quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Paradoxos do Jornalismo diante do ensino, da profissão e dos campos de atuação

Recentemente os docentes do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP receberam a proposição de discutir as diretrizes curriculares de jornalismo elaboradas por uma Comissão de Especialistas ao MEC. Retomar a discussão é interessante, visto que o documento dos especialistas, como exposto neste espaço anteriormente, é bastante controverso. Aqui vão algumas das questões levantadas pela Escola de Comunicação e Artes que merecem atenção:
  1. "(...) acreditamos que a argumentação do texto deixa entrever uma perspectiva 'separatista'": este é um ponto de extrema relevância, na medida em que o documento dos especialistas expõe uma visão distorcida da relação entre o jornalismo e a comunicação. Se considerarmos todo o movimento da educação (incluindo a brasileira) para a formação por competências, restringir o ensino a uma singularidade é, no mínimo, redutor. De que competências necessariamente falamos aqui? As referendadas pela tradição do fazer jornalístico ou as que abrem diálogo e interface com outras áreas de conhecimento e com as artes, por exemplo? As que o mercado (em sentido estrito) pede ou as que dizem respeito à "busca de respostas rápidas para os desafios imprevisíveis" (como aponta o economista Claudio Haddad)?
  2. "(...) a concepção que parece surgir da proposta de novas diretrizes tenderia a congelar o ensino e a pesquisa na realidade do século passado e inviabiliza toda e qualquer tentativa de preparar o aluno para o mundo contemporâneo": aqui a preocupação, pertinente, é com a diversidade e o dinamismo exigidos "num contexto de globalização e de grandes transformações tecnológicas". Os cenários para o futuro não nos põem em perspectiva com sectarismos, com visões fechadas sobre as relações com o que chamamos de mercado. O contexto é, como aponta o documento da ECA, o de situar o jornalista diante das desigualdades sociais e da diversidade cultural. É numa perspectiva de inserção social e não mercadológica que o jornalismo parece emergir no Século XXI.
  3. "(...) a proposta de diretrizes e de resto a reforma que o MEC parece engendrar na redefinição das tabelas de cursos, parece conformar-se a certa tendência de pensamento tecnicista e disciplinar que vem assolando o campo da comunicação aqui em nossas terras tropicais": de fato, a proposição da comissão é paradoxal neste aspecto. Ao mesmo tempo que sugere abertura a novos campos de atuação não contempla quaisquer perspectivas de interface para que essa relação se dê. Ora, campos de atuação (por ora aqui chamados de) profissional não estão em consonância com a ideia de perfil de egresso hoje assumidas pelos projetos pedagógicos de curso. Enquanto campo de atuação e até de saberes, o jornalismo se constitui num processo de múltiplas trajetórias, cujos itinerários nem sempre estão previstos. O paradoxo está principalmente na questão que evidencia as concepções ético-políticas no contexto das deontologias e do lugar de ocupação num posto de trabalho. Há questões muito mais amplas que o jornalismo, visto sob o aspecto da comissão, não alcança. Por falta de condições mesmo. O horizonte proposto está muito próximo do centro de geração de olhares possíveis (digamos assim).
  4. "(...) trabalhamos hoje com comunicação em um sentido integrado, muito mais do que dentro de fronteiras habilitacionais específicas": pela proposição da comissão, o jornalismo é mediação entre realidade e sociedade, o que o constitui numa atividade singular, específica. Mas o jornalismo, como aponta o documento da ECA, também pode ser entendido como "construção social da realidade". Significa dizer que o lugar de ocupação na sociedade parece ser muito mais significativo do que o lugar de ocupação num posto de trabalho. Há outras formas de entender o jornalismo, de aplicá-lo (se quisermos usar um termo corrente). Mas o texto da comissão "limita a concepção do jornalismo à concepção de mercado num sentido estrito", o que favorece as organizações jornalísticas. Dizer, portanto, que comunicação não é profissão está correto em parte; a comunicação é um campo de atuação vasto para o jornalismo.
Há outros pontos no documento que discutiremos mais adiante. A questão que nos parece relevante no momento diz respeito a que aspectos considerar quando põe-se o assunto em pauta. Outro dia, procurado por alunos de primeira fase para uma entrevista sobre a profissão, o foco da conversa girava em torno da "morte" do jornal impresso diante da internet. Nada mais redutor. Jornalismo é mais do que técnicas e mídias. Surpreendente foi perceber que os alunos estão dispostos a refletir sobre isso. Talvez porque vivam o dilema; não o construíram a partir de reflexões conservadoras distanciadas no espaço e no tempo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ESPAÇOS VAZIOS e seus sentidos "praxeomórficos"

O sociólogo Zygmunt Bauman usa o termo "praxeomórfico" para explicitar como a arte de viver é condicionada por processos estruturantes aos quais incorporamos nossos modos de ser. E incorporamos sem pô-los em crise, sem críticas consistentes que os desestabilizem. Os "degraus" que encontramos em nossos itinerários sempre parecem estar numa esteira rolante cuja trajetória é dada a priori e sobre a qual não se tem porque empreender qualquer esforço de movimento para outros sentidos. Pelo menos é assim que se pensa; nós entendemos/aprendemos o modo de fazer as coisas e tendemos a fazê-las sempre do mesmo jeito. Contudo, basta um estímulo diferente, um outro jeito de sentir, perceber, pensar, expressar... E o lugar já não é mais o mesmo. Os não lugares deixam de servir aos "passantes" como meros espaços de fluxo. Pelo sentido "praxeomórfico" se pode perceber que os espaços vazios estão em todo o lugar; mesmo nos tidos como de passagem. É quem os ocupa que dá sentido a eles.




segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A rejeição do OUTRO como pressuposto de relações NÃO SOCIAIS

Entrelugares [por Luciano Bitencourt]

Este espaço tem sido dedicado à ideia de lugar. Já comentamos sucintamente sobre os lugares êmicos e fágicos que Zygmunt Bauman foi buscar nas relações de alteridade descritas por Claude Lévi-Strauss. Falamos também sobre os não lugares de Marc Augé e sobre os espaços vazios de Bauman. Os conceitos não estão isolados em si mesmos ou em relação aos demais. Há uma trama de "subjetivações", todas fundamentadas na sociologia e na antropologia enquanto disciplina. Convencionalmente, são as ciências humanas que tratam do humano como ser social. Talvez tenhamos de começar por uma "anarqueologia" dos saberes para romper com essas divisões "puristas".

É do alemão Siegfried Zielinski o termo "anarqueologia"; pelo menos no sentido conceitual assumido como premissa. Pode-se dizer que para ele a ciência deixou de "compilar curiosidades" em nome de respostas legitimadas pelos centros de saber (leia-se poder). Contra os dogmas dos "não iluminados" a ciência transformou-se em dogma ao buscar no controle dos "objetos" que nos cercam seu poder de iluminação. Bem, Zielinski não diz exatamente isso. Ele nos sugere essa interpretação no momento em que adverte sobre a importância das escolhas quanto às premissas que sustentam nossas ideias.

Eis a questão por ora: segundo o biólogo chileno Humberto Maturana, o que funda nossas relações atuais é a "rejeição" do "outro como legítimo outro na convivência". Dizendo de outro modo, numa sociedade em que a competição por lugares de ocupação fundamenta nossas relações não há espaço para alteridade. Notemos que para Maturana "rejeição" é emoção, no sentido de que configura certos "domínios de ação" em relação ao outro e ao meio. Entre os humanos, sob esse ponto de vista, não há apenas relações sociais. As que configuram o mundo do trabalho, por exemplo, não reconhecem a alteridade, não reconhecem o "outro como legítimo outro" e, portanto, podem ser definidas como relações não sociais, ainda que humanas.

Vamos um pouquinho mais adiante. O que Maturana chama de legitimidade é a aceitação do outro apesar das premissas de suas ideias ou das interpretações que constituem um modo de ser distinto do nosso. Interessante que, nessa concepção, não há estranhamento porque a relação já parte de premissas que não instituem a diferença pela necessidade de convivência. Ou seja, a alteridade não estaria no aceitação do diferente a priori, mas no reconhecimento de que a diferença não constitui uma premissa a ser aceita. Na natureza, segundo o chileno, não há competição porque a "vitória" de um não depende da "derrota" do outro; não há essa consciência como pressuposto. Competir é, portanto, uma ação cultural cujo domínio está na "rejeição" do outro enquanto fundamento.

Agora voltemos aos lugares êmicos e fágicos. São lugares de ocupação num espaço cindido pela "rejeição" do "outro como legítimo outro na convivência"; nas ações simbólicas de "regurgitar" ou "devorar" os estranhos encontramos relações não sociais. Os não lugares estariam, nesse contexto, nos fluxos entre esses espaços de relações não sociais cujos "passantes", sempre alheios, correm o risco de serem "devorados" ou "regurgitados" numa estada mais duradoura. Mas e os espaços vazios? Bem, a esses faltam novas premissas, novos fundamentos que rompam com a fundamentação sempre aceita a priori como premissa. Ou, por outra, que parta das relações sociais em que o outro seja legítimo por compartilhar suas ideias e interpretações.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O dito e o mundo na educação, o dito e o mundo da educação


Reunião Pedagógica - a imagem é de alunos, a imaginação é nossa

Jacques Rancière, ao tratar da emancipação intelectual, encontra num pedagogo francês do Século XVIII a força argumentativa para dar conta de ilustrar a educação contemporânea. O mundo precisa ser explicado para instituir a diferença entre os explicadores e os incapazes. "É o explicador que tem a necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal". Dito de outro modo, os "excluídos do mundo da inteligência subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão". A explicação tem nos incapazes de compreensão seu pressuposto básico e essa incapacidade faz-se condição para o ato de explicar.

Nossos sistemas educativos respiram homogeneidades. O tempo pedagógico dedicado à aprendizagem é o do planejamento. Há pouco espaço para o inusitado, o que instiga descobertas. Conteúdos planejados carecem de explicações; sejam em si mesmos ou em justificativas sobre as escolhas que os validam e legitimam. E, portanto, conteúdos planejados são a sustentação dos explicadores. Os sistemas educativos ainda sustentam-se no ensino e talvez por isso estejam em crise. Os ambientes escolares vivem repletos de alunos, seres sem luz, etimologicamente falando. Mas o que encanta quem deseja aprender? Aquilo que faz do docente um curioso; aquilo que desperta na docência o interesse por compreender o mundo à sua volta. E esse é o princípio da aventura intelectual.

