sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Sobre esquinas e manhãs seguintes


Tenho por hábito, vez em quando, fazer leituras aleatórias num mesmo livro. Abrir uma página qualquer e a partir de um ponto qualquer começar uma leitura desprovida de métodos "canonizados". Qualquer livro. É uma dessas atitudes necessárias para manter a saúde mental, sobretudo quando a palavra impressa está em jogo. Fico vagando pelos parágrafos a procura de algo que me fixe por mais tempo. A leitura pode durar uma manhã ou terminar na primeira frase. Divertido; divertido profanar palavras alheias. Os que me lêem agora, à vontade.
"... sem algum outro lugar além de um número específico de próximas esquinas e manhãs seguintes, não há e não pode haver humanidade".
Essa frase surgiu numa destas viagens de profanação. É de Zygmunt Bauman, escrita num livro que ainda não li (pelo menos com método "canonizado"). Engraçado, sempre ele. Uma das coisas a que me proponho mudar em 2011 é abrir espaço para outros "pensamentos". Não que eu vá dispensá-lo; Bauman é, para mim, uma dessas figuras carismáticas cujo pensamento vem carregado de sabedoria. Suas abstrações estão bem aqui ao lado. E isso me conforta: saber que pensar é também agir. As palavras em Bauman têm vida porque as vemos todos os dias nas ruas. Ele não é o único com esta capacidade, claro. É só uma questão de escolha; no atual contexto, aleatória.

Digressões, digressões...

Fiquei imaginando a que outro lugar Bauman poderia estar se referindo. Só consigo ver um número específico de próximas esquinas e manhãs seguintes. Até pensei em usar o método "canonizado" de leitura para tentar entendê-lo. Desisti! Preciso achar este outro lugar sem a ajuda divina. Esse compromisso assumi há algum tempo. Os orientais entendem que todo o caminho para a salvação é errático e precisa ser trilhado sozinho. Não há salvação fora dos passos que escolhemos. É neles que está a resposta. E Bauman me vem com esse tal outro lugar.

Os movimentos contemporâneos são estranhos: troca-se, quase sempre, o benefício da dúvida pelas certezas. Nossos lugares de ocupação são mais fixos e rigorosos do que nunca. As responsabilidades inerentes a esses lugares resumem-se a promover espasmos periódicos. Regurgitam-se velhos conceitos sem, essencialmente, mudar o rumo das prosas. As esquinas e manhãs seguintes são rigorosamente iguais não importa quantas vezes passamos por seus espasmos. Será esse o sentido que Bauman quis dar a esse tal outro lugar?

Não importa! Se a leitura é aleatória, posso usar a ideia para expressar o que penso. Esse outro lugar precisa ser ali adiante; ali onde não há esquinas pré-fabricadas com soluções postas em prateleiras para consumo; ali onde as manhãs seguintes não respondem a cronologias, são manhãs kairológicas, daquelas que fazem sentido não importa a que tempo nem quantos a viveram num dado momento. Esse outro lugar está no vazio das ações não instituídas, das atitudes desprovidas de legitimidade. Está no fardo que a história impõe à paciência.

Enxergar em 2011 uma cara de outro lugar é um desafio e tanto. É preciso fazer, para isso, que suas manhãs seguintes não sejam devoradas pelo Deus Chronos e suas próximas esquinas estruturem-se pelo potencial de situação a cada instante. O vazio é sempre o lugar que não ocupamos; por que então ocupar sempre o mesmo lugar? Não perguntem a Bauman. Ele já tem suas respostas. Perguntem a si mesmos sempre que tiverem oportunidade.