sábado, 30 de abril de 2011

Estratégias em jogo: entre o paradigmático e o praxeomórfico

Chamamos de estratégia os modos de pensar e operar o alcance de determinados objetivos. Os gregos usavam o termo para designar a arte, a qualidade, as habilidades do general, o "mentor intelectual" das batalhas. No âmbito da gestão, as analogias contemporâneas ainda estão neste campo de interpretação: a saúde traduz-se num conjunto de batalhas contra as doenças; o mercado, num conjunto de batalhas contra os concorrentes; a preservação ambiental, num conjunto de batalhas contra os poluentes; a educação, num conjunto de batalhas contra os baixos índices de desenvolvimento humano e por aí vai. Administrar tensões, em nosso modelo, é estar sempre em luta por algo ou contra algo, é superar os conflitos que esmaecem as metas a serem alcançadas. Estratégias são, portanto, imprescindíveis.

A visão contemporânea de estratégia é um modelo mobilizador do mundo dos negócios, competitivo e sem lugares aparentes para todos os interessados em ocupá-los. Neste contexto, grosso modo, alguém tem a visão, a projeta no futuro, estabelece a forma de alcançar as metas traçadas em projeção e promove intervenções cotidianas, planejadas em função de objetivos claros o bastante para os que precisam ver a mesma coisa lá adiante. Tal visão não se abre a outros possíveis disponíveis. O caminho é um só e trilhá-lo é um exercício cuja força deve ser suficiente para que a rota não se altere significativamente. Em suma, um estrategista mira no horizonte (um espectro amplo de possibilidades) os focos sobre os quais se deve ver o futuro. A redução de perspectiva justifica-se pela concentração de esforços numa mesma direção. Os olhos, então, fixam-se no modelo para otimizar o percurso.

Tentemos, contudo, adotar "outros olhares" sobre os ideários que permeiam essa visão de mundo. François Jullien, estudioso da China clássica, salienta uma concepção de estratégia bastante significativa para os dias de hoje. A eficácia das ações propostas pelos estrategistas chineses estava relacionada à sabedoria, não apenas ao conhecimento.
[E]m vez de traçar um modelo que sirva de norma à sua ação, o sábio chinês é levado a concentrar a atenção no curso das coisas, tal como está envolvido nele, para descobrir-lhe a coerência e tirar proveito de sua evolução. Ora, dessa diferença poder-se-ia tirar uma alternativa para a conduta: em lugar de construir uma forma ideal que se projeta sobre as coisas, obstinar-se em detectar os fatores favoráveis que atuam em sua configuração; em vez de fixar um objetivo para sua ação, deixar-se levar pela propensão; em suma, em vez de impor um plano ao mundo, apoiar-se no potencial de situação. (...) Esse potencial é muito mais - e mesmo bem diferente - que um simples concurso de circunstâncias, por afortunado que seja: preso na lógica de um desenvolvimento regulado, é levado a desenvolver-se espontaneamente e pode nos "portar" (Francois Julien, em Tratado da Eficácia, publicado pela editora 34 em 1998).
Nossa visão estratégica entende oportunidade como acaso ou conjunto de fatores favoráveis sobre os quais nossos modelos podem ser estruturados. Na China clássica, o "vir a ser", aquilo que chamamos de futuro, estava inscrito num processo cujo potencial era "lido" para se agir com ele, não sobre ele. Sendo assim, a ideia de oportunidade não surge como inusitado favorável, tampouco como a soma de metas cumpridas em função de finalidades previamente planejadas. O oportuno, na concepção chinesa da antiguidade, era a colheita a jusante de ações a montante. Isso faz do "vir a ser" as escolhas constantes quanto aos possíveis disponíveis a cada momento, não um plano. O jogo não está em atingir o alvo a qualquer custo, mas avaliar constantemente os custos de empreender esforços contra o fluxo das coisas.