Como sugere Maurice Tardiff, os saberes docentes incluem as histórias de vida e experiências exploratórias no contexto da educação; suas atividades partem de fontes e se propõem a atingir objetivos distintos e simultâneos; e o principal para este argumento: tais saberes muito dificilmente podem ser dissociados dos traços de personalidade e das características do ambiente de trabalho. Portanto, a docência não se restringe aos conteúdos programáticos. Parece óbvio, mas nem tanto. Há um sistema que impõe o ensino por conteúdos, inclusive na formação docente, e avalia a aprendizagem ainda desta forma. O processo formativo vigente prepara as pessoas para dar respostas, não para achar caminhos e buscar soluções. Ora, respostas prontas dependem de bons explicadores.

Recupero uma leitura feita anos atrás num dos artigos publicados pela revista Nova Escola (se a memória não falha) em que Eugênio Bucci usava o princípio de Arquimedes para criticar a falta de contemplação e de abstração do mundo. O argumento enfatizava a distância entre conhecer o princípio pela sua representação, pela explicação dada, e pelo conceito a partir de interpretações próprias. Arquimedes não tinha, na Grécia Antiga, elementos imagéticos para ilustrar os princípios que defendia. E, na verdade, o uso da alavanca e do ponto de apoio para mover o planeta foi uma forma simples de ilustrar um princípio matemático e, sobretudo, filosófico. O esforço intelectual de Arquimedes hoje não precisa mais ser feito.

Eis o ponto de apoio deste argumento: o esforço intelectual, o sentido de aventura para as formas de ver, de ouvir, de tatear, de degustar, de expressar não podem ser confinados a explicações. Tampouco o trabalho docente deve prescrever explicações sobre como e o quê explicar. Aliás, comecemos por valorizar a contemplação do mundo que nos cerca, mas não exclusivamente pelos cânones que o interpretam; comecemos por valorizar quem se aventura, não quem "professa". Entender o que dizem os gênios é fundamental; mas para compreendermos seus métodos, suas formas de perceber as coisas, de conceituá-las. O dito dos gênios é sempre contestável, por princípio. E o de quem os "professa", ainda mais.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Diretrizes curriculares de jornalismo entre as distopias, as utopias e a miopia

Volto ao relatório dos especialistas nomeados pelo MEC para propor novas diretrizes curriculares aos cursos de jornalismo. Diz o documento que "nas expectativas da sociedade", além do "domínio das técnicas e artes da narração" e da "lógica e das teorias da argumentação", o profissional de Jornalismo vai precisar manejar competentemente "habilidades pedagógicas na prestação de serviço público". Isso para que os cidadãos tenham condições de "tomar decisões conscientes e responsáveis". No cerne do argumento está o Jornalismo como centro das esferas discursivas.

Em certa medida, o argumento desconsidera o profissional jornalista como cidadão. No momento em que o jornalista assume sua "identidade" profissional, cidadãos são os outros. Refletindo melhor: passa a ser uma atitude cidadã oferecer pedagogicamente aos outros as condições de assumir um papel que ele mesmo não tem como por causa de sua função. À serviço da atualidade "como linguagem macro-interlocutória socialmente eficaz", o jornalismo faz de seus profissionais pedagogos do cotidiano, agentes intermediários de consciências e responsabilidades que precisam ser assumidas por quem não tem recursos próprios para isso.

Assume-se, portanto, a função discursiva como a mais importante no contexto da formação. O mais irônico é que esse foi, justamente, o argumento usado pelos magistrados do Supremo Tribunal Federal para desvincular o exercício profissional do diploma. O que, parece, garante ao Jornalismo legitimidade e credibilidade, na visão dos especialistas, é que este esteja "à altura das complexidades do mundo"; como se a complexidade dependesse exclusivamente da elevada compreensão dos dizeres sobre as coisas. Esse, aliás, é um velho paradigma acadêmico: confunde-se compreensão com capacidade de expressão. Uma coisa é saber codificar e decodificar discursos, incluindo os científicos; outra coisa é compreender as complexidades do mundo.

Digamos que o Jornalismo mantenha-se no lugar de intérprete, de tradutor das complexidades. Digamos que ele mantenha-se no incômodo espaço das relações discursivas e reforce aí seu papel pedagógico de instrumentalizar os incapazes. Digamos que, ao assumir confortavelmente o convívio com "a realidade nova, moldada no ambiente criado pelas modernas tecnologias de difusão", essa atividade supere de vez o "estado de crise" em que se encontra desde que "entrou no Século XXI". Este lugar de ocupação e a distopia da crise superada mostram o quão "corretos" estavam os magistrados ao suspender a obrigatoriedade do diploma.

No momento em que se propõe trabalhar competências como "distinguir entre o verdadeiro e o falso" e "saber conviver com o poder, a fama e a celebridade" talvez tenhamos mesmo que repensar o sentido de formação acadêmica. Pode-se dizer que o lugar de centro não combina com uma época em que o poder "emana das redes de troca de informações e de manipulação de símbolos que estabelecem relações entre atores sociais, instituições e movimentos culturais", como diz Manuel Castells, citado na fundamentação do documento. Por isso, reconhecer verdades e circular pelos palácios é não compreender o lugar de circulação, de articulação, de diálogo, de presença, de inserção, de estar para intervir e não só intermediar discursos.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ensino superior no Brasil, seus avanços quantitativos e incoerências qualitativas


Educação superior é objeto de desejo na atualidade. Claudio Porto e Karla Réginer, em trabalho sobre os cenários para a educação nas próximas décadas, sustentam que essa característica diz respeito aos critérios de desenvolvimento econômico e aumento de produtividade das nações contemporâneas por um lado, e a fatores de mobilidade social e perspectivas de melhoria de renda individuais por outro. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no último relatório divulgado sobre o Panorama Educacional (Education at a Glance 2009), reforça a afirmação.

