recursos a serem investidos garantem melhor retorno em cursos que precisam apenas de "cuspe e giz"; dizendo de outro modo, as "humanidades" não carecem de laboratórios caros e dependem apenas de autoridades professorais em aulas expositivas; ou, quando muito, de ações ilustrativas quanto ao mundo real, visto que as simulações de pesquisa não cabem em tubos de ensaio. As "exatas" expressam, neste contexto, a intelectualidade da intelectualidade científica brasileira; por serem tão escassas quanto necessárias.

E o que dizer das "humanidades"? Elas não se justificam a si mesmas. São abstratas demais, demoradas demais para conclusões quantitativas, intangíveis demais para mensurar as possibilidades de retorno quanto a investimentos. Mas são baratas exatamente por isso. Num país em que titulação virou sinônimo de carreira, pesquisa é circulação por congressos e publicação em anais e áreas de conhecimento evidenciam fronteiras entre os saberes, fazer ciência é produzir tecnologia. Também para as "humanidades".

Por tecnologia, geralmente, entendemos as próteses técnicas que nos permitem mudar hábitos e valores. Contudo, nossa relação com a absoluta maioria dessas próteses técnicas não evidencia mudanças culturais significativas. Nos adaptamos a ferramentas que agilizam nosso tempo, ampliam nosso "espaço" de circulação, mudam, sim, a vida no que há de menos significativo: no uso dos meios. Paradigmaticamente, está nas "humanidades" a perspectiva de intervenções que dêem sentido às próteses e gerem condições de possibilidade para uma articulação viva entre os saberes.

Ciência é, por isso, uma cultura; um modo de ser investigativo sobre as verdades do mundo, sobre os consensos que estabelecemos no seio acadêmico para legitimar assertivas como as que abriram o texto da Folha.com. Machado de Assis e Albert Einstein não estão em extremos opostos; assim como as "humanidades" e as "exatas". A redução das "exatas" na pós-graduação stricto sensu entre 1996 e 2008 talvez tenha mais a ver com a necessidade de pensarmos políticas sociais mais densas, ainda que precisemos avançar muito em produção tecnológica. A busca do para quê talvez ajude nesses avanços; e o para quê está no cerne investigativo das "humanidades".

Velhos rituais artísticos com novas ferramentas tecnológicas: "humanidades" e "exatas" 
estão em complementaridade, num único contexto. A pergunta é: vale investir em quê?


quarta-feira, 30 de junho de 2010

O que é Jornalismo? Pergunte sempre!

O que é Jornalismo? A pergunta é recorrente. Vantagem minha ter a oportunidade de refletir sobre o assunto em bancas de monografia. O estudante Felipe Reis, da Unisul, traz o questionamento com a preciosa contribuição de não procurar uma resposta definitiva. O trabalho dele traça uma trajetória das principais teorias que sustentam o Jornalismo e analisa a decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender a obrigatoriedade do diploma de nível superior para o exercício da profissão. A partir da provocação, faço as seguintes reflexões:

1) Apenas como hipótese, o reconhecimento da atividade jornalística parece estar inscrito na própria crise que gera a pergunta. A decisão do STF baseia-se na redução do Jornalismo ao jornal que é descartado depois de lido, como ilustra o professor Manuel Carlos Chaparro. Resume-se, portanto, às suas formas expressivas e seus suportes tecnológicos; qualquer um que os domine tem condições de exercer a profissão. Mas começo a pensar que a sobrevivência do Jornalismo está na força da própria pergunta. É ela que sustenta a reflexão sobre uma crise que acompanha a atividade desde o princípio; e, por isso mesmo, mantém viva a possibilidade de resposta. A pergunta "o que é Jornalismo" não é retórica; traz um sentido de utopia que nos provoca a resposta, ainda que nunca a aceite definitivamente. A pergunta das perguntas funda-se na máxima de que o bom jornalista é quem sabe perguntar, não quem tem as respostas para os problemas sociais.

2) A partir daí pode-se pensar o Jornalismo enquanto campo de atuação, espectro muito mais amplo que o mercado de trabalho e seus lugares de ocupação. No campo de atuação há espaço para quem teoriza. Pensar sobre a profissão é também parte de seu campo de atuação. Pode parecer uma constatação inapropriada ou mesmo óbvia. Não cometamos equívocos de interpretação aqui. As teorias do jornalismo não dão conta de responder à pergunta e isso nos estimula a pensar mais sobre. Digamos que os referenciais teóricos ora adotados ainda refletem um modelo de sociedade caracterizado pela linearidade dos processos comunicacionais, pelas verdades absolutas concorrentes e pela estatização da ideia de poder. O Jornalismo vivia entre dois extremos: o libertador e o alienado. Nossos espaços atuais são mais fluidos, mais abertos a nuances interpretativas menos dogmáticas. E isso pede novas tentativas de reflexão com base na pergunta "o que é Jornalismo".

