domingo, 7 de dezembro de 2008

O lugar da universidade (2)

Voltemos ao antropólogo Marc Augé. Quando ele aborda o conceito de não-lugar, seus argumentos nos levam a um lugar sem identidade, sem história e sem laços de relação. Portanto, o não-lugar é um lugar. O termo não é usado para negá-lo, mas para caracterizá-lo como destituído de vínculos. Nele não há acontecimentos, não há experiências significativas, nele não há. Em essência, não há.

O mais interessante, contudo, é que esse não-lugar só se evidencia a partir de nossa, digamos, não-presença. Os moradores de uma aldeia indígena no Xingu, por exemplo, têm uma relação com o lugar de ocupação, o lugar onde vivem, diferente da nossa. Nós construímos uma referência desse lugar sem nunca tê-lo “presenciado”. E o mais interessante é que, via de regra, tendemos a achar que o conhecemos tão bem quanto seus “moradores”. Notem: o lugar aqui inclui as relações, os laços, a história e uma identidade para eles. Para nós, não. Para nós, essa aldeia no Xingu é um não-lugar.

E a universidade? Quando nos restringimos ao lugar de ocupação, sua estrutura física por exemplo, nós a localizamos num mapa. Pode-se definir sua localização como referência. Mas isso não a constitui como um lugar, na concepção de Augé. Sem os laços que referendam sua história e sem a presença dos que constroem suas identidades, a universidade é um ponto de localização e observação no espaço. Um corpo vazio. Um não-lugar.

É preciso transcender o lugar de ocupação para dar sentido à universidade. Seu lugar de instituição é muito maior (no sentido espaço-temporal) que seu lugar de ocupação. Na verdade, seu lugar de instituição é o seu lugar de ocupação. É o que a coloca no mapa que a transforma num ponto a ser localizado e observado. Há quem passe por ela sem nunca ter estado. Há quem passe por ela como alguém que a observa num mapa de localização. Para esses, a universidade sempre terá sido um não-lugar. Como quem assiste a um comercial de TV e sonha com uma vaga no ensino de terceiro grau pela pseudo-referência das imagens e sons que o sensibilizam. Ou imagina conhecer a aldeia indígena do Xingu sem nunca tê-la "presenciado".

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O lugar da universidade (1)

"Horário nobre", emissora “líder de audiência” em TV. Por 60 segundos, a universidade se mostra como objeto de desejo; como o lugar certo para um futuro desejável. Belas imagens (quase todas sem relação com o ambiente universitário), música aconchegante, a mensagem é um convite ao sonho. Vista ainda como lugar das elites, dos privilegiados, dos intelectuais, a universidade se configura numa miragem. Não é o lugar em que os saberes convergem, criam, dão sentido ao mundo; mas o lugar de garantias quanto à ascensão social e ao sucesso no mundo do trabalho. Estereótipo contemporâneo dos mitos modernos.

Sobram vagas; as Instituições de Ensino Superior entraram definitivamente no mundo competitivo. Segundo o Censo do Ensino Superior, divulgado anualmente pelo Ministério da Educação, 44,9 % do total de matrículas não foram efetivadas no Brasil em 2006. Isso representa quase 1.200.0000 vagas não preenchidas. Há, de um lado, a alta seletividade do ensino gratuito; de outro, o alto custo das mensalidades em instituições pagas. Nos níveis de aprendizagem que antecedem o ensino de terceiro grau, os índices de qualidade são baixíssimos e os de evasão, altíssimos. O país mantém sua demanda por educação reprimida entre a incapacidade intelectual e a econômica. Mais adiante, menos de 50% dos que se tornam capazes de ascender ao ensino de terceiro grau concluem seu curso no tempo previsto.

O antropólogo francês Marc Augé mensura o estágio atual da modernidade pelo excesso de informações, de imagens e de individualismo. O excesso de informações fragmenta nossa percepção de contexto; o de imagens impõe a percepção de que parece não haver outra realidade além do que elas mostram; e o de individualismo, pautado pelo consumo, dilui as mediações institucionais em detrimento dos meios de comunicação. Um lugar com estas características é destituído de identidade, não oferece possibilidade de relações siginifcativas e não tem história. Para o antropólogo, um não-lugar.

Nos posicionemos, então, diante da TV no "horário nobre", por 60 segundos que sejam, e incorporemos o indivíduo que sonha com uma vaga no ensino de terceiro grau. Não há contexto na mensagem comercial; a universidade posta na tela é uma ficção e as vagas que ela oferece concorrem com quaisquer objetos de desejo para consumo. Não há imaginário pior para uma instituição de ensino: ser substituída pela sua pseudo-representação. Não há imaginário pior para uma universidade: destituída de identidade, desvalorizada em suas experiências significativas e sua história; feita um não-lugar.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Polêmica posta em pauta. De novo!