Devir como jogo
Johan Huizinga sustenta que o jogo antecede a humanidade; que há evidências de que as brincadeiras entre animais expressam relações lúdicas com finalidades biológicas. Diz ele que as teorias sobre o jogo, seja de que áreas de conhecimento humano venham, reconhecem tais finalidades. Fenômenos da cultura são as ideias que inspiram. As visões de mundo relacionadas às concepções de estratégia aqui sinteticamente descritas estão sistematizadas em dois jogos clássicos e bastante difundidos. No ocidente, o xadrez; no oriente, o go. O primeiro ilustra uma batalha em que o objetivo é derrotar o rei adversário; o segundo tem por princípio conquistar uma "terra de ninguém".

No xadrez, as estratégias são mapeadas em função da hierarquia das peças, do movimento restrito a cada uma delas, do grau de sacrifícios necessários para se atingir o objetivo principal (xeque mate) e do movimento do adversário, entre outras peculiaridades. O jogo começa com os "times" adversários pré dispostos, frente a frente. O cenário está dado e é nele que se constrói a "batalha". As variáveis para as tomadas de decisão (usando um jargão em voga no mundo dos negócios) circunscrevem-se ao cenário visível e são planejadas previamente para induzir o adversário a movimentar-se de acordo com as "metas" antecipadamente elaboradas.

O "go" é um jogo milenar chinês cuja lógica ainda não coube na linguagem
binária dos computadores. O cálculo não é suficiente para entendê-lo em
Jorge Luis Borges, tocado pelos possíveis disponíveis.

As estratégias para o "go" não têm sentido se elaboradas previamente. O jogo começa sobre um tabuleiro vazio; todas as peças têm o mesmo grau de importância, qualquer uma delas e a qualquer tempo podem determinar o fim da "batalha". Não há um sentido explícito de derrota, visto que o objetivo é ocupar o maior espaço possível no tabuleiro e a base de toda a estratégia é o equilíbrio. No "go" não há movimento; as pedras vão sendo colocadas, uma a uma, nas interseções das linhas que cortam o tabuleiro. É preciso, portanto, aprender a analisar o potencial de situação; os adversários não são inimigos, mas portadores do "vir a ser".

É emblemático que na linguagem binária dos computadores as variáveis do xadrez estejam mapeadas. As estratégias do jogo são modeláveis. No "go", as variações modeladas em computador utilizam apenas uma pequena parte do tabuleiro; as variáveis são tão diversificadas que não houve ainda, pela via do cálculo, possibilidade de mapeá-las. Imaginação e cálculo, no "go", não estão dissociados; compõem uma mesma visão de mundo. Visão que, aliás, reconhece no outro, mesmo no adversário, uma perspectiva de equilíbrio quanto ao fluxo das coisas. O devir, o "vir a ser", não se molda a mim, mas dele tiro vantagem com a anuência de meu adversário.

Modelos e processos
Thomas Khun é referência quando se fala em paradigma. Suas concepções estavam inscritas no campo da Ciência, mas são aplicáveis ao contexto aqui explicitado. Um paradigma, segundo ele, é uma matriz partilhada, um modo de ver e de praticar. Estamos falando de um modelo, um esquema através do qual nossas concepções de realidade são reconhecidas, legitimadas e explicadas. Este modelo, portanto, estrutura uma tradição e se expressa numa realização concreta. Neste contexto, o fluxo "normal" das coisas segue dentro de modelos cujas estratégias decorrem de regras estabelecidas, peças legitimadas para o uso e objetivos claros a atingir.

Na concepção do pensador estadunidense, essa visão de mundo tende a naturalizar o que fundamenta os modelos em uso, confinar as perspectivas numa ideia de progresso pautada pelo acúmulo sistemático de fundamentos partilhados numa mesma estrutura e por um grupo hegemônico. O jogo, neste caso, não está em jogo. Um paradigma é visto como enigma, algo a ser desvendado dentro do próprio modelo cuja resposta precisa ser alcançada sem que seus princípios sejam questionados. A visão khuniana põe em crise o próprio modelo. Em suma, o mundo é feito de rupturas, de "sobreposição" de modelos sobre os quais se estrutura.

Digamos que a concepção de Khun, aqui livremente usada para além da Ciência, foge do enigma mas para reconhecer outros enigmas possíveis. Sua ideia de paradigma é também paradigmática. Aceita a substituição de um modelo por outro; enquanto modelo, um paradigma é sempre o produto, o resultado de muitas variáveis que expressam uma tendência legitimada. É um modelo mobilizador que desconsidera os possíveis disponíveis por não evidenciar aquilo que o "eleva" ao status de paradigma. Quando se reconhece o paradigma morre o que nele é praxeomórfico.

O termo praxeomórfico designa "o que" fazemos por hábito e "como tendemos" a fazer esse "o quê" habitualmente. Está inscrito num processo que, quando naturalizado, é tido como de praxe. Mas sua força reside na ideia de praxis, em ações que não separam imaginação e cálculo tampouco são complacentes com o habitual naturalizado. São as ações a montante; aquelas que não se projetam e, portanto, só têm um fim quando "lidas" no potencial de situação. A forma advinda da praxis não é um modelo, justamente porque não deve ser vista como resultado a ser replicado. O praxeomórfico é um devir; o paradigma é o futuro.

No mundo dos negócios
Pesquisa recente revela que o Brasil teve em 2010 a maior taxa de empreendedores em estágio inicial entre os países do G20. Divulgada pelo Sebrae, a Global Entrepreneurship Monitor chegou à 11ª edição no ano passado. É o mais conceituado estudo independente sobre empreendedorismo no mundo, coordenado por uma associação de grandes escolas de negócio. Seus dados demonstram, em tese, que o brasileiro mudou o comportamento com relação à abertura de novos empreendimentos. Hoje, de cada três, dois são inspirados por oportunidade, um por necessidade. Significa dizer que há um planejamento mais consistente quanto aos passos para se abrir uma empresa, por exemplo.

A ideia de oportunidade aceita no contexto da pesquisa sobre empreendedorismo é paradigmática. Está sustentada na visão de mundo que aceita o acaso ou o planejamento cuidadoso antes da intervenção. Os riscos embutidos na empreitada são exclusivos, competem a quem decide intervir. Passa a ser de praxe adotar fórmulas de sucesso para diminuir os riscos, visto que o modelo mobilizador do mundo dos negócios apresenta-se como enigma a ser desvendado. Nesta concepção, só se pode "negociar" depois de certas certezas e com certas instâncias legitimadoras.


O projeto para iPhone 4 traz concepções novas para o que se conhece como edição de
vídeo, mobilidade, acessibilidade e qualidade fílmica. Para viabilizar o "negócio"
comercialmente, os idealizadores do projeto "pedem" aos internautas um investimento
na ideia. Vinte mil dólares eram suficientes. Conseguiram muito mais.


E o praxeomórfico? O mundo contemporâneo está repleto de possíveis disponíveis para realizações concretas. Estas condições de possibilidade alicerçam-se em relações negociadas constantemente e para além de hierarquias e legitimações. Não são necessariamente "modelos" de negócio, mas possibilidades de articulação de interesses seja em investimentos, ideias ou proposições concretas. O negócio não é o produto, mas o processo mesmo de articulação. E por articulação entenda-se um canal para evidenciar pontos de vista que, próximos ou não, podem estabelecer conexões produtivas (estamos falando do mundo dos negócios, não é mesmo?).

As organizações contemporâneas tendem a usar parte do seu tempo em discussões sobre como dar forma para fluxos e processos. Nada mais incoerente. De fato, aquilo que se chama de fluxo, via de regra é um organograma identificando por onde o que está em processo deve passar. Em suma, o fluxo é o menos importante; em destaque figuram os pontos de represamento, cruciais para que os fluxos sejam controlados. O "vir a ser" é compartimentado num modelo que naturaliza como costumamos fazer as coisas e como tendemos a fazê-las costumeiramente. O praxeomórfico, contudo, não vê forma. Ao articular possíveis disponíveis evidencia as condições potenciais para realizações concretas. Estamos carentes de organizações de sabedoria.

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