3) Apenas como exemplo desta nova contextualização, trago a ideia de "singularidade" tratada dentro da filosofia pelo falecido Adelmo Genro Filho. Na concepção de Adelmo, a partir da filosofia de Hegel, a singularidade é parte integrante do particular e do universal ao mesmo tempo em que é constituída por ambos. São três dimensões da realidade que "compreendem em si as demais". Dito de outro modo, o gênero humano é universal; em particular, as diferentes raças se distinguem enquanto "gênero"; a singularidade está no homem branco de terno e gravata que não tem tempo para as humanidades. Para Adelmo, o Jornalismo parte do singular para o universal, o que exige um exercício de apreensão muito mais denso da "realidade" a ser descrita. Contudo, novos olhares para essa concepção trazem um sentido de singularidade que se constitui na condensação de variáveis possíveis para o que reconhecemos como universal. Essa condensação nos permite o trânsito por dobras conceituais outrora distantes por conta da rigidez das fronteiras que isolavam as variáveis em seus próprios "compartimentos". Sendo assim, se o Jornalismo tem na singularidade sua dimensão mais apropriada, há de se repensar os sentidos possíveis a partir das condensações feitas, para além das fronteiras que confinam o exercício intelectual de interpretação do mundo a variáveis estanques. Ainda a título de hipótese: o Jornalismo não precisa de modelos conceituais. Ele é a própria pergunta.

Viagem gostosa essa. Um estudante interessado, colegas (Rosane Porto e Raquel Wandelli) inspiradas, inquietações afloradas. Saio da conversa convencido: a atividade jornalística depende crucialmente da vivacidade da pergunta que a coloca em crise. O Jornalismo está no espaço de circulação que constitui seu campo de atuação. Não há lugares fixos nesta cartografia.

domingo, 27 de junho de 2010

Do capital financeiro ao capital político: giros no esporte midiatizado

Leio no blog do jornalista Daniel Castro que a campanha Um Dia Sem Globo postada no twitter não obteve sucesso. Lembremos a proposição: os posts sugeriam assistir ao jogo entre Brasil e Portugal em emissoras que não pertencem à Rede Globo, supostamente por causa do "incidente" entre o técnico Dunga e o jornalista Alex Escobar durante entrevista coletiva após a vitória contra Costa do Marfim. Diz o blog que, segundo o IBOPE, a Globo obteve 43,6 pontos de audiência, índice menor que o da estreia contra Coreia do Norte (45,2) e maior que o do jogo contra a Costa do Marfim (40,7). Sugere, portanto, que não houve mudanças significativas em função do "protesto". E acrescenta um dado: a Band bateu recorde, ainda que tenha ficado com míseros 12,7.


Em editorial, Globo dá sua "versão"; um drible na truculência de Dunga

Volto à ideia de circularidade que envolve o jornalismo esportivo e a indústria do entretenimento, sobretudo quanto ao esporte midiatizado. Entre 14 e 20 de junho, a campanha "Cala Boca Galvão", também postada no twitter, rendeu ao locutor global o status de figura mais "badalada" na imprensa. Os dados foram publicados pela MídiaB, empresa especializada em monitorar a mídia espontânea. Galvão Bueno não foi "autorizado" pela Globo a falar sobre o assunto, mesmo com insistentes pedidos de entrevista feitos pelos "jornalistas" de plantão. De boca bem fechada sobre o assunto, Galvão Bueno "curtiu" o merchandising dado pela grande mídia.

O fato de a Globo ter mantido sua audiência e de Galvão estar no top cast das personalidades televisivas só reafirma o grau de importância que as redes sociais assumem em relação aos meios de comunicação "tradicionais". Merece análise o nível de circularidade que uma "campanha", ainda que considerada boba e para a maioria dos "seguidores" apócrifa, tem mostrado. A indústria do entretenimento não se movimenta mais exclusivamente pelos interesses empresariais e de marketing; o giro de capital é mais amplo. Um Dia Sem Globo é um projeto, para além da Copa do Mundo.

