terça-feira, 15 de março de 2011

Harvard, Kamkwamba e os possíveis disponíveis: multivalências da paisagem em educação

William Kamkwamba é uma dessas figuras emblemáticas do mundo contemporâneo. Personifica todas as expressões usadas em pleonasmo para descaracterizar pela retórica a profunda ligação entre os termos que designam exclusão. Diante da pobreza, da fome e da impotência decidiu investir no conhecimento. Sem possibilidades de frequentar a escola, achou seu rumo numa biblioteca. Os livros lhe deram figuras através das quais construiu um gerador de energia para sua aldeia em Malaui, na África. Aprendeu sozinho a mobilizar os recursos de que dispunha para intervir na própria realidade e mudar a de todos.

Somos tentados a usá-lo como herói. Sua história tem todos os elementos dos mitos modernos: um garoto desafortunado que supera as adversidades e "vence" a própria sorte. Ou podemos enxergar nele um anti-herói: uma personagem-símbolo que eclode para nos mostrar o quão perversos são o sistema social e a cultura que preservamos; o quão conflituosos são nossos interesses, nossas idiossincrasias diante dos modelos mobilizadores que idolatramos. Kamkwamba pode jamais ser aluno de Harvard ou do MIT; mas tem lições a dar a todos os que por lá frequentam. Nas suas ações estão os valores mais importantes para o que chamamos de competência.

William Kamkwamba conta a experiência de criar um moinho para gerar energia
elétrica na casa onde morava com os pais, aos 14 anos. Palestra está disponível na
internet, legendada em várias línguas, numa rede social chamada TED (Tecnologia,
Entretenimento e Design) e que mantém uma plataforma de Educação com acesso livre

Do latim competere, o termo traz na raiz o sentido de pedir junto com, buscar junto com. Uma ordem econômica pautada na competitividade deu outro uso social ao termo. Competere passou a significar disputar junto com. Em educação o sentido de competência é controverso, subjaz de diversas correntes de pensamento e ganha contornos cheios de cuidados e especificidades. E assim deve ser, sobretudo para que não se confunda sobre as origens de onde se parte quando se usa um termo tão complexo. Kamkwamba desenvolveu capacidades para dar novo sentido ao lugar que ocupava e, portanto, suas qualificações nasceram com a própria proposta de transformação. Esse tipo de competência não é comum. Nem nas mais "brilhantes" instituições de ensino.

O que mais chama a atenção na história de Kamkwamba é que ele virou William. Sua "genialidade" lhe rendeu o status de cientista e empreendedor. Os adjetivos a ele imputados hoje são oriundos do modelo mobilizador que até então o havia excluído. Para o africano, agora, há um lugar reconhecido e legitimado; ninguém poderá ocupá-lo justamente porque surgiu de uma trajetória singular e estruturou-se num contexto nada ortodoxo. Talvez por isso Kamkwamba ainda cultue visceralmente a fonte de energia que mudou sua aldeia e abriu a ele perspectivas que um adolescente não imaginaria existir no ambiente em que vivia.

O africano, com status de cientista e empreendedor, palestra como
convidado no Massachusetts Institute of Technology, o MIT. Ele não
conseguiria entrar na instituição como estudante, mas tem muito a ensinar

Elite intelectual sem cor
Mudemos de personagem. Drew Faust anuncia uma visita de quatro dias ao Brasil a partir deste 23 de março. Reitora da renomada Universidade de Harvard desde 2007, a historiadora de 62 anos busca na internacionalização perspectivas de ampliação para o prestígio que a instituição representada por ela vem conquistando desde 1636. Harvard figura como a melhor universidade do mundo em diversos rankings organizados para medir desde o desempenho acadêmico até o valor da marca que estas instituições carregam. Faust é a primeira mulher a dirigi-la. Desnecessário dizer o quanto isso significa.

As atuais políticas de Harvard sustentam a necessidade de ampliar as oportunidades para "talentos" que não reúnem condições de arcar com os estudos. Sessenta por cento de seus estudantes têm algum tipo de bolsa. As políticas de acesso tentam privilegiar também a diversificação nos ambientes de aprendizagem. Vinte por cento dos estudantes são estrangeiros; e os da casa são estimulados a ter alguma experiência internacional já na graduação, muitos deles com incentivo financeiro. Segundo a reitora, um em cada quatro estudantes estadunidenses nos quadros de Harvard desenvolveu atividades acadêmicas fora do país no ano passado.

