sábado, 8 de janeiro de 2011

Educar pela pesquisa é educar para a Ciência?

O amigo e professor Daniel Izidoro refere-se à tecnologia sempre como fenômeno da Cultura. Pode parecer óbvio mas esse aspecto antropomórfico tende a desaparecer em função da natureza das relações que engendram o "novo", que fomentam a "inovação". A tecnologia no mundo contemporâneo, como argumenta o filósofo e cientista político Pierre Musso, é uma ideologia; é a própria utopia de transformação social. As ferramentas de transformação das relações sociais esgotam-se como próteses da sociedade mesma. Faz-se da cultura um fenômeno da Tecnologia.

Mário Sérgio Cortella chama de antropolatria essa adoração pela exuberância da tecnologia e pelo conhecimento científico descolado das questões humanas essenciais. A natureza ferramental da tecnologia deu lugar à sua finalidade última de justificar-se pela própria existência. Os artefatos tecnológicos contemporâneos carregam em si mesmos o tempo necessário para fazer do próprio descarte o fundamento das supostas transformações. E a Ciência? O conhecimento decorrente de seus métodos de investigação tem ficado enclausurado no ambiente que o separa dos outros possíveis disponíveis. Diríamos, há uma espécie de segregação intelectual que orienta uma indústria do conhecimento.


Na base desta indústria está o que os cientistas e nós, acadêmicos, chamamos de pesquisa. Nela depositam-se os investimentos para promover a "inovação", inclusos todos os valores semânticos possíveis ao termo. Em entrevista recente, o ministro da Ciência e Tecnologia Aloizio Mercadante expôs as áreas potenciais para o Brasil que se avizinha e, timidamente, faz alusões a algumas políticas de investimento em pesquisa e desenvolvimento.
A primeira prioridade é expandir, melhorar a formação de recursos humanos. Nós formávamos 5 mil doutores e mestres em 1987. Em 2009, estávamos formando 50 mil mestres e doutores, mas ainda estamos abaixo da média internacional, especialmente em algumas áreas. Nós formamos um engenheiro para cada 50 formandos, a Coreia tem 1 engenheiro para cada 4 formandos. Segundo, aprofundar a pesquisa. Na inovação, temos de ter uma visão sistêmica, que articule todos os agentes e com atenção especial para as cadeias que tem grande potencial inovador. (...) Uma das metas é transformar a Finep numa instituição financeira, para aumentar a capacidade de financiamento, tanto de projetos reembolsáveis como não reembolsáveis, teria muito mais capacidade de alavancagem, inclusive com recursos de mercado. (...) As empresas brasileiras ainda investem pouco em pesquisa e desenvolvimento: 0,51% do PIB. O Japão tem investimento de 2,7% do PIB, só as empresas. (...) Nós queremos fazer a repatriação de talentos brasileiros que saíram nas épocas difíceis. Só professores nas universidades americanas, em exercício, são cerca de 3.000. É bom que tenha gente nos principais centros, na fronteira do conhecimento. Mas, além de atrair talentos, estamos precisando de técnicos, engenheiros, não só repatriar, como atrair talentos estrangeiros que queiram vir para cá. Vivemos durante um período uma diáspora de talentos, hoje somos um imã.
Interessante que estejamos pensando finalmente em superar o colonialismo científico. O problema da visão sistêmica é que ela não alcança os espaços vazios dentro de suas próprias fronteiras nem o horizonte diante dos olhos. A pesquisa, no contexto que alinhavamos, é um capital riquíssimo para se mensurar o lugar de ocupação no ranking geopolítico e os rendimentos deste capital no mercado de ações. O desenvolvimento "prometido" pelo investimento público em mestres e doutores, pensado isoladamente, pode efetivamente gerar desenvolvimento. Falta-nos, contudo, um projeto de sociedade, que tenha por princípio a solidariedade diante das diferenças.

Recentemente o Banco Mundial divulgou relatório avaliando que os investimentos em educação no Brasil cresceram mas não produziram os resultados esperados. Continuamos respondendo aos critérios de competitividade com a visão sistêmica de articular diversos atores sem mudança de regras. Os sistemas até aqui engendrados vão muito bem, obrigado; basta o esforço de articulá-los. Como a tecnologia, os sistemas se bastam. Mas a pergunta é: queremos estar no lugar dos países ditos desenvolvidos? É esse nosso objetivo? Não admira a miopia diante dos horizontes. Nosso apartheid social, como define o ministro Mercadante, está longe de ser diluído por esta via.

A moeda "pesquisa"
Pedro Demo estabelece uma diferença para o termo que não esgota o debate, obviamente. Mas é suficiente para o argumento ora desenvolvido. A pesquisa é concebida por ele como princípio científico e como princípio educativo. Saber construir conhecimento, reconhecer o legado intelectual que impulsionou a humanidade em seus "avanços" compõem a primeira concepção. E dela decorre hoje a ideia de "inovação", cujo processo não escapa ao jogo político das relações de interesse em determinados projetos.