Não se pode desconsiderar no episódio do twitter a ubiquidade da proposição. Os "internautas" estão em todo lugar e em lugar nenhum. Não representa "alívio" para a Globo o registro de que os índices de audiência não "caíram" em função da "campanha". Tanto que houve rápido movimento de resposta também quanto ao insucesso dos twitters responsáveis pela postagem. A circularidade, neste caso, sustenta um capital político na medida em que as estruturas de mercado não estão mais imunes às redes sociais. Ao contrário, estão atentas; muito atentas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Espaços sociais de aprendizagem e afetividade

Palavramundo é um termo cunhado pelo pensador Paulo Freire bem apropriado para a ideia de afetividade que aqui se quer tratar. Costumeiramente, o processo de ensino e aprendizagem impõe ao conceito de mundo o sentido de objeto sobre o qual a palavra ganha significado. É como se o mundo lido não pudesse ser sentido sem a descrição que o revela. Uma árvore, para Paulo Freire, pode ser um objeto a ser descrito. Mas, sob sua sombra há formas de apreendê-la para além de conceituações meramente descritivas. Isso porque a árvore simbolicamente descrita pela linguagem afeta o espaço de aprendizagem de quem o vivencia sob a sombra que ela (a árvore) cria.

A mágica do termo está justamente na inversão da relação costumeira entre ensino e aprendizagem. Ou melhor, está no desordenamento do processo. O mundo e a palavra não estabelecem uma relação linear de sentido. Não é necessário aprender a ler (as palavras) para entender a complexidade do mundo. Mas a complexidade do mundo é valorada quando conseguimos expressá-la a ponto de afetar os outros. Portanto, a importância da leitura não está na necessidade funcional de uma formação cidadã, ainda afetada por ideais iluministas de esclarecimento pela intelectualidade.

Quero dizer: o ato de ler está relacionado à socialização das ideias, à construção de regras de convivência humanas, à sensibilização de uma coletividade para as formas de interpretar e expressar a complexidade do mundo; é, portanto, um ato estruturante. A leitura constitui um elo com todas as formas possíveis de expressar o mundo, mas não pode ser confundida com o mundo mesmo. Para construirmos um laço de afetividade com a leitura precisamos do mundo que nos cerca e vice-versa. Não para compreendê-los (o mundo e o ato de ler) como objeto, mas para construirmos um processo de afeição mútua, como propõe o termo palavramundo.

Textura sonora: flaneria na hipermídia, de Daniel Signorelli (Unisul) - 
no espaço social de aprendizagem isso é uma monografia?

Li e socializei no twitter matéria sobre o analfabetismo funcional no Brasil, dilema que atinge, segundo pesquisas, 25% dos jovens acima de 15 anos. A questão é que são considerados analfabetos funcionais aqueles que não correspondem às exigências da sociedade da informação e que, portanto, não têm como exercer seu "direito democrático de cidadania". Para mudar o quadro, as bibliotecas comunitárias apresentam-se como espaços públicos importantes por constituirem-se em repositórios culturais e de socialização de informações significativas. É um esforço válido e importante. Mas o que afeta as pessoas que por elas passam?

Acumular todas as informações sobre o mundo, se fosse possível, não seria suficiente para transformá-lo. Uma super-biblioteca, por mais comunitária que fosse, não seria suficiente para aliviar as estatísticas quanto ao analfabetismo funcional brasileiro. Tampouco a qualificação das escolas e seus professores pela via da capacitação ou titulação acadêmica. Isso ajuda? Ajuda na formação para a cidadania, essa funcionalidade moderna necessária para justificar as políticas de estado e de mercado. Estes espaços públicos ainda são usados para ajudar a melhorar o acesso aos lugares de ocupação ávidos por jovens para garantir um grau de desenvolvimento compatível com o status geopolítico que o país almeja.

