sexta-feira, 16 de março de 2012

Por um lugar epistemológico para a Educação

Não há o conhecimento como um todo disponível aos interessados. Há um estado da arte em que se pode acessar o compêndio de informações legitimadas sobre nossa "realidade". E é sobre esse compêndio que se institui a autoridade quanto ao que se pensa e o que se diz a respeito dos objetos e dos fenômenos que nos "cercam"; é em torno dele que gira o processo educacional. Interessante, porque propõe uma finalidade para a Educação e determina como organizá-la.

Uma ilustração: nas últimas cinco décadas o sistema educacional brasileiro tratou de organizar, entre muitas outras coisas, as áreas do conhecimento humano, entendidas como fundamentais para o desenvolvimento acadêmico-científico. Um compêndio de leis, pareceres e resoluções tratou de dar existência e normatizar o sentido para essas áreas. A Filosofia, por exemplo, ganhou um lugar dentro das Ciências Humanas. Uma contradição, na medida em que sem a primeira não existiria a segunda.

Vamos separar, então, o compêndio sobre o pensamento filosófico (para ser redundante) e a Filosofia. Dentro das Ciências Humanas temos um compêndio de informações sobre as referências que permitem estudar a Filosofia e (re)conhecer as escolhas que legitimam o que deve ser cultuado sobre o rico e inesgotável pensamento humano. Portanto, o máximo que as Ciências Humanas podem oferecer à Filosofia é dar ciência ao que se tem catalogado sobre as abstrações e, porquê não, as aplicações institucionalizadas das referências a ela.

Dentro das Ciências Humanas a Filosofia está pedagogizada, higienizada enquanto referência a respeito de seu confinamento. É como se o pensamento filosófico só fosse possível dentro de sua própria ciência; uma evidente forma de domesticá-lo. Não há possíveis disponíveis senão dentro do compêndio existente sobre o pensamento filosófico. Portanto, a Filosofia é para filósofos, para eleitos institucionalizados como representantes de sua ciência; cânones imortalizados por aquilo que evitaram ao longo de sua existência: domesticar as ideias pela linguagem erudita e dogmatizar os dizeres ensimesmados de um olhar sobre o mundo.

Sugata Mitra e suas experiências com aprendizagem sem professor, usando ferramentas modernas
em lugares pouco ortodoxos para o investimento em tecnologias de ponta.

Mas voltemos à Educação, ela própria uma área das Ciências Humanas. Assim como a Filosofia, ela se concebe num confinamento. Mas é preciso reconhecer uma perversidade maior nesta relação. Isso porque o compêndio referente à Educação tem um caráter explicitamente aplicado. Enquanto área ela não está pedagogizada, higienizada; ela é a pedagogia e a razão de higiene. Não vamos aqui perder tempo com tentativas de "desdizer" equívocos interpretativos a respeito do que este texto propõe. Vamos eliminar o tal didatismo responsável pela domesticação dos sentidos e pela homogeinização das contradições.

Só dentro das Ciências Humanas a Educação se concebe, dizem as referências sobre o conhecimento a seu respeito. É, portanto, necessário conhecê-la para que alguém possa legitimar-se como educador. É preciso aprender a educar dentro de sua própria ciência e, portanto, domesticar-se quanto às suas finalidades e processos. A Educação tem hoje um lugar na epistemologia mas está longe de ser um lugar epistemológico. Falta-lhe o propósito, aquilo que a constitui.

O lugar destinado à Educação no catálogo das epistemes é resultado de seus "objetos e métodos", dos conhecimentos interrelacionados e coletivamente construídos para fins de ensino, de pesquisa e de aplicações práticas. Pelo menos é o que dizem os documentos que justificam a classificação. Seu confinamento, portanto, não é por acaso. Não há um propósito para a Educação neste contexto; há para seu enquadramento. O espaço em que este lugar se inscreve é o das práticas da razão instrumentalizada para o fazer científico, delimitado pela tecnocracia e pelos repositórios de informação legitimada a seu respeito.

Bunker Roy e seu college dos pés-descalços, um espaço de aprendizagem pautado pela negociação
dos saberes e pela organização com base nos interesses coletivos da vida em sociedade.

Para ser um lugar epistemológico a Educação precisa romper os limites das Ciências Humanas. Ela deve estimular a negociação de seus processos e admitir múltiplas finalidades a si mesma. É num espaço de aprendizagem socializado em razão dos laços afetivos, das memórias compartilhadas, do reconhecimento do Outro pela solidariedade ao diferente, da livre circulação de diferentes saberes que a Educação deve se (re)conhecer. E sua ciência também cabe neste contexto, claro! Não como determinante, mas como um possível disponível enquanto referência.

Num espaço de aprendizagem não há professores e alunos, ou melhor, todos o são; não há requisitos prévios para a busca de soluções; não há arbitrariedade quanto às escolhas do que deve ser aprendido. Reconheçamos, nosso sistema atual não concebe essa despedagogização porque legitima a Educação apenas enquanto ciência humana. Disso depende toda a lógica de organização dos saberes escolares, do tempo pedagógico pautado numa cronologia e na chancela do que deve ser aprendido; disso depende a capacitação dos educadores, cuja finalidade principal parece a de atender aos padrões de resposta esperados para os pseudoproblemas que levantamos.

A Educação não pode ser vista como meio para acesso ao conhecimento. Primeiro porque não há o conhecimento a ser acessado. A relação entre ambos se dá pelos possíveis disponíveis quanto às finalidades envolvidas, os propósitos acordados. E, depois, o compromisso de conduzir os processos de aprendizagem não está em quem detém o poder de decisão sobre o estado da arte a ser adotado, tampouco nos territórios delimitados pela apropriação autoral de certos pensamentos. O potencial de desenvolvimento humano depende de um lugar epistemológico inscrito em espaços delimitados pelo (re)conhecimento de seus possíveis disponíveis e não pela disponibilidade de acesso ao conhecimento eleito arbitrariamente como única alternativa.

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