Obrigatoriedade do diploma de Jornalismo: a recorrência a esse tema vem justamente das discussões sobre as decisões judiciais. Parece que só vale a pena discutir o assunto quando o diploma está em risco. Enquanto não se fizer uma discussão séria sobre o tema, estaremos sempre "pondo em pauta" (como na mais clássica visão de redação) a polêmica sobre quem está melhor preparado para ocupar postos no mundo do trabalho. Postos que, via de regra, reproduzem o mais vil dos discursos sobre a nossa sociedade: descontextualizado e autoritário (paradoxalmente aos anseios de democracia).

Um jornalismo que não se liberte das tecnologias como justificativa para uma produção de "qualidade", que não se sustente no rigor da apuração (como a ciência nos exige), não proponha uma expressividade mais sensível e criativa (como a arte nos sugere) e que não se envolva com os temas relevantes para a contemporaneidade deve mesmo ficar restrito a certificados de formação. Talvez Muniz Sodré nos dê uma pista sobre a essência desse debate. O diploma é o símbolo de um processo de formação (hoje reconhecido no campo da educação e no mundo do trabalho como permanente) com prazo de validade. Aliás, em muitos casos, quando chega a ser emoldurado seu prazo de validade já venceu. Quero dizer com isso que certificar um jornalista hoje, assinar embaixo de uma trajetória de formação e chancelar seu ingresso no "mercado de trabalho" tem muito pouco a ver com o papel que simboliza o fim de uma etapa desse processo.

Isso, claro, é válido em todas as profissões. Mas talvez não se possa fazer essa discussão sem envolver outros tipos de formação no campo da comunicação. Se é de um lugar de ocupação que estamos falando, o jornalismo deve respeitar outros lugares de ocupação nesse campo. Não vejo discussões sobre o fato de jornalistas estarem ocupando postos de trabalho de publicitários, relações públicas ou cineastas. E quando essas especificidades são "invadidas" pelo jornalismo (sobretudo quando não há postos de trabalho para todos os "diplomados"), que posição assumir? Essa discussão deve ficar no interior de cada especificidade do campo da comunicação? É possível identificar essas especificidades como fronteira? Se há jornalistas ocupando esses postos não regulamentados, isso já não evidencia uma suposta competência para além das fronteiras?

Se, por um lado, há um compromisso de "classe" para com a "qualidade" na formação, por outro, supõe-se que a sobrevivência dos cursos superiores de jornalismo depende disso. Consideremos, então, que os padrões de qualidade profissional podem ser comparados aos padrões de avaliação estabelecidos por uma comissão de especialistas, composta pelo MEC para mensurar a "qualidade" do ensino de jornalismo no país. Há aí uma imposição; a mesma que determina os padrões técnicos de produção. Escolas homogêneas, dominadas por um discurso hegemônico a respeito de como deve ser a formação.

O foco da discussão deve sair do lugar de ocupação e passar, definitivamente, para o processo de formação. O lugar de ocupação do jornalista não condiz necessariamente com o lugar de ocupação do jornalismo. O jornalista está alocado no mundo do trabalho como mão-de-obra (via de regra barata); o jornalismo, na sociedade, como atividade que sustenta o processo democrático nas relações de poder. Na visão clássica, passa, portanto, pela ocupação consciente dos postos de trabalho disponíveis nos meios de comunicação de massa a luta pela liberdade de imprensa e a mediação responsável entre as esferas de poder e a sociedade (sempre interpretada como ignorante e desinformada). É preciso, contudo, aprofundarmos os conceitos de "mediação", "consciência", "responsabilidade" e "liberdade" (só para começar!); e discutir, sem hipocrisias, o "futuro" dos meios de comunicação. O diploma que defendemos diz mais respeito ao ensino das coisas úteis a profissão ou ao ensino sobre a profissão propriamente dita (a pergunta é de Gabriel Garcia Marquez)? O jornalismo deve mesmo se libertar das epistemologias de onde subjaz e enveredar por seus campos idiossincráticos?

Parafraseando Muniz Sodré: se é o diploma que ainda garante a formação adequada aos comunicadores, VIVA A FORMAÇÃO QUE LEVA AO DIPLOMA! Para todas as habilitações, independente dos postos de trabalho decorrentes. Discutamos o campo da comunicação e realoquemos o jornalismo como exercício intelectual de interpretação do mundo, generoso na expressividade e sensível na percepção do que nos cerca. Ou, então, continuemos nesse jogo de imputar à instrumentalização profissional a garantia de um lugar de ocupação.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Um ensaio sobre o mal-estar do Jornalismo

Jornalismo é profissão? De acordo com o professor e pesquisador português Nelson Traquina, a resposta está na simbiose entre a atividade jornalística e as teorias democráticas. Traquina defende que o Jornalismo é considerado profissão se analisado a partir do desenvolvimento da ocupação. Fruto da industrialização e da publicidade como forma de financiamento da disseminação de informações naquela nova sociedade, o jornalismo merece o status de profissão como uma atividade de contra-poder. Tornou-se, por assim dizer, a mediação necessária entre as esferas de poder e a sociedade.