Volto à ideia de afetividade: os espaços públicos (entendidos como acessíveis) precisam também ser espaços sociais. Neste sentido, não bastam a troca de informações e a instrumentalização funcional pela leitura. Sem uma relação afetiva, compromissada em afetar a todos que circulam por estes espaços, de nada adiantam os esforços, ainda que mensuráveis positivamente. O ato de ler não é um ato de cidadania apenas. Não é para a sociedade da informação que o ato de ler torna-se fundamental. O ato de ler é uma capacidade humana que pode gerar novas formas de socialização e não está circunscrita na palavra impressa. O ato de ler é também um ato social na medida em que desvela a palavramundo e transforma os espaços de aprendizagem em espaços sociais de aprendizagem.

domingo, 20 de junho de 2010

O futebol de bar invade a racionalidade discursiva sobre o "jogo"

Conceituado antropólogo brasileiro, Luiz Henrique de Toledo publicou em 2002 uma análise interessante sobre o futebol e suas lógicas. Os clubes profissionais, os jornalistas esportivos e os torcedores foram postos em circularidade numa investigação etnográfica e empírica peculiar. Em síntese, a pesquisa buscava os consensos e dissensos para além do vazio que rege os discursos sobre este esporte. Por que postos em circularidade? De certa maneira, o campo esportivo visto a partir dos ideários que caracterizam os protagonistas do espetáculo, os especialistas e os consumidores servem de "fundamento" para o futebol midiatizado, ou também conhecido como "de alto nível".

Não é ao livro, explicitamente, que este texto é dirigido. Contudo, há uma interessante relação pensada pelo pesquisador entre o futebol jogado, o futebol discursado e o futebol de bar. Em certa medida, os critérios de julgamento para a construção dos argumentos a respeito de um "jogo" passam por estas instâncias circulares, que se retroalimentam. Vejamos a Copa do Mundo deste ano na África do Sul, especialmente o desempenho da Seleção Brasileira: qual o "nível técnico" ideal de uma competição como esta e de um postulante ao título? As respostas são diferentes a cada rodada.


Sem Garrincha, estas imagens seriam associadas ao futebol de várzea

Digamos que os especialistas têm a prerrogativa de "justificar" seus prognósticos imprecisos com uma racionalidade discursiva que recria o "jogo" e sua suposta racionalidade técnica. Neste sentido, o nível técnico pode ser alto ou baixo em uma competição, dependendo do grau de proximidade dos acontecimentos no futebol jogado com as análises "especializadas" no futebol discursado. A título de hipótese: o "futebol arte" brasileiro, supostamente ausente nos tempos atuais, tem muitíssimo a ver com a "arte discursiva" sobre ele. A "beleza" do futebol no país coincide com a "beleza" textual da crônica esportiva, tão ausente atualmente quanto os craques que protagonizavam os espetáculos de outrora.

Na mecânica do "jogo" encontramos uma mecânica do dizer sobre. Nelson Rodrigues não escreve mais sobre seus "reis" e "príncipes" em crônicas teatrais e poéticas; tampouco o Canal 100 elabora discursos audiovisuais com requintes cinematográficos. Hoje temos os "escritos" excessivamente descritivos, limitados ao "jogo", de prosa fria, distante; temos o "show de imagens" que se espetacularizam a si mesmas, insensíveis ao olhar poético, reduzidas à tecnologia dos equipamentos. Portanto, o futebol é outro.


Poética do "jogo" e poética discursiva: uma sem a outra?

Mundo globalizado, experiências intercambiáveis, futebol mundializado e mercantilizado, crônica esportiva limitada ao visível. Uma imagem é uma imagem e não uma fonte de inspiração; um texto é o dizer imparcial sobre a realidade e não a expressão sensível do universal pela singularidade. O futebol de bar antes alimentado pela "arte discursiva" sobre o esporte é hoje o que alimenta a mecânica do "jogo". Os dribles ainda existem, as belas jogadas ainda estão em pauta; só não são mais fonte de percepção para além de uma racionalidade técnica engendrada pela mecânica racionalidade discursiva dos especialistas de plantão.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Avaliar é também aprender

Para que serve uma avaliação? A pergunta é frequente entre os estudiosos em educação e o tema, bastante controverso. As razões para isso são muitas. Mas quero ater-me a uma em especial. Nos condicionamos a ver a avaliação como "etapa ulterior ao aprendizado"; avaliar, portanto, não é aprender. Esta concepção orienta os critérios usados para a composição de rankings, por exemplo. É como estimular os "piores" a ser como os "melhores" até a exaustão; ou então desistir. Novamente, estamos falando de um instrumento de gestão para diminuir as tensões provocadas pela multiplicidade de variáveis não passíveis de controle. As formas de "usar" a avaliação implicam tensões.

