domingo, 21 de novembro de 2010

Educação e Ciência, a especialidade e as faces das coisas

O especialista que conhece um único tema a fundo e esquece o resto do mundo vai ser gradativamente substituído pelo jovem que não se contenta em enxergar apenas uma face das coisas.
Renata Spers, pesquisadora do Programa de Estudos do Futuro da Fundação Instituto de Administração da USP, refere-se ao mundo do trabalho num futuro próximo. Significa dizer que uma só pessoa terá de transitar por áreas distintas no que tange à formação para dar conta de assumir as responsabilidades inerentes a esse cenário, de hierarquias flexíveis e redes de produção. Entende-se que as empresas não serão mais caracterizadas por grandes corporações, mas por organizações modulares e interligadas por processos produtivos disponíveis circunstancialmente em projetos comuns.

Neste ambiente, os "profissionais" serão reconhecidos pela multiplicidade de competências desenvolvidas concomitantemente às atividades produtivas, pelo uso da informatização para agilizar a produção e evitar deslocamentos desnecessários, e pela preocupação com a saúde e com o meio ambiente. A inquietude será uma necessidade, na medida em que os salários estarão associados a serviços prestados e não ao tempo dedicado ao trabalho, o emprego será um termo em desuso, a aposentadoria estará fora de moda e as escolhas profissionais não estarão associadas apenas ao retorno financeiro. Os locais de trabalho serão tão fluidos quanto os processos de produção e as decisões relativas a esses processos, descentralizadas.

Há muito mais a prospectar. Diriam os mais céticos, a sofismar. Por mais absurdas que pareçam as questões aqui apontadas, todas estão sendo estudadas, submetidas ao método científico de tese e antítese. Admita-se a possibilidade de os argumentos não conferirem totalmente com o futuro que se avizinha. Entretanto, pensar no que será é reconhecer o que já é. Não há adivinhações. O mundo do trabalho parcamente sinalizado aqui já pode ser visto em desenvolvimento. As novas gerações irão se encarregar de efetivá-lo. Com mais ou menos grau de pertinência quanto a itinerários específicos, o cenário será bem parecido com o que descrevemos. A não ser que enxerguemos outras faces.

As faces das coisas
Ressalvas sejam feitas: as tendências no mundo do trabalho trazem argumentos sempre focados na dinâmica dos negócios e das relações de produção. A visão costuma ser redutora, uma vez que o contexto sociocultural não é considerado em suas dimensões. O cenário prospectado associa-se a um possível disponível. Revelado sob a face das relações de produção, o futuro do trabalho é "projetado" em cima das referências que constituem os ativos da economia. Dizendo de outro modo: as lógicas que determinam os modelos de negócio, que modelam os processos produtivos e seus resultados só entram em questão quando não põem em crise os fluxos já estabelecidos.

As faces das coisas carecem de curiosidade, de inquietude. Não há feições prontas; elas expressam o que somos capazes de criar, de mobilizar. Em termos científicos, a prospecção de cenários tem por base a análise de variáveis cuja combinação permite aferições de possibilidade. Os estudos neste campo levam em conta as lógicas presentes na construção das variáveis até o momento da análise, mas raramente propõem variáveis estruturantes de outros possíveis disponíveis. Sendo assim, os modelos econômicos que regem as bases sobre as quais se apontam as tendências são, considera-se, invariantes.

Trazendo o tema para o mundo acadêmico, as similaridades de prospecção estarrecem. As lógicas da estrutura acadêmica, por exemplo, inscrevem-se numa tradição disciplinar sobre as quais os ativos do conhecimento ganham valor. Em termos econômicos, a titulação é mais importante que o conhecimento; por outra, a titulação é o atestado do conhecimento. Sem generalizações, o fato é que esta lógica valoriza a especialidade pelo aprofundamento de saberes num reduzido campo do conhecimento humano. É de se pensar se o problema talvez não esteja na organização do processo de construção do conhecimento.