A pesquisa traz dados entre 2006 e 2007 de 36 países e mostra que o impacto do diploma de nível superior no Brasil tem pesos diferentes, dependendo do contexto em que se avalia. No âmbito das propostas nacionais de desenvolvimento e produtividade, os índices em educação são os mais baixos: apenas 10% da população entre 25 e 34 anos concluíram um curso superior. Por outro lado, quem chega ao diploma tem perspectivas de aumentar em mais de 100% o nível de renda; índice mais alto entre os países pesquisados. Os dados são sem dúvida relevantes, mas preocupam. Não pela discrepância numérica apenas; os ideários que carregam expressam o tipo de competitividade a que hoje estamos submetidos.

De acordo com a OCDE, o investimento em educação é um fator que pode ajudar os países a vencer a crise econômica. Nos últimos anos o Brasil teve um acréscimo substancial nos níveis de aplicação de recursos na área. Entre 2000 e 2006, levando-se em consideração todos os níveis de ensino combinados, houve um crescimento de 57% nos investimentos, percentual muito superior à média dos demais países. Contudo, o percentual do PIB destinado à educação (4,9%) é o mais baixo. Leve-se em consideração ainda que o país investe 6,5 vezes mais no ensino superior que no ensino básico. Além da alta competitividade, a formação está invertida. Entende-se que Ciência & Tecnologia são a bola da vez; por isso a pesquisa na ponta.

Bem, chega de números. O relevante nesta questão é que, pelo viés econômico, estamos valorizando o aumento de índices importantes, sem dúvida, mas que alimentam disparidades de proporções idênticas. Para que se atinja metas ousadas como as descritas nos planejamentos e projetos nacionais em educação, os padrões de mensuração a elas dirigidas estruturam-se pela quantidade. Dados como os divulgados pela OCDE não podem estar dissociados das políticas sociais enquanto critério de análise. O Brasil mostra-se incoerente no sistema de ensino e ainda vive de pré-conceitos sobre o público e o privado.

As Instituições de Ensino Superior Públicas Federais, mantidas pelo Estado, estão em expansão. Há uma opção estatal pela valorização do ensino gratuito de nível superior. Mas o ensino de base está entregue ao setor privado, que mantém condições mínimas de investimento em seus professores, na infra-estrutura e nas estratégias de ensino-aprendizagem. A engrenagem funciona ainda como foi pensada no final da década de 60, quando o Governo Militar estruturou uma reforma baseada em instituições diferentes para as elites e para "as massas".

O ensino superior pode contribuir com um ambiente que ajude a pensar e construir oportunidades; não há desenvolvimento econômico sem engajamento social, sem preocupações políticas com a garantia das oportunidades a serem criadas para todos. Aproximar as diferenças talvez seja o melhor caminho rumo ao desenvolvimento. Não o econômico; este é decorrência. Mas o de oportunizar espaços sociais preocupados com a cooperação, a participação, as ações de alteridade. Aliás, algo que precisamos aprender a ensinar hoje; sejamos "públicos" ou "privados".

domingo, 20 de setembro de 2009

Debate antropofágico no jornalismo e os mitos da tecnocracia educacional


Controlar variáveis para uniformizar resultados e verificar a eficácia de objetivos específicos tem sido, na concepção do pesquisador espanhol José Felix Angulo Rasco, basilar para os processos de inovação no ensino, sobretudo o superior. É para a tomada de decisões conforme o esperado que estão voltados indicadores, avaliações e inspeções. Resultados homogêneos são mais fáceis de aferir; as provas do vestibular, do Enade, do Enem são exemplo: estão para a competitividade seletiva e não para o conhecimento. Assim não fosse, listas classificatórias não seriam usadas como marketing institucional das "escolas" que melhor preparam seus alunos. Tampouco o Ministério da Educação as usaria para valorizar as instituições estatais.

Rasco, abordando um estudo de E. R. House em 1981, também sugere que há três mitos sustentados pela visão tecnocrática de inovação a serviço da homogeneidade e do controle. O primeiro é o da transferibilidade, segundo o qual toda inovação oferece uma "solução com alta capacidade de generalização" cuja possibilidade de transferência para qualquer lugar é incontestável; o segundo mito, o dos especialistas, pressupõe que qualquer processo de inovação depende de investigadores especializados, que dominam os saberes em questão "para orientar as decisões sobre os cursos de ação possíveis". Por fim, considera-se que os interesses individuais e coletivos dos "receptores das inovações" e dos "grupos da decisão" estão em consenso.

A Comissão de Especialistas instituída pelo Ministério da Educação para propor novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Jornalismo, diga-se, esforçou-se para superar esses mitos. Mas é evidente que não há como: primeiro porque tais mitos dizem respeito a um processo que sustenta a necessidade de controle das variáveis inerentes ao que se propõe. Não gerou uma relação de reciprocidade entre o centro de cálculo e as periferias: as audiências públicas foram feitas no Rio de Janeiro, em Recife e em São Paulo, coincidentemente, locais de atuação da grande maioria dos membros da comissão; estes, aliás, são especialistas entre especialistas (não há na comissão representantes de outras esferas institucionais senão a da mais alta casta acadêmica cujos saberes na área são legítimos). Depois porque precisava dar respostas rápidas ao MEC, não à sociedade.