O Ministério da Educação tem realizado uma série de estudos a respeito e promovido um processo tão amplo quanto possível de avaliações. Na educação superior, criou o Índice Geral de Cursos para orientar os futuros estudantes na escolha de instituições "confiáveis". Na educação básica, tem debatido os índices "paupérrimos" de desempenho escolar. Como não há canais de debate aprofundado, o próprio MEC estimula através dos meios de comunicação uma visão superficial a respeito. Enquanto país, somos "atrasados" apesar dos esforços da burocracia político-administrativa.

É importante ressaltar que todos os critérios de avaliação ultimamente "lançados" descartam os espaços que não estejam a serviço do desenvolvimento científico e tecnológico ou da criação, ainda que imagética, de possibilidades de ascenção social. Este é um aspecto da cultura de avaliação cujos resultados justificam-se a si mesmos. Dizendo de outro modo: quem avalia não está no processo de avaliação, nem é objeto dela. O "mestre" define quando, de que forma e com que critérios seus "discípulos" aprendem; não está em pauta no processo. E para ser eficiente na avaliação, deve trabalhar objetivamente na observação de quem consegue e em que escala alcançar as metas propostas.

Nossa capacidade de atuar no mundo não se reduz às formas como aprendemos a descrever o que fazer em determinadas circunstâncias. Tampouco está em escalas de desempenho quantificáveis e mensuráveis por aferições distantes do fazer cotidiano. Avaliar é também aprender, como etapa do ato mesmo de apropriação daquilo que constitui o nosso real. E o nosso real está sempre em relação à nossa capacidade de construir parâmetros coletivos, normas de convivência e trajetórias conjuntas. A avaliação está para a organicidade, não para a ordem. É o que dá vida ao aprendizado e leva o ato de aprender à própria vida e suas escolhas.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O que se quer da educação afinal?

Visão sistêmica para a educação tem sido a bandeira do Ministério da Educação na gestão de Fernando Haddad. E sob essa bandeira foram definidos os processos de regulação do sistema brasileiro. Contudo, ainda há um enorme distanciamento entre os níveis de ensino: educação básica e educação superior são dois sistemas distintos. Aproximar os diferentes níveis é muito mais que um desafio; depende, fundamentalmente, de uma profunda mudança quanto às concepções que fundamentam a própria visão.

Na educação superior, os investimentos públicos têm sido muito mais significativos. Sobretudo porque ficam a critério do Governo Federal. A educação básica, ainda que garantida na Constituição Brasileira, é de responsabilidade dos estados e municípios. Os números neste nível de ensino são estarrecedores para um país que busca desenvolvimento e igualdade social. Recentes estudos apontam que apenas 48% dos jovens entre 15 e 17 anos estão matriculados no ensino médio. E 18% deles nem frequentam a escola. Estamos falando de 2 milhões de jovens nesta faixa etária.

O Ministro Fernando Haddad tem falado na perspectiva de inversão no processo de mobilidade de um sistema para outro. Segundo ele, apenas 12% dos que estudam em escolas públicas na educação básica têm vaga na educação superior pública. Os outros 88% preenchem o setor privado da educação superior. Eis a mudança considerada significativa: o próximo Plano Nacional de Educação parece mais focado na educação básica. Uma série de pesquisas tem norteado as decisões quanto aos investimentos para fortalecer espaços de aprendizagem entre os 4 e 17 anos. Mas esta não é a principal questão.

Conceitualmente, a visão sistêmica atende a critérios de gestão. Facilita, em termos, o ordenamento dos processos dentro de um "todo" reconhecido como dado ou projetado; propõe enxergar múltiplos "mecanismos", vários conjuntos de "engrenagens" que devem ser ajustadas em nome de uma complexidade "transcendente". O problema é que a complexidade é vista também como mecanismo; um mecanismo muito maior e controlável, de variáveis previsíveis. A visão cabe no cenário educacional brasileiro, principalmente pela quantidade de "engrenagens" a serem controladas. Cabe para a gestão, quase sempre ocupada em administrar quantidades.

Neste contexto, discute-se quanto do PIB deve ser aplicado em educação sem clareza de como e para quê. Há um projeto para a educação básica? Pode ser, mas estados e municípios orientam-se por ele? Não estamos falando de documentos reguladores nem normatizações. A educação no Brasil parece ter perdido o sentido: enquanto os discursos a associam à perspectiva de ascenção social a vida segue de outro jeito. Seja pelo nível de qualificação dos professores responsáveis pela educação básica, pela concepção de ensino e de aprendizagem ainda legitimada na sapiência do professor ou pela visão pouco sistêmica de nossos gestores.