Em setembro de 2009, a UnB promoveu durante a IX Semana de Extensão, o seminário Reflexos sobre os desafios da universidade no mundo globalizado e na sociedade do conhecimento. Professor Emérito da UNICAMP, o matemático Ubiratan D'Ambrosio fala sobre o método disciplinar e os problemas de interpretação decorrentes em relação às estruturas. Seu questionamento final, a respeito de como superar as "gaiolas" disciplinares, nos oferece possibilidades de caminhos e perspectivas.

Superar as disciplinas?
Disciplinas escolares são hoje confundidas com disciplinas científicas. Os modelos de organização curricular decorrentes desta lógica privilegiam os conteúdos considerados essenciais para o aprendizado em função de recortes, digamos, arbitrários. É pelo professor que se estrutura o conhecimento. Mas a Ciência não se fragmentou em disciplinas para subdividir categorias de conteúdos. As disciplinas científicas organizam-se em função de objetos e métodos comuns, identificam as faces das coisas que as ilustram; não determinam o que delas se deve apreender nem em que fase da vida.

Sendo assim, a organização da aprendizagem por disciplinas científicas não pressupõe uma estrutura de conteúdos recortados por si mesmos, sem objetivos relacionados aos contextos da aprendizagem. O sentido praxeomórfico desse dilema está no uso momentâneo dos conteúdos para instrumentos de aferição quanto ao que se pôde guardar na memória num dado espaço de tempo. Os avanços quanto aos processos de ensino e aprendizagem, até agora, não provocaram transformações significativas no modo como tendemos a fazer as coisas e como as fazemos costumeiramente.

Não há o que superar quanto aos sistemas de organização do conhecimento propostos pela Ciência. Pelo menos no que diz respeito aos processos de aprendizagem. A Ciência não é o aprendizado. Seus conhecimentos são, no máximo, recursos para a aprendizagem. É a organização curricular que deve estimular a mobilização dos recursos oferecidos pela Ciência em função de ações que nos levem aos possíveis disponíveis num dado momento de nossa vida. E para que tenhamos acesso aos recursos da Ciência, seu sistema de classificação por disciplina dá conta.

Os especialistas em educação alertam há tempos sobre o problema da fragmentação disciplinar. Contudo, a face desse problema ainda é a Ciência e seus métodos. Com franqueza, não há como nem porque depositar sobre os ombros de uma forma de conhecimento toda a culpa pela inoperância do sistema educacional. Curiosidade e inquietude também se ensinam. As disciplinas escolares viraram um porto seguro para os que "conhecem um único tema a fundo". Talvez por isso os jovens estejam buscando outras formas de "enxergar as faces das coisas". Eles estão mais sintonizados com o presente e, portanto, com o devir.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Convergência de recursos e os possíveis disponíveis para o Jornalismo

Pedro Kuhnen (foto), da RBS de Florianópolis, falava na "Noite de Comunicação" sobre as potencialidades do twitter para o Jornalismo. Conversa informal, puxada a partir de ideias levantadas por trabalho monográfico em que ele, Pedro, é fonte de entrevista. Falávamos sobre a possibilidade de os posts no twitter servirem de pauta para os jornalistas e de "manchete" para notícias personalizadas, encontradas nos diversos pontos da rede e socializadas em função de interesses e escolhas individuais. Não houve tempo para aprofundamento. A conversa foi rápida mas inspiradora. Tentemos estendê-la.

Na sociedade contemporânea, já dissemos, o lugar do Jornalismo pede novos espaçamentos cognitivos, estéticos e ético-morais. O que isso significa? Alertam os especialistas que formataram a proposta para as novas diretrizes curriculares em debate: os valores democráticos na atualidade fundamentam-se pelas "armas da linguagem" e através dos "suportes tecnológicos". E é pelo Jornalismo, dizem, que os sujeitos agem discursivamente no e sobre o mundo. Neste sentido, cumpre à atividade assumir "uma linguagem narrativa e uma eficácia argumentativa" no espaço público. Até aqui, nada de novo. Não há outros possíveis disponíveis.