Nesse sentido, entende a comissão que a autonomia didático-pedagógica das Instituições de Ensino Superior "constitui imperativo para a reciclagem dos seus projetos pedagógicos" desde que o jornalismo não esteja vinculado à "comunicação social". Solução que se propõe "transferível" a qualquer lugar, que supõe-se adequada a todas as ações em curso e que sustenta-se pelos anseios comuns a todas as instâncias de representação na área acadêmica e no campo de atuação profissional. Mas é bom que fique claro: as premissas não estão em debate; e nunca entraram. O resultado do trabalho da comissão é fruto do "estado da arte" (e quanto a isso não se discute o mérito) em jornalismo, não da arte propriamente dita.

Internamente, o debate é antropofágico; legitimados "os de dentro", assume-se a postura de que as críticas forçosamente são dos que olham para o campo jornalístico com desconfiança, não levam em consideração sua "maturidade teórica" nem o "reconhecimento social" de sua importância, confundem as teorias do jornalismo com as teorias gerais da mídia. Sim, tudo isso deve ser levado em consideração. Mas não se pode desconsiderar que há jornalistas na academia em busca de outras explicações para a inserção do jornalismo na sociedade. Infelizmente, a eles o Estado da arte não abre o debate dentro do campo. Só o faz para devorá-los ou regurgitá-los.

sábado, 19 de setembro de 2009

Jornalismo e democracia, linguagem e poder, novas diretrizes e velhos paradigmas


Vem a calhar o Relatório da Comissão de Especialistas instituída pelo Ministério da Educação que propõe novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo. Ele dá materialidade para os temas que temos desenvolvido aqui. Enfatize-se a importância do processo que procurou "democratizar" o debate e ouvir os "anseios" das "entidades sindicais e acadêmicas", ainda que só as "defensoras do ensino de qualidade". E é por aí que começo minha reflexão: o preâmbulo do texto da comissão é a maior evidência de que estamos construindo lugares êmicos no contexto do jornalismo. É como uma defesa: contestar a proposta apresentada é posicionamento idêntico ao de não defender o "ensino de qualidade" e, por consequência, estar fora.

Como novas exigências sociais, o documento aponta a necessidade de ênfase formativa no "domínio das técnicas e artes da narração quanto (...) da lógica e das teorias da argumentação". Isso porque o jornalismo hoje "faz parte da atualidade, e a serve, como linguagem macro-interlocutória socialmente eficaz". Em suma, a salvaguarda do direito de expressão livre como voz da sociedade mantém-se assegurada pelo poder de mediação agora não mais entre esferas sociais, mas entre os discursos que as representam. Uma grande sacada para manter o status quo profissional, sobretudo quando está em cheque o lugar de ocupação do jornalismo na sociedade. O ato de mediar discursos ainda garante-se por intermédio de um discurso, esse sim, esclarecedor sobre o mundo. E a qualidade está na "consciência cívico-moral" que opera esses produtos discursivos.

A trajetória do jornalismo na "comunicação social" confunde-se com seu desajustamento na área de conhecimento denominada de "comunicação". De fato, áreas de conhecimento e campos de atuação profissional configuram-se por lugares distintos quanto aos saberes a eles relacionados e seus espaços articulam-se por uma série de habilidades ora similares ora complementares. A comunicação não se explica enquanto objeto; o jornalismo talvez sim. Isso porque o segundo está inscrito como atividade que se quer formal na contemporaneidade. Aliás, tal atividade só existe nessa condição. Para não se pulverizar no contexto da comunicação enquanto área, o jornalismo precisa cravar-se existencialmente como atividade mediadora necessária.

Cientistas sociais divergem sobre essa questão. Não por acaso; territórios epistemológicos foram demarcados ao longo de um debate antropoêmico que confunde a "comunicação social" enquanto campo de atuação e a "comunicação" enquanto área de conhecimento. Na mesma medida em que se quer formal enquanto profissão, o jornalismo se quer formal nos catálogos acadêmicos, reconhecido como forma de conhecimento que "qualifica" o senso comum. Formalizado ou não, o jornalismo continua distante de ser um exercício intelectual de interpretação do mundo.

sábado, 5 de setembro de 2009

Da impressão fria à expressão sensível; saberes e sabores

Você vê a música? O repórter fotográfico Paulo Pinto viu, no interior do Rio Grande do Sul, pássaros sobre fios da rede elétrica como notas musicais numa partitura. Uma imagem singular, registro de um momento até que comum no cotidiano de muitas cidades brasileiras mas despercebido pelos eternos "passantes" urbanos; a publicação, essa sim, incomum nos jornais de hoje, tão preocupados com a miséria do mundo. Ver notas numa partitura não é ouvir a música ali inscrita. É preciso ir além. É preciso saborear o tom das notas musicais, perceber o tempero de suas combinações.

O publicitário paulista Jarbas Agnelli entrou na fotografia e deu a ela texturas sonoras. Saberes então restritos aos campos profissionais do Jornalismo e da Publicidade ganharam dimensões novas, sabores que escapam à tradição do paladar. A comunicação é fascinante quando suas técnicas assumem o papel de ferramentas para expressar os sentidos; e só o fazem quando os sentidos estão em primeiro plano no contexto do que se propõe expressivo. A imagem não se explica por si mesma; nem a composição que dela teve origem. A explicação mesma pouco importa aqui.

