domingo, 2 de janeiro de 2011

O técnico, a empresa, o computador e a geladeira


Entre o Natal e o Revéllion, duas situações marcaram de modo singular como ainda caracterizamos a formação para postos de trabalho em função da ocupação e seu nível de complexidade. E por que singular? Há nas duas situações algo de síntese que pode materializar políticas universais no que dizem respeito à educação. Não se está usando o termo educação no sentido genérico; o estamos associando à preocupação com a formação nas dimensões sociocultural e sociotécnica (para ficarmos com as que mais se adequam ao contexto).

Vamos às situações. Em viagem aos Estados Unidos, comprei um MacBook. Isso há três anos. Antes de vencer a garantia, o topcase do computador apresentava rachaduras. Numa primeira tentativa, levei-o a uma assistência técnica, a única da Apple emFlorianópolis até aquele momento. A resposta foi rápida: uso inadequado do equipamento; portanto, não valeria a pena o transtorno de enviar à matriz nos Estados Unidos as informações para a troca do topcase. Aceitei a explicação dois anos atrás.

Há algumas semanas fui em outra loja autorizada, aqui mesmo em Florianópolis, comprar um novo computador. Meu antigo MacBook dei ao meu filho. Por desencargo de consciência, fiz a pergunta a respeito da possibilidade da troca do topcase. Surpresa: não só era possível, como o procedimento levou menos de uma semana, incluindo o envio das informações para a matriz nos Estados Unidos e uma "pesquisa" de satisfação me enviada por e-mail após a conclusão do serviço.

No mesmo período, compramos uma geladeira da Electrolux direto da fábrica, através de um sistema interessante de indicações compartilhadas de compradores. O eletrodoméstico não funcionou adequadamente. São mais ou menos dez dias de indas e vindas da assistência técnica. Duas "placas" e um "sensor" foram trocados e, no momento em que escrevo este texto, espero com ansiedade um sopro de vida do equipamento. O diagnóstico foi decretado: "se não funcionar agora..." só a troca (e que 2011 comece bem!).

Diante do problema, algumas ligações para a assistência técnica, outras para a própria Electrolux. Nenhum contato nos foi feito espontaneamente. O laudo técnico é a única comprovação de necessidade da troca da geladeira. E, em dez dias, ainda não saiu. O mais engraçado: dá para ficar sem computador; sem geladeira, difícil. Três visitas técnicas depois, explicações que mal conseguimos decifrar e respostas pouco convincentes para leigos, resta apenas a esperança: sobrevida ou troca.
O que têm as dimensões de formação a ver com isso?

É preciso reconhecer que a qualificação para os postos de trabalho aqui ilustrados tem diferenças. O nível de complexidade tecnológica de um computador, em tese, é maior que o de uma geladeira. Em tese. A questão tem mais a ver com procedimentos, com aquilo que relacionamos em primeira instância a atitudes, a capacidades de resposta aos problemas. Neste aspecto, as duas empresas em questão mostram comportamento idêntico ao de seus técnicos. Significa dizer que o nível de desempenho técnico, em ambos os casos, atende ao nível de qualificação exigido pelas empresas para a função.

Parece evidente também que, no caso do computador, o técnico tem outras qualificações, para além da própria função. Bem informado a respeito dos produtos com os quais lida, bem articulado nas explicações, preocupado em usar uma linguagem mais próxima possível dos consumidores leigos (e este não é bem o meu caso)... a postura fala por si mesma. Mas há um componente ainda mais importante: ao receber de volta o computador "consertado", comentei sobre a negativa da outra loja autorizada em fazer os reparos ainda com o equipamento na garantia. O técnico tratou logo de, com explicações cuidadosas, levantar uma série de razões possíveis para "defender" a "concorrente".

No caso da geladeira, ao contrário, as razões para o não funcionamento do eletrodoméstico eram sempre colocadas sobre os ombros de terceiros. Os "culpados" pelo problema tinham como identidade o pronome na terceira pessoa do plural. Este componente ético é significativo. Primeiro, ilustra bem o tipo de preparo para lidar com situações-problema. Não há responsabilidades a assumir a não ser as imediatas, as que estão relacionadas a habilidades meramente funcionais, circunstanciais. Seguidos os procedimentos-padrão, os que constam dos manuais de treinamento, o resto é problema dos outros.

A dimensão sociotécnica no processo de formação está relacionada ao mundo do trabalho mas não se resume à funcionalidade dos lugares de ocupação determinados pelo mercado. Reconhecer que os postos de trabalho são fruto, resultam de relações sociais em todas as suas perspectivas é seu principal fundamento. Neste aspecto, o técnico de computador aqui descrito parece mais preparado para lidar com as profundas mudanças que estão por vir. O técnico da geladeira, entretanto, parece incapaz de identificar contextos que fujam à aparência imediata do seu lugar de ocupação. Quanto às empresas, bem, vale um outro texto.

Já na dimensão sociocultural, o aspecto ético, os procedimentos observáveis, os diálogos e as formas de expressão (descritas pauperrimamente aqui) propõem dois tipos de técnico. Mas é importante salientar que tais características também dizem respeito ao lugar que ambos ocupam. Consegue-se perceber o que lê, tem argumentos, parece satisfeito com sua situação atual, responde por seus atos, assume suas responsabilidades. Tal dimensão ainda não compõe o cenário da economia contemporânea nem mesmo faz parte do contexto formal de formação para o mundo do trabalho. Mesmo os cursos de nível superior, em sua grande parte, não têm se preocupado com isso.

Mensurar os recursos cognitivos e materiais disponíveis para solucionar problemas é uma das habilidades fundamentais no mundo contemporâneo. Mas isolada, descontextualizada, circunscrita aos manuais de procedimento-padrão (seja no trabalho ou na vida) esta habilidade não nos torna capazes de enfrentar o cotidiano naquilo que ele nos apresenta de inusitado. Para o técnico da geladeira, foi a primeira vez que um eletrodoméstico apresentou tanta dificuldade quanto à perspectiva de solução. Eis aí o problema: talvez, nas três visitas que me foram feitas, um tempo para pensar nas possibilidades fosse mais importante do que trocar peças supostamente defeituosas.

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