Em sua trajetória, a atividade jornalística construiu hábitos e valores, uma história de luta por reconhecimento, saberes argüidos como próprios e necessários para o exercício profissional, código deontológico específico e uma autoridade reconhecida pela estrutura social, ainda que com resistências. Tais pressupostos, para a sociologia das profissões, garantem a classificação: Jornalismo, definitivamente, é profissão! A questão é fugir do debate reducionista ligado ao domínio técnico e das linguagens, que expõe os profissionais da área como “meros empregados, trabalhadores numa fábrica de notícias”.

Divulgada em abril de 2006, pesquisa da Federação Internacional dos Jornalistas indicava um alto índice de frustração profissional com os salários e alertava para a queda de qualidade dos jornais por conta da constante substituição dos jornalistas mais experientes pelos mais novos. Sintoma da convergente volatilidade entre tempo, espaço e capital e da falta de um debate consistente sobre as condições de possibilidade. O documento contém a sistematização dos dados colhidos em 41 empresas jornalísticas de 38 países. Essa não é uma crise localizada.

A instituição do tempo real no processo de geração de conteúdos jornalísticos engendrou um modo de ser profissional calcado na velocidade. Um fetiche, na concepção da pesquisadora Sylvia Moretzsohn. Tal fetiche já transcende a idéia de notícia como mercadoria. Não é mais a notícia - pode-se assumir o risco de dizer - o produto caracteristicamente jornalístico; mas a supressão do tempo de apuração e disseminação de informações sobre os acontecimentos do cotidiano. Quando fontes e versões sobre os fatos são homogeneizadas, as técnicas de apuração e produção dominam o processo; ou pior, são o produto. E é ao domínio do tempo que se entrega o exercício, antes intelectual, de interpretação do mundo.

Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, nosso mal-estar reside na insegurança, na instabilidade e na incerteza decorrentes de uma suposta liberdade espaço-temporal. Desencaixado das estruturas outrora “seguras”, o indivíduo agora navega pelos fluxos do tempo e do espaço. Projetos de vida, politicamente sustentados em ações coletivas, deram lugar ao movimento no que Bauman define como “política-vida”. Antes de caracterizar-se como visão pessimista, a reflexão propõe a necessidade de um novo sentido na construção do mundo. Qual o lugar do jornalismo neste contexto? Onde estão os limites, as fronteiras que o separam das demais ocupações e, portanto, o caracterizam como profissão?

Se há uma ocupação para o jornalista hoje, essa é a do não-lugar. Na sociedade fluida, os não-lugares admitem passagens até longas de indivíduos tidos sempre como estranhos. Por mais tempo que dure a estada, não há espaço para idiossincrasias e subjetividades. Na concepção de Bauman, todos devem sentir-se em casa, mas não podem se comportar como se nela estivessem. O não-lugar do Jornalismo está tanto nas relações de força que o sustentam enquanto profissão quanto no imaginário de ocupação possível.

É paradoxal: as fontes de informação se multiplicam e as alternativas são usadas para denunciar o movimento das organizações que, supostamente, dominam o processo de comunicação. Jornalistas “usam da palavra” nos meios alternativos contra os meios hegemônicos em defesa de um não-lugar de ocupação. Mas só o fazem quando estão fora deste não-lugar; quando não representam a hegemonia homogeneizante da informação. Talvez para perpetuar um sentido democrático de contra-poder que ainda sustenta, como propõe Nelson Traquina, o ideário da profissão.

Há outro lugar, contudo, que Zygmunt Bauman descreve como característico da sociedade fluida: são os espaços vazios. Poderíamos descrevê-los como espaços não-vistos e, portanto, sem significado. E isso não significa que não existam. Fazem parte de um modelo mental que não os reconhece; nem como existentes nem como possibilidade. Se o Jornalismo é profissão – e isso já não parece pertinente, terá de construir novos lugares de ocupação. Entre o não-lugar desconfortável dos postos de trabalho voláteis e da mediação técnica cada vez menos necessária, e os espaços vazios do não visto como condição de possibilidade há potencialidades a serem percebidas.

A atividade intelectual, romantizada pela imagem da máquina de escrever, símbolo da liberdade contra as racionalidades totalitárias, vive o mal-estar do desencaixe; do deslocamento das estruturas que já não oferecem segurança. Se é fora do não-lugar que a resistência parece possível, que o seja então para construir novos mundos. Com a multiplicidade de ferramentas tecnológicas disponíveis para quem lida com a disseminação de informações, está na busca pela expressividade sensível das relações humanas a resposta para o movimento necessário rumo aos espaços vazios.

Jornalismo é profissão? A resposta está numa outra perspectiva para a ocupação do que se diz ser um exercício intelectual.