Da foto que registra uma partitura do universo, Jarbas Agnelli fez um poema sonoro cuja autoria ele credita aos pássaros. Imagem, som e alma ubíquos, sem palavras. Jornalista e publicitário combinaram seus saberes. O olhar fotográfico foi reinterpretado pela sensibilidade sonora; arte audiovisual. Eis o sabor da descoberta.

Birds on the Wires from Jarbas Agnelli on Vimeo.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O DESEJO de saber e o "saber" como OBJETO de desejo


Inscrições sobre inscrições [por Luciano Bitencourt]

A escrita nos separou da memória. Enquanto tecnologia, a palavra impressa nos ampliou o espaço de exploração de suas inscrições e nos reduziu o tempo da experiência. Por inscrições o antropólogo Bruno Latour entende o veículo pelo qual dois lugares estabelecem uma relação que legitima o que chamamos de informação. Para ele, há um carregar, um movimento em direção a um centro de cálculo necessário para a apreensão do mundo. Contudo, é importante reconhecer que nosso domínio intelectual, erudito, nosso controle não se dá sobre os fenômenos em si; mas sobre suas inscrições.

Pensando alto: sobre as inscrições que servem de veículo aos fenômenos depositamos nosso conhecimento. Mas parece faltar uma etapa nesse processo. O conhecimento inscrito no cotidiano de pouco nos serve se não estiver associado a ações concretas diante dos fenômenos que representa. É como um mapa; ele não nos diz para onde ir, mas nos mostra como chegar aonde escolhemos ir. O desejo de saber nos impulsiona; o conhecimento representado por inscrições resultantes desse desejo nos guia.

Na atualidade, entretanto, é o conhecimento objeto de desejo. E como objeto de desejo nele não estão inscritas as alegrias de nossas descobertas. O centro de cálculo não produz movimento. Ele não nos serve como referência; ele é o fenômeno. Significa dizer que nossas experiências, muitas vezes, estão circunscritas aos catálogos, às coleções, aos cânones. Uma biblioteca reúne a coletânea de conhecimentos produzidos. Ela própria não é conhecimento.

Assim como a disseminação da escrita, outros paradigmas provocaram rupturas sócio-históricas. Para além da inteligência e da memória, corpos, vozes e, porque não, a própria alma estão carregadas de ubiquidade. Falta-nos reconhecer o processo que nos leva às inscrições e considerá-lo em nossa "leitura" sobre o mundo. Falta-nos a contemplação; o mundo para nós é por demais abstrato, inscrito em suas referências legítimas, seus mapas fechados, sem linhas de fuga nem espaços vazios. Este é o desafio: a educação está para o desejo de saber, não para o conhecimento como objeto de desejo.

domingo, 23 de agosto de 2009

ESPAÇOS VAZIOS e os outros "lugares epistemológicos" do ensino superior


"As pegadas de uma continuidade que não se desmancha no ar", diz Cremilda Medina (O signo da relação), estão na "diáspora dos ex-alunos" que por ela passaram. Para o espaço social de aprendizagem, afetividade imprescindível. Há um vazio nos deslocamentos que dão forma ao chamado ensino de nível superior, justamente pela falta de "pegadas" multiformes, pela descontinuidade de um processo que não sustenta mais um "social orgânico". São os cânones e não suas reflexões, são os rituais sacralizados (diplomações, titulações, avaliações) e não os olhares profanos para o não visto que têm merecido atenção.

O que há nesse vazio? Lugares não percebidos confundem-se com inexistentes. Perceber o que preenche os espaços vazios depende de um "mapa mental" diferente. Mais ainda, entender que há a necessidade de os diferentes estarem próximos. O pesquisador Boaventura de Souza Santos (Pelas mãos de Alice) alicerça aí o argumento de que o ensino de nível superior precisa estruturar-se em "pontos privilegiados de encontro de saberes"; ambientes propícios para configurações resultantes desse encontro.

Espaços vazios estão cheios de potencialidade. Isso quando visíveis. Zygmunt Bauman (Sociedade individualizada) sinaliza que a "ansiedade da indecisão" pela liberdade traz também "as alegrias do novo e do inexplorado". E essa condição é fundamental para quem deseja "preparar-se para a vida". Significa, primeiramente, "conviver em paz com a incerteza e a ambivalência"; mas, sobretudo, opor-se às "comparações mensuráveis pela mesma unidade de medida". Aquilo que homogeiniza esconde os espaços vazios.

Se os lugares êmicos "regurgitam", os lugares fágicos "devoram" e os não lugares "passam", os espaços vazios estão no devir, num ambiente de negociações constantes quanto aos pontos de interface, em dimensões de uma constante cartografia e de paisagens que não privilegiam apenas os deslocamentos individualizados. Estamos falando de mapas mentais, concepções estruturantes de paisagens dinâmicas e complexas para além de imagens meramente registradas. Os espaços vazios estão no campo da imaginação, do potencialmente vivo enquanto utopia, capaz de reconfigurar os "lugares epistemológicos" do conhecimento.

sábado, 22 de agosto de 2009

Ensino superior e o "logo ali adiante" dos NÃO LUGARES


Registros em (per)curso [por Luciano Bitencourt]

Espaços de circulação, de consumo e da comunicação representam para o antropólogo Marc Augé o que ele chama de não lugares. Neles não se pode "ler, em parte ou em sua totalidade", a identidade, as relações e a história compartilhada de seus ocupantes. São lugares que apenas "autorizam, no tempo de um percurso, a coexistência de individualidades"; feitos para o conforto de um momento. Os não lugares expressam as tensões solitárias dos deslocamentos sem compromisso com o próprio espaço.

