quinta-feira, 2 de maio de 2013

Quando o conhecimento tem significado mas não faz sentido

Em 2012 a OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, publicou  "estudo" sobre a Educação em 34 países. Referência interessante, usada inclusive pelos meios de comunicação brasileiros como principal informação: o Brasil é o país com maior potencial de diferença nos salários pagos a quem tem e quem não tem um diploma de ensino superior. Vamos explicar melhor: há áreas que pagam quase três vezes mais para quem tem no currículo um curso superior completo. E 86,5% dos que conseguem terminar uma graduação, segundo os dados publicados, estão empregados.

Mas se considerarmos que 49,3% da população com 25 anos ou mais sequer completou o ensino fundamental, vamos entender o abismo em que mergulhamos ao lidar com os dados estatísticos sobre educação no Brasil. E talvez o porquê de tamanha diferença entre salários com e sem pedigree. O Censo Demográfico de 2010, organizado pelo IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, relaciona o rendimento per capita com o "grau de instrução": quanto maior a fonte de renda, mais alto o percentual de titulação acadêmica e, portanto, considerados os dados da OCDE, maiores as oportunidades.

A mobilidade social tem se demonstrado mais próxima de quem investe nos "estudos", de quem investe no conhecimento. Mas o que os dados não revelam, não explicitamente, é que a titulação, o "grau de instrução" ou como queiramos chamar para fins estatísticos, não representa diretamente o conhecimento em termos significativos. Em muitos casos, basta o diploma para um aumento no salário; não são levados em conta os fatores inscritos no tipo de estudo, na relevância do trabalho... O que muita gente chama de "meritocracia" não passa de um sistema de progressão automática, que engorda os índices de aferição meramente econômica.


Rubem Alves e o conhecimento significativo. O que faz sentido para a vida é que ganha significado.

Outro dia conversava sobre as perspectivas do ensino com um grupo de amigos. Nem chegamos perto de discutir sobre a educação. Questionaram-me quanto à resistência que nutro em fazer cursos de mestrado e doutorado para "qualificar" minhas funções na universidade. Como esses cursos têm um senso bastante estrito, é muito difícil negociar o que se pretende desenvolver em termos de estudo; ou você aceita as regras ou aceita as regras. Então alguém fez um comentário assim: "eu gosto de ser aluno, você não?". Minha resposta, intuitiva e quase imediata: "eu gosto de estudar; mas de ser aluno...". Não me dei o tempo necessário para pensar na resposta. Mas, pensando agora, quando se é aluno, acho mesmo que há pouco espaço para quem gosta de estudar.

Numa atividade de formação pedagógica da universidade em que trabalho, a Unisul, alguém levantou a hipótese de preparar os estudantes para não "colarem" nas provas. Geraldo Campos, amigo e professor, surgiu com uma resposta inesperada: "eu incentivo para que meus alunos colem, que façam provas coletivamente, que discutam sobre as questões e que as resolvam juntos, em grupo". O senso comum na docência propõe o controle da aprendizagem pelos conteúdos considerados necessários num determinado fluxo de tempo. Há nesse controle uma reprodução dos aspectos administrativos a que os professores são submetidos. É um modo de organização criticado da docência para fora mas reproduzido nas salas de aula. Em todos os níveis de aprendizagem.

O professor é autorizado pelo que conhece. Sua autoridade está na legitimação dos saberes que acumula; e esses saberes estão legitimados nos títulos que alimentam seu currículo. O termo estudar ganha, neste contexto, um sentido tecnocrático: o professor estuda para produzir cientificamente, estuda para processos seletivos em função da carreira, estuda para "qualificar" o currículo, estuda para se atualizar quanto aos conteúdos de suas disciplinas... estuda para tudo o que faz sentido na sua vida. Na de seus alunos, não sei.