Novos espaçamentos cognitivos, no entanto, situam o Jornalismo como ação mediadora num contexto hoje inusitado. Professores da Universidade de Columbia já falam em formar gestores de comunidades sociais. A concepção aponta para a possibilidade de um exercício intelectual de interpretação do mundo dentro das próprias redes. Uma ação para além de capacidades discursivas, portanto. Jornalistas passarão a ser também os meios, não só arautos de mensagens informativas. Nessa perspectiva, as redes sociais são entendidas como "grande manancial do conhecimento" e a produção de notícias tende a ser mais colaborativa. Jornalistas são percebidos como "curadores de notícias", aglutinadores de informações.

"Mídias interativas" têm sido ferramenta para simulações de aprendizagem nas mais diversas áreas. Também no Jornalismo. Jogos eletrônicos baseados em conflitos mundiais adotam a atividade jornalística como mote; um reforço à ideia de que os valores democráticos necessitam de "guardiões". O importante, contudo, é que estes jogos inscrevem o exercício intelectual de interpretação do mundo na capacidade de mobilização de recursos para a produção de textos sobre temáticas específicas. Não a circunscrevem, portanto, à simples capacidade discursiva.

Diante de um quadro cujas possibilidades ganham exponencial abertura, os espaçamentos estéticos modificam-se de maneira relevante. Fala-se muito hoje em convergência. Os argumentos dão ênfase às mídias, aos modelos econômicos sobre os quais as informações são produzidas e através das quais circulam; reforçam também a circularidade discursiva a respeito dos "fenômenos" midiatizados numa espiral que recria aspectos do cotidiano e inspira interpretações descontextualizadas, afastadas da origem. A concepção de convergência, portanto, diz respeito aos meios expressivos em razão dos meios econômicos.

Novas formas de expressão surgem de habilidades relacionadas à convergência de 
recursos. O ofício jornalístico também merece atenção quanto à sua arte expressiva.

Há outras formas de perceber a convergência para além da miopia a serviço de uma economia que congrega entretenimento, informação e publicidade. Jornalistas têm à disposição ferramentas que reúnem todos os recursos técnicos necessários para, minimamente, exercer a atividade. Não apenas no que tange à produção, mas também quanto à veiculação de informações consideradas relevantes. Essa convergência de recursos talvez seja mais importante que a aglutinação de meios expressivos. Isso porque inverte a lógica do processo: da concentração de meios em relação a diversidade de recursos para a concentração de recursos em relação a diversidade de meios. Julgam alguns estudiosos que as notícias serão personalizadas no futuro; reconheçamos, não tão distante assim.

Espaçamentos ético-morais merecem também reavaliação. Informações instantâneas não nos chegam mais ao vivo; elas estão online. Essa característica é significativa uma vez que tais informações compõem uma espécie de inteligência coletiva, estão organizadas numa prótese de memória sempre disponível quando necessária; não são mais fugazes, não se perdem no tempo. A instantaneidade não pode, contudo, ser relacionada simplesmente aos discursos imediatos sobre acontecimentos, no caso do Jornalismo. Estar online é também estar nesse mundo instantâneo, é também fazer parte dele num contexto político de defesa dos valores democráticos.

Vamos esclarecer: a defesa dos valores democráticos aqui não é simplesmente assumir um discurso de contrapoderes. Se as redes sociais são a bola da vez e a convergência de recursos abre caminho para múltiplos canais de mercado e modos de produção, os valores democráticos inscrevem-se na comunicação como locus de produção cultural, de relações sociais e de desenvolvimento humano. Não haverá mais espaço para meros prestadores de serviço e construtores de discurso preocupados em mediar fontes. O exercício intelectual neste contexto não comporta mais estereótipos baseados num suposto poder de autoridade e legitimidade quanto aos dizeres sobre o mundo.

Se o Jornalismo se pretende professoral, no sentido de ter no cerne de sua atividade "habilidades pedagógicas na prestação de serviços públicos", como afirmam as novas diretrizes em debate; se o Jornalismo precisa assumir a defesa da cidadania pelo viés do esclarecimento, colocando-se como fiscal dos direitos alheios; se o Jornalismo ainda põe-se a "intermediar" influências, pode-se esperar que procure fazê-lo ajudando a criar canais de comunicação e não apenas assumindo discursos esterotipados sobre os possíveis disponíveis à sociedade. O uso do twitter, tema do início de nossa conversa, é um mero detalhe.