Há uma relação contratual entre os "passantes" e esses espaços, a partir de símbolos que legitimam o movimento. Mesmo junto com outros, os "passantes" estão sempre sós na busca de objetos de desejo para satisfação própria. Autoestradas e aeroportos enquanto espaços de circulação; supermercados e hotéis enquanto espaços de consumo; telas e cabos enquanto espaços da comunicação, todos expressam a metáfora dos não lugares. Mas o próprio Augé adverte que a definição destes espaços depende de quem os ocupa. Significa dizer que há espaços elaborados para um determinado fim que foram transformados por um sentido de ocupação despreocupado com os objetivos de origem.

No ensino superior, pode-se reconhecer, a metáfora dos não lugares também está presente. As perspectivas de diminuição de carga horária para encurtar a estada num curso superior, por exemplo, são um indicativo. Os cursos precisam oferecer passagem rápida para o que interessa: o ingresso no mercado de trabalho. Há, igualmente, um sentido de carreira que obriga o deslocamento rumo a títulos para legitimar um lugar de ocupação na estrutura acadêmica. Objetos de desejo, lugares de ocupação no mercado de trabalho ou na estrutura acadêmica dependem dos símbolos de uma relação contratual com "passantes": certificações, diplomas, títulos...

Os não lugares acadêmicos parecem ser estruturados pela falta de compromisso com o ambiente em que se inscrevem. Não há um sentido de construção coletiva, a não ser em pequenos nichos ou guetos. Não há multivocalidade no espaço que ainda se desenha como centro de produção de conhecimentos. E essa é, por princípio, a concepção de não lugar: nele "não há". O espaço das utopias, da percepção de potencialidades, do devir, esse espaço social de aprendizagens anda impregnado de "tensões solitárias", passagens efêmeras para o "logo ali adiante", seja ele qual for.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Educação Superior e seus LUGARES FÁGICOS de intelectualidade

"Nivelar" as diferenças ao ponto de não haver mais distinções e "aniquilar" a alteridade do outro. Zygmunt Bauman (Modernidade Líquida) associa essas referências aos templos de consumo. Lugares caracteristicamente contemporâneos em que o sentido de "comunidade" não pressupõe quaisquer tipos de tensão ou de negociação quanto ao convívio. Bauman orienta-se a partir do conceito de antropofagia, sugerido por Claude Lévi-Strauss (Tristes Trópicos), como estratégia de relação humana. Dentro desses lugares fágicos o sentido de "unidade" está dado; o que nos torna comuns é a ideia de liberdade associada a de segurança; estamos livres das tensões sociais com "os de dentro" e protegidos contra "os de fora".

Essa segunda estratégia levantada por Lévi-Strauss também pode estar associada ao ensino superior, de maneira mais refinada. Em primeiro lugar, ressalte-se a existência de uma seletividade antropoêmica que reforça os guetos e nichos de conhecimento e as estruturas decorrentes. Significa dizer que mesmo os mais aptos ao ensino superior reconhecem dentro da instituição "os de fora" e evitam qualquer relação que proponha uma interação social. Esses guetos e nichos, percebe-se, sustentam uma espécie de antropofagia intelectual. O sentido de "unidade" nestes espaços intrainstitucionais se reforça a partir do "nivelamento" das diferenças, sobretudo ideológicas.

O comportamento é mais visível nas aulas. Está na autoridade docente toda a organização de saberes relacionados aos conteúdos monodisciplinares. Há uma espécie de violência simbólica de um lado e uma submissão assumida de outro. O professor é quem sabe, está autorizado a ensinar a partir de sua experiência e visão de mundo; não existe a preocupação, a priori, com quem não alcança os objetivos por ele propostos, os que conseguirem devem demonstrar o nível de alcance; o ensino está voltado para os "melhores". O aluno, por seu lado, tem como expectativa "consumir" conteúdo; implica dizer que quanto menos tensões e negociações melhor. Aluno consome conteúdo e comprova pelos critérios de avaliação estabelecidos o quanto aprendeu. Os dois "lados" reconhecem essa lógica.

Claro que há generalizações nesta assertiva. Mas generalizações que ainda dominam o espaço social de aprendizagem no ensino superior. A antropofagia intelectual admite um certo grau de mudanças a partir da "aniquilação" da alteridade do outro. Mudanças, aliás, que não chegam a mexer em suas variáveis estruturantes. Eis o dilema nessa questão: como lugar fágico o ambiente aqui descrito está longe de se transformar pela reconfiguração de saberes. Alta seletividade, "aniquilação" de alteridades e "nivelamento" de diferenças servem para legitimar um ambiente descompromissado com os estigmatizados por algum tipo de incapacidade: "os de fora".

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Educação Superior e seus LUGARES ÊMICOS de seletividade

Sempre vinculado ao campo da educação, parto para uma reflexão sobre quatro pontos a meu ver interessantes. Em Modernidade Líquida (2001), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreve sobre estratégias de relação humana a partir da ideia de alteridade. Para isso, vai buscar em Claude Lévi-Strauss (Tristes Trópicos) dois conceitos que valem o debate. O antropólogo fala de relações antropoêmicas e antropofágicas. Neste breve registro, falo sobre os lugares êmicos.