Nesta direção estão indo todas as grandes instituições de ensino superior brasileiras que pretendem cultivar e manter o status de universidade. É, aliás, o que reza a legislação educacional: universidade tem de ter pesquisa. Mas a pesquisa com essa concepção é cara, depende de indústria própria ou financiamento do Estado. Portanto, para subsidiá-la são necessários resultados mensuráveis, retorno num tempo adequado ao capital investido e aplicação dos conhecimentos construídos. A tecnologia fornece possibilidade para a materialização desses quesitos.

Uma segunda concepção de Pedro Demo sustenta a pesquisa como método formativo. É pelas práticas de investigação, defende o professor, que se deve estimular a aprendizagem. Significa inserir a pesquisa num plano bem mais modesto em termos de resultados quantitativos. Pelo menos no curto prazo. Como princípio educativo, a atitude cotidiana de relacionar objetos e conceitos, de reconhecer e mobilizar recursos para solucionar problemas é que nos direciona para o bom apredizado. Também há aqui a proposição de "saber construir conhecimento", conhecer métodos como forma de qualificar os processos de aprendizagem, mais autônomos em relação à aula tradicional.


Seja como princípio científico seja como princípio educativo, não se faz pesquisa sem um ambiente adequado. No primeiro caso, identificar as oportunidades e investir nas possibilidades de concretizá-las é um passo. Mas ainda estamos inseridos num contexto de competitividade, numa economia em que o capital intelectual é o capital político. No segundo, dinamizar as relações entre professor e estudante e promover espaços de aprendizagem que conjuguem ação e reflexão também é um passo. Entretanto, há pouquíssimas experiências de ruptura com a segregação intelectual que institui a diferença entre os que aprendem bem, os que aprendem mal e os que não aprendem nunca.

Educação para a Ciência
Educar pela pesquisa não significa necessariamente formar pesquisadores. É preciso entender a Ciência também como fenômeno da Cultura. As práticas de investigação, quando incorporadas aos processos de formação cotidianamente, auxiliam na organização dos estudos, dão autonomia à aprendizagem, fornecem métodos para a elaboração dos argumentos que traduzem a realidade e proporcionam a convivência com outros pontos de vista sobre um mesmo fenômeno. Com diferentes graus de complexidade, a pesquisa é uma atividade cujo valor não se resume aos resultados obtidos através da "profissionalização" de seus métodos.

Miguel Nicolelis, renomado neurocientista, desenvolve um projeto de educação científica em Natal e Macaíba, no Rio Grande Norte. Cerca de mil crianças de escolas municipais e estaduais entram em contato com a geração do conhecimento em estado latente. Um dos principais objetivos do projeto é mostrar que através do método científico de investigação se pode "protagonizar a própria educação". A Ciência é "ferramenta pedagógica" para o exercício do pensar o mundo e elaborar as teorias que nos ajudam a entendê-lo.


Numa mesma direção, a organização Casa da Arte de Educar desenvolve projetos que propõem a investigação sobre a realidade dos lugares em que vivem seus estudantes. Um dos exemplos é o Núcleo de Educação para as Ciências. As atividades por ele desenvolvidas buscam valorizar as "tecnologias populares" e aproximá-las do conhecimento científico. Ferramentas aparentemente simples, usadas para solucionar problemas específicos, característicos das regiões em que a organização atua, são referência para a busca de explicações sobre seus contextos sociais.

Diferentes saberes propõem leituras sobre o cotidiano dos lugares investigados e as áreas do conhecimento escolar compõem um cenário para além de suas fronteiras. Tal iniciativa foi incorporada a programas financiados pelo Governo Federal em função de sua proposta de dar sentido aos currículos. A organização atende diretamente a crianças, jovens e adultos no Morro da Mangueira e no Morro do Macaco, periferia do Rio de Janeiro. A metodologia desenvolvida ao longo dos 11 anos de ação nas favelas do Rio é usada nas escolas públicas de tempo integral ligadas ao programa Mais Educação.


Projetos desta natureza ainda convivem com a formalidade das aulas tradicionais, são complementares aos currículos que estabelecem arbitrariamente o que deve ser ensinado; funcionam no horário em que não há "aula". Falar em pesquisa num contexto assim é reconhecer que estamos engatinhando, se é que já começamos a nos mover. A pesquisa de ponta, essa associada à "inovação" por meio da tecnologia ainda ideologizada, precisa ser pensada como decorrência de ambientes arejados, livres em fluxo de ideias, abertos a negociações constantes quanto aos resultados a serem alcançados, inseridos na realidade de quem os ocupa.

A tecnologia, para ser vista como fenômeno da Cultura, precisa ser desideologizada. As práticas de investigação associadas aos lugares em que são realizadas podem promover uma concepção de desenvolvimento em que a tecnologia retome sua função ferramental de apoio às soluções propostas para determinados problemas. Mais do que fazer pesquisa é sobre a própria ideia de pesquisa que precisamos nos debruçar. E as instituições de ensino precisam aprender muito ainda sobre isso. Quem sabe investigando as próprias práticas.

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