domingo, 15 de agosto de 2010

Um lugar na educação para a universidade; um lugar na universidade para a educação

Referências conceituais, muitas vezes, são relegadas em detrimento da objetividade. Não obstante, a própria concepção de objetividade merece releituras sobre as referências conceituais que a produzem. Nosso cotidiano está preenchido de “objetos” desconectados, percebidos dentro dos próprios limites, circunstancialmente utilizados e “descartados” sempre quando sua força instrumental se esvai. Tudo em função do movimento no rumo de metas antecipadamente traçadas.

O modelo de sociedade em que vivemos cerceia espaço para referências conceituais que não se proponham obsoletas, não se insiram no ritmo dos deslocamentos permanentes e individualizados. As interconexões, as interfaces, os entremeios, ou tudo o que dá sentido aos “objetos” do cotidiano, as intersubjetividades que nos dão um lugar de ocupação sempre instável nesse processo forçosamente jogam contra a supressão do tempo vista como necessária para a configuração dos espaços em que transitamos. Esse alerta é necessário: os conceitos não estão adiante; antecedem o movimento.


Entre as Tecnologias de Informação e Comunicação e o professor contemporâneo 
talvez não haja um grande distanciamento. Ambos sujeitam-se à filosofia da eficácia 
sobre o controle do tempo e do espaço para manter a atenção de seu "público".

Enquanto conceito, uma educação reconhecida como permanente pressupõe novas paisagens, cenários complexos e dinâmicos cuja cartografia é constituída por dimensões diversas, variáveis imprevisíveis e personagens múltiplas, todas inscritas no fenômeno chamado educação. Mais que apostar na diversidade, está na aproximação das diferenças o maior desafio. E aproximar diferenças exige alteridade.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss sugere como estratégias humanas duas formas de relação quanto ao reconhecimento da alteridade dos outros. Uma antropoêmica, outra antropofágica. A primeira sustenta a necessidade de manter afastados os tidos como estranhos, “vomitá-los” dos lugares de convivência, negligenciá-los de qualquer contato que configure uma interação social. Zygmunt Bauman descreve como “refinamento” dessa estratégia “o acesso seletivo a espaços e o impedimento seletivo a seu uso”.

O conceito se aplica muito bem aos sistemas de acesso ao ensino de nível superior sustentados pela lógica tecnocrática de exigência de requisitos prévios e de certificações desconexas, usadas para delimitar o grau de legitimidade dos níveis de conhecimento supostamente necessários. Ainda que se enxergue mudanças no processo de reconhecimento e acesso ao sistema educacional, estarrecem os números quanto aos descartados, desprovidos de "oportunidade".



Acesso seletivo e impedimento seletivo sobre o uso dos espaços no ensino superior 
tem lá suas vatagens. Essa estratégia sustenta-se na competitividade como componente 
indispensável para o sucesso em sociedade. Alimenta o desejo por objetos de 
consumo que nos proponha "vantagens".

A segunda estratégia sugerida por Lévi-Strauss, a antropofágica, sustenta-se na ideia de “aniquilação” ou “suspensão” da alteridade dos outros. Consiste em “devorar” os estranhos no sentido de possibilitar minimamente a convivência com eles. Uma alusão possível e também refinada dessa estratégia é o espaço da aula. Diante da “sacralização”, da “canonização” do conhecimento disciplinar, percebe-se uma dose de antropofagia intelectual, em que os “aprendizes” são submetidos a uma certa violência simbólica sustentada na autoridade de “quem sabe” e fundamentada na própria estrutura acadêmica, que teima em “regurgitar” os não adeptos.

Neste contexto, tais estratégias se complementam e se consolidam no discurso sobre o rigor tido como necessário para o que academicamente chamamos de construção do conhecimento. Rigor, via de regra, sustentado pela autoridade docente, não no diálogo com os saberes. Seleção antropoêmica e antropofagia intelectual se configuram em ambientes desprovidos de integração; no caso do ensino superior, de vida acadêmica. Os nichos e guetos são perceptíveis nas estruturas cindidas e fragmentadas das Instituições de Ensino Superior.

Ao mesmo tempo, enquanto objetos de desejo, os “produtos e serviços” acadêmicos (públicos e privados) servem-se de expedientes culturais para engendrar um sentido de “comunidade”, em que o princípio de unidade se dá “tanto pelos valores que estimam quanto pela lógica de conduta que seguem”, segundo Bauman. Dito de outro modo, primeiro expurgam-se os desprovidos de condição intelectual ou econômica, incapazes de ocupar o nobre espaço de construção de conhecimento, reconhecidos como “estranhos”. Depois, o ambiente ocupa-se de moldar os adeptos à lógica do espaço em questão. São lugares cuja imponência se dá pela imagem de inacessibilidade para “os de fora” e cujo sentido de unidade conforta os “de dentro”.


Caracterizados como objetos de desejo, os espaços acadêmicos não são para qualquer 
um. Não basta atravesar a fronteira que institui tais espaços. É preciso ser como quem
 já está nele; as compensações falam por si mesmas.

O antropólogo Marc Augé acrescenta um terceiro olhar sobre esses ambientes: os não lugares. Neles não se pode “ler” a identidade dos que o ocupam, suas relações e a história que compartilham. São lugares que “não integram nada, só autorizam, no tempo de um percurso, a coexistência de individualidades distintas, semelhantes e indiferentes umas às outras”. Mesmo junto com os outros, mas sempre sós, os “passantes” estabelecem uma relação de unidade sempre contratual, cujos símbolos identificam e autorizam circunstancialmente os deslocamentos.

Os símbolos acadêmicos, aqui representados por diplomas e titulações, pode-se dizer, já não sustentam um ambiente constituído pelos deslocamentos no percurso de uma construção coletiva, de vínculos afetivos e regras de convivência decorrentes dessa relação. Diplomas e titulações parecem muito mais simbolizar, para usar uma expressão de Augé, as “tensões solitárias” dos lugares de ocupação compromissados com a trajetória na busca por objetos de desejo para consumo próprio; sempre por um momento.

Diríamos que é para os símbolos que o percurso acadêmico está organizado; não para a consolidação do espaço. Explicitando melhor: o percurso está para diplomas e títulos, não para o processo de configuração permanente de saberes na construção de conhecimento. Importante ressaltar que, na concepção de Marc Augé, os não lugares são caracterizados assim por quem os ocupa; eles não se caracterizam a si mesmos. Portanto, não é da universidade enquanto instituição que estamos falando; mas enquanto organização.


As soluções para os problemas que nos afetam estão confinadas a lugares excessivamente 
preocupados com o controle dos conteúdos, da carga horária... uma relação que estimula 
muito pouco a busca de compartihamento de saberes para construir proposições inovadoras 
de sentido. Não percebemos os espaços vazios. Eis o obstáculo político a ser superado.

Um quarto olhar pode, ainda, ser acrescentado: o dos espaços vazios. Sucintamente, poderíamos descrevê-los, a partir de Bauman, como alijados de nossos mapas mentais. Seriam como lugares potencialmente vivos, mas não vistos. Estão fora de nossas listas de possibilidade justamente porque dependem de outras estruturações conceptuais para materializarem-se. Estruturações que nos levariam, obrigatoriamente, ao desconforto de mudar de lugar, deixar os espaços reconhecidamente preenchidos.

Ao remetermos o conceito para o campo da educação, poderíamos fazer alusão às condições de possibilidade novas, pensadas, eventualmente propostas mas descartadas pela falta de “consenso” sobre sua “eficácia” ou falta de clareza sobre as bases nas quais se estruturam enquanto possibilidade. Num certo sentido, não vemos os espaços vazios pelo próprio lugar de observação que ocupamos. Quanto mais preocupados com o lugar de ocupação mais distantes dos novos mapas conceituais que nos permitiriam percebê-los.

Entre os lugares de seleção antropoêmica, antropofagia intelectual, não lugares e espaços vazios há um sentido político que só pode ser engendrado sob novas concepções de alteridade, novas concepções de valor e novas regras de ocupação, voltadas para as relações em sociedade e não para o compromisso com metas e objetivos (institucionais ou individuais). Estamos falando, portanto, de inserir no processo de formação o sentido das relações que estruturam o que chamamos de realidade. Dito de outro modo, formar para o mercado por exemplo exige entender o que forma o mercado.

Em educação, os projetos dependem das respostas aos sistemas de avaliação que mensuram seu grau de validade. A priori, as propostas acadêmicas precisam prever, com certo grau de precisão, aonde pretendem chegar. Há uma taxonomia a serviço dessa projeção que nos ajuda a localizar em que estágio estamos; o que falta e o que sobra em termos de estrutura para a viabilizar a projeção. Essa taxonomia diz respeito a tudo que já está definido no contexto educacional e é de extrema importância para a construção de mapas de referência.


As estruturas educacionais movimentam-se diante de nós propondo flexibilidade 
suficiente para que possamos conciliar desejos. Contudo, as mesmas estruturas são 
rígidas demais quanto a negociações sobre o processo. Ou nos moldamos, ou desistimos.

Acontece que, quando ela está a serviço dos símbolos que legitimam o conhecimento (titulações e certificações por exemplo), toda e qualquer alteração de rota rumo aos espaços vazios é vista como decorrente de um corpo estranho que precisa ser “regurgitado” ou “devorado”, dependendo dos riscos calculados na relação. Se a estranheza for demais, melhor o exílio; se for passível de cooptação, melhor digerí-la, mesmo que quando “do lado de dentro” ela provoque pequenas alterações de metabolismo. E assim vão-se instituindo os lugares de ocupação sempre passageiros, destituídos de pertencimento e compromisso com o ambiente e suas normas de convivência entre “os de dentro” e “os de fora”.

Vida acadêmica é antes de tudo vida. Se quer dizer com isso que não se pode propô-la sem que haja um ambiente arejado, sem que seus “lugares epistemológicos” se abram para percepções novas, para formas de expressão diversificadas, para além dos catálogos, das coleções, dos cânones. No contexto de uma educação que se proponha permanente, é preciso constituir espaços sociais de aprendizagem capazes de fazer circular por eles saberes diferentes, intenções diversificadas, interesses distintos, mas comprometidos com uma construção coletiva de oportunidades, de perspectivas e de conhecimentos.

Ao compreender que a “democratização da universidade mede-se pelo respeito do princípio da equivalência dos saberes e pelo âmbito das práticas que convoca em configurações inovadoras de sentido”, para usar uma expressão de Boaventura de Souza Santos, o espaço social de aprendizagem decorrente dessa reconfiguração fundamenta-se pela possibilidade de movimento constante em busca de conhecimento, independente de níveis, graus e requisitos prévios, certificações e titulações legitimadas.

Mas que fique claro: a possibilidade de movimento sustenta-se pela necessidade de se estar permanentemente no espaço em configuração.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Educar para as possibilidades é abrir perspectiva para os possíveis disponíveis

Educar para as possibilidades significa negociar e construir ferramentas para pensar e agir em situações sempre novas, muitas delas centradas em problemas que sequer surgiram. Essa concepção de educação vem ganhando corpo em função das constantes mudanças e das incertezas diante da vida e do mundo, características tidas como elementares na sociedade atual. E, de fato, há pouca probabilidade de percebermos nossa existência sem que esses elementos nos conduzam a dilemas profundos quanto às perspectivas de ter o que dizer nestas circunstâncias. Parafraseando Zygmunt Bauman,
(...) a filosofia e a teoria educacionais enfrentam a tarefa pouco familiar e desafiadora de teorizar um processo formativo que não é guiado desde o princípio pela forma do alvo projetada de antemão; moldar sem conhecer ou visualizar claramente o modelo a ser atingido; (...) em resumo, um processo com final aberto, mais preocupado em permanecer assim do que com qualquer resultado específico e temendo mais qualquer encerramento prematuro do que buscando evitar a perspectiva de permanecer para sempre inconclusivo (A sociedade individualizada, 2008, página 177).
A afirmação não traz, em si mesma, qualquer reflexão que não sejamos capazes de fazer. Mas pela tradição epistemológica que sustenta o processo educativo e suas referências conceituais, assertivas como esta legitimam as ações em termos de projeto, incluindo a avaliação dos resultados. Aqui cabe uma ressalva: Bauman não é uma referência canonizada no campo da educação; e, pela característica descrita aqui por ele mesmo, talvez jamais venha a sê-lo. Voltemos à afirmação: o que ela nos traz de imediato é a inquietação quanto ao lugar que ocupamos como educadores. Estamos mais para a tradição epistemológica, ainda!

Significa dizer que as possibilidades para as quais estamos preparados a "ensinar" são as testadas pelas metodologias da ciência e referendadas pelas teorias dos cânones. Isso é ruim? Em princípio, não. Romper com a história do pensamento não parece uma atitude sensata para quem pretende pensar o novo. Romper com as concepções construídas a partir dessa tradição também não ajuda a conceber alternativas. O problema está no confinamento: a ciência não nos trouxe um mundo melhor justamente porque suas verdades são mais verdadeiras do que outras.

Concepções em modelos

Nos útlimos dias, algumas afirmações vindas de lugares aparentemente distintos contextualizam o que dizemos aqui. Diane Ravitch, ex-secretária adjunta de Educação nos Estados Unidos, sustenta que o modelo que ela mesma ajudou a consolidar não trouxe uma educação melhor para o país. Se considerarmos que o modelo está sendo adotado em vários lugares do mundo, incluindo o Brasil, a afirmação é importante. Segundo Diane, o sistema que responsabiliza os professores pelo processo está formando pessoas capazes de responder a avaliações, essencialmente. E melhorar a educação não é melhorar as pontuações nas provas.

Visão semelhante tem o físico alemão Andreas Schleicher. O diretor de Programas de Análise e Indicadores em Educação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e responsável pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) sustenta um modelo de educação menos centrado nos currículos. Adverte Schleicher que a aprendizagem não é um lugar e que, portanto, não pressupõe padrões; a aprendizagem é uma atividade que requer ritmo e espaço próprios a cada indivíduo. Nisso reside o desafio da educação.

Apenas para corroborar com os pontos de vista e trazer o debate para o Brasil emergente, também o ministro da Educação, Fernando Haddad, parece preocupado com esta questão. No encerramento da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ele sustentou que os vestibulares estão sobrecarregando o ensino médio. Logicamente, o discurso está centrado na "eficiência" do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como substituto para o processo seletivo inscrito na tradição das Instituições de Ensino Superior. Mas a referência é válida, na media em que põe em cheque o ensino para provas e processos seletivos em substituição a um processo mais aprofundado quanto às questões que nos afetam.

As três visões sustentam os mesmos pressupostos de Bauman, mas dão sentidos distintos quanto ao que se propõe como ferramenta. O sociólogo polonês não fala de capacitação para o uso de novas tecnologias ou para profissões que ainda não existem; não fala de critérios economicistas de desenvolvimento tampouco de currículos que valorizem cada indivíduo pela sua capacidade de consumo. A assertiva de Bauman está alicerçada na possibilidade de construção de laços suficientemente consistentes para transformar os coletivos humanos em algo que possamos chamar de sociedade.

Sombras do possível

Siegfried Zielinski nos fala em aprender a seguir pistas. Significa aprendermos a reconhecer "eventos e movimentos" resultantes dos meios culturais e técnicos com os quais construímos nossa realidade. E isso pressupõe "manejo", muito mais que poderes sobre os quais sustentamos nossas trajetórias. Em outras palavras, educar para as possibilidades é manejar um processo de construção coletiva quanto aos critérios de sociabilidade e suas decorrências. Sem isso, o possível torna-se "sombra da realidade", profundo equívoco da filosofia segundo Ludwig Wittgenstein. Zielinski prefere uma outra concepção a partir de sua própria experiência:
Em relação às pessoas, às ideias, aos conceitos e aos modelos que encontrei durante essa trajetória de busca anarqueológica [do tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir], esse ponto de vista [da filosofia como sombra da realidade] é virado de cabeça para baixo: seu lugar de morada é o possível, e a relidade, que de fato aconteceu, torna-se uma sombra, em comparação (Arqueologia da Mídia, 2006, página 46).
Há muitos possíveis disponíveis, como acrescenta Isabelle Stengers. Mas eles não estão em exposição e à escolha em função das circunstâncias. Os possíveis disponíveis estão na capacidade de construirmos referências para "transformar e subverter a paisagem dos conhecimentos". Para tanto, é mister romper com juízos de valor que reduzem as práticas humanas a modelos que confinam saberes; educar para as possibilidades é reconhecer nos enunciados a experimentação mesma de narrar possíveis, com o intuito de gerar disponibilidades para as ações coletivas que se pretendam sociais. E ainda não há instrumentos de avaliação capazes de mensurá-los.

Ao analisarmos os dados referentes à educação no Brasil, a partir de um projeto sustentado na quantificação de resultados para elevar os índices do país em rankings construídos por instituições econômicas; ao verificarmos o ranqueamento de escolas em função de exames de desmpenho que desconsideram a experiência de viver situações-problema; ao propormos nossa adequação a um modelo de avaliação pensado para fazer gestão sobre seus resultados, reduzimos o sentido de educar. Talvez porque o problema esteja na adoção de um modelo, obrigatoriamente. Um modelo que vinga por descartar outros possíveis disponíveis.