Drew Faust fala à Folha de São Paulo sobre sua visita ao Brasil e as políticas
de Harvard para conseguir novos talentos fora dos padrões de poder aquisitivo
convencionalmente aceitos pela instituição ao longo de sua história

Drew Faust simboliza os esforços de superar a crise financeira que abala as instituições acadêmicas privadas com uma visão menos centrada numa "elite branca". Mas a lógica que sustenta as oportunidades ainda é elitista. Seletividade antropoêmica, diríamos. É pelo potencial de desempenho acadêmico que se avalia o candidato. Neste sentido, não há mudança de paradigma. Os rituais e os valores ainda são os mesmos e para poucos. Os critérios é que são outros. Ainda não é politicamente correto execrar a segregação intelectual. Ou melhor, a elite intelectual não é mais só branca.

No caso de Harvard, o sentido de competência parte dos lugares desenhados para ocupação. Há, portanto, uma qualificação requisitada para a qual os interessados devem reunir referências. O discurso de acessibilidade, por mais interessante que seja e democrático que pareça, esconde numa suposta política meritocrática valores que reforçam o sentido de exclusão. As instituições de ensino, e Harvard é modelo a ser seguido, só estão efetivamente abertas aos que vão ajudá-las a se manter no topo dos rankings usados para se fazer gestão dos recursos financeiros destinados à educação.

Entre o registro e o controle
Não há uma única universidade brasileira entre as 100 mais reputadas do mundo no ranking da Times Higher Education, considerada a principal referência em avaliações do gênero. O índice de reputação, estruturado a partir de entrevistas com 13.388 acadêmicos com mais de 16 anos de trabalho em instituições de ensino superior e 50 artigos publicados, traz Harvard como a primeira da lista. No índice geral (cuja avaliação relaciona desempenho, estrutura e produção acadêmica) da THE, ela também lidera.

A imprensa brasileira, pautada pelo jornalismo fastfood de hoje, tem trazido ao debate informações relevantes, ainda que superficialmente tratadas. Consubstanciadas nos discursos oficiais a respeito do movimento educacional, fundamentadas em projeções, descontextualizadas, beiram a publicidade de ações supostamente importantes. É preciso ter uma universidade entre as 100 melhores do mundo? Claro que sim! Não podemos prescindir, como país emergente, como um BRIC, do status geopolítico que isso representa. Mesmo que nossa educação básica ainda dependa de tanto a ser feito e que nossos professores sejam tão desvalorizados.

O Brasil é o 88° país no ranking de educação da UNESCO. Estamos muito longe das metas traçadas para 2015 na Conferência Mundial de Educação de Dacar, em 2000. Reconheçamos, e os mesmos índices apontam isso, o Brasil está entre os que mais investiram na educação ao longo deste período. Lidos separadamente, os dados parecem incoerentes. Não são. A tangibilidade dos investimentos no caso da educação não pode ser reduzida a índices, ampliações de acesso meritocráticas, tampouco quantificações de toda ordem. Os processos de gestão precisam desses insumos desde que qualificados por tomadas de decisão orientadas em paisagens muito mais amplas.

Harvard e Kamkwamba são ambivalências de uma paisagem cultural cujos contornos podem ser apenas presumidos. Aos 14 anos, o africano então semianalfabeto ganhou notoriedade por conta das redes sociais e dos projetos viabilizados por uma cultura de colaboração e interessados em difundir ideias, venham de onde vierem. Kamkwamba não é um gênio; e é genial por isso mesmo. Harvard, com os 44 prêmios Nobel, as pesquisas de ponta, as patentes registradas e os ilustres estudantes que ajudou a formar  talvez não tenha construído algo tão significativo quanto um gerador de energia feito de restos de material numa aldeia africana sem a ajuda professoral dos rituais acadêmicos.

Modelos mobilizadores são praxeomórficos. A educação brasileira merece um lugar nessa diversificada paisagem cultural que valorize Harvard, Kamkwamba e os possíveis disponíveis em escalas tangíveis e perspectivas intangíveis. Está no registro de nossa riqueza cultural e não no controle dos processos de ensino e de aprendizagem a resposta para nossas angústias. Afinal, podemos não ter uma Harvard em nosso sistema edicacional, mas não sabemos quantos Kamkwambas andam por aí investindo em soluções para problemas que a "elite intelectual" finge não existir mais.