Se pensarmos no planejamento das atividades docentes, por exemplo: via de regra o professor pensa em tudo antes. Define os caminhos para o acesso às informações que julga necessárias, define o tempo a ser dedicado aos estudos, os tipos de trabalho que serão desenvolvidos... tudo que os estudantes irão realizar (juntos no jogo disciplinar mas sozinhos nas tarefas de materialização do conhecimento) tem um percurso pensado para que as variáveis escapem o mínimo possível. Ele mesmo, o professor, se põe fora do processo em construção porque personifica aonde se deve chegar, carrega a luz que falta aos alunos.

Mário Sérgio Cortella e a cautela imobilizadora. Na educação, uma cultura.

Conservo em casa o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, uma edição de 1948 organizada por Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso, revisto na "parte geral" por Manuel Bandeira e José Baptista da Luz, e na "parte de brasileirismos" por Aurélio Buarque de Holanda. Nele fiz uma consulta a respeito do termo estudar. À página 531, o verbete aparece com a primeira significação: "aplicar a inteligência a, para aprender"; em seguida, o termo estudo é denotado como "acto de estudar; aplicação do espírito para aprender".

É preciso levar em consideração que dicionários expressam o uso corrente da língua num contexto em que as palavras têm o valor do uso social que delas se faz no cotidiano. Em dicionários mais recentes, o termo estudar mantém o sentido, mas relaciona-se diretamente à ideia de adquirir conhecimento. Ora, há uma diferença abissal entre aplicar a inteligência e adquirir conhecimento. Considere-se também que, nas teorias educacionais, há uma perspectiva de deslocamento nas concepções de ensino e de aprendizagem para o ato de aprender.

Aprender não é somente adquirir conhecimento; o termo sequer expressa o ato de conhecer em sua dimensão plena. O ato de adquirir, inclusive, não é meramente ilustrativo nesse caso. É como se o conhecimento pudesse ser acessado em algum lugar, transportado para a nossa bagagem cultural através de papéis comprobatórios quanto à capacidade de dar respostas adequadas ao sistema que o organiza, o classifica, o disponibiliza. O lugar da docência nesse cenário é o de usar o compêndio de informações sistematizadas a que o docente teve acesso, e convencionou-se chamar de conhecimento, para transmitir conteúdos. O professor ensina para quem pode alcançá-lo, para quem joga o jogo disciplinar de seu domínio.

A estratégia de fazer com que os estudantes aprendam uns com os outros (como alertou o amigo Geraldo), que pensem nas soluções aos problemas que os afetam, que discutam os possíveis disponíveis no processo de formação... a estratégia de fomentar o diálogo com a vida e de aplicar a inteligência para aprender o que faz sentido em relação a ela ainda não cabe nos planejamentos pedagógicos formais. Planos de ensino, documentos em que se estabelece o quê e quando deve ser ensinado, poderiam ser substituídos por programas de estudo, propostas de diálogo com a vida, com as informações sistematizadas, com os saberes cotidianos e com os recursos ferramentais adequados a ações significativas. Ações conjuntas entre professores e estudantes.

Congregação do curso de Comunicação Social da Unisul, campus Pedra Branca, em 2009. Debate sobre 
o lugar da docência na educação superior realizado numa das reuniões de planejamento semestral. 

Somente 11,3% da população brasileira detêm títulos de graduação. E é esse o universo valorizado em termos salariais, segundo os dados da OCDE. No plano econômico, educação e instrução, aprendizagem e treinamento são sinônimos bem apropriados para justificar as concepções estatísticas que embasam a mensuração do desenvolvimento em quaisquer dimensões. No plano político, os investimentos recaem sobre estruturas que mantêm o rumo apontado pelas estatísticas. Os "estudos" quase nunca refletem a aplicação da inteligência para aprender algo que realmente transforme; nossas fontes de referência não passam de compêndios usados ao sabor de quem domina a linguagem douta que os legitima. E é no plano científico que mais se ensina a adquirir conhecimento, algo bem distante da aplicação do espírito para aprender.