Bauman relaciona o conceito a espaços urbanos contemporâneos (os quais ele descreve como "públicos-mas-não-civis"), cuja concepção envolve o desconforto da presença. São lugares sem hospitalidade; ainda que "inspirem respeito", concomitantemente "desencorajam a presença". Lévi-Strauss, ao falar das estratégias antropoêmicas de convivência humana, refere-se a um processo de rejeição a qualquer forma de interação social com estranhos. "Os de fora" são regurgitados, lançados ao exílio. Na expressão de Bauman, o refinamento dessa estratégia é a seletividade dos espaços ou de seu uso.

Minha proposição é a de que esse refinamento pode também ser aplicado ao contexto do ensino superior. Primeiramente pela própria lógica de seletividade aos nobres espaços acadêmicos, reconhecidos como prêmios para merecedores. Nas instituições de ensino públicas e gratuitas há a seletividade intelectual como legitimidade para o acesso; o ambiente é para os "melhores". Nas instituições privadas há a seletividade econômica; o ambiente também é para os "melhores", mas que possam pagar. "Os de fora" são sempre estigmatizados por alguma incapacidade.

Além disso, a própria estrutura desses espaços opõe nichos e guetos a partir de concepções ideológicas, muitas vezes confundidas com epistemológicas. Com a fragmentação do conhecimento e as disputas por capital político no contexto das instituições de ensino, há uma espécie de "segregação" ao que não é reconhecido como pertencente ao espaço em questão. As estratégias antropoêmicas de Lévi-Strauss, os lugares êmicos de Bauman, regurgitam o próprio sentido de educação e aniquilam as diferenças. Por princípio.


quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Siqueira na ALESC: impressões sobre o não dito

Palestra interessante a do jornalista Ethevaldo Siqueira. Trouxe informações em quantidade suficiente para fazer pensar. Em outras palavras, impressionou mais pelo que não disse. Vejamos: com a quinta maior rede mundial de celulares, o Brasil tem mais aparelhos que gente; jornal de papel e TV de sinal aberto vão desaparecer; em 2006 o mundo produziu em informação o equivalente a 3 milhões de vezes todos os livros já escritos; e por aí vai. São dados de fazer queixo cair.

Microeletrônica, nanotecnologia, biotecnologia... o premiado jornalista, autor de 10 livros sobre os avanços da tecnologia, procurou contextualizar seus argumentos com números significativos. O tema, a propósito, bastante oportuno: "o papel da mídia na sociedade do conhecimento". Público diversificado, atento, mas não muito grande na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, em Florianópolis, numa terça-feira (11) de proposições sobre possibilidades de cooperação entre entidades que representam a imprensa, a produção tecnológica, instituições de ensino superior e o Estado.

Qual é, afinal, o papel da mídia nesse "admirável mundo novo"? Tudo em rede, móvel e acessível. Ao mesmo tempo, tudo sem a necessidade de grandes deslocamentos. Espaço alargado, tempo reduzido. Ambiente ideal para o fim de mediações humanas desnecessárias (como a do jornalismo?). Nada de papel; os jornais do futuro serão politicamente corretos com o meio ambiente. Nada de defesa de questões político-ideológicas; os jornalistas do futuro serão politicamente corretos com os modelos de negócio que sustentam a esfera privada, essa mais viva do que nunca.

Faltou dizer o que é conhecimento nessa outra sociedade. Não por esquecimento, claro. É que o conhecimento em pauta está dado, naturalizado pela ideia de que só ele pode suplantar a esquizofrenia provocada pelo excessivo número de informações em disponibilidade. Selecioná-las, organizá-las, eis a tarefa árdua ali adiante (também do jornalismo). Faltou dizer, porque não foi preciso, que o conhecimento em pauta se caracteriza pela obsolescência do sempre novo, não constitui memória nem cria laços. É como se o mundo, outrora objeto de exercício intelectual, já tivesse interpretações suficientes a seu respeito; como se tudo já tivesse sido dito.

Talvez por isso alguns colegas tenham interpretado "o papel da mídia" como jornal impresso. Ethevaldo esforçou-se para avançar. Era essa a proposta: evidenciar os dados para o debate. Não foi alcançado. Pelo excesso de tempo nas preliminares e pelo orgasmo precoce de quem insiste em reduzir mídia e jornalismo a formas expressivas e a produtos discursivos. O jornal de papel tem seus dias contados, na visão de Ethevaldo; o jornalismo não. Para alguns colegas, contudo, o papel do jornalismo continua impresso no papel-jornal; seu lugar de ocupação na sociedade só se consolida pelo produto midiático inscrito na tradição.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

DIPLOMA DE JORNALISMO: de que lugar de ocupação estamos falando?

A velha questão do lugar de ocupação no mercado voltou. E desta vez, ao que parece, em definitivo. A decisão do Supremo Tribunal Federal, de suspender a obrigatoriedade do diploma para o exercício de jornalismo, traduz o nível do debate que se travou no Brasil. Quando a discussão é o lugar de ocupação do jornalista no mercado fastfood da informação, mercado este muitas vezes reduzido a padrões técnicos de produção, a tendência é haver polarizações meramente retóricas: ameaça à liberdade de expressão, reserva de mercado, profissionais pouco preparados, a inexistência de padrões técnicos necessários para o reconhecimento da atividade como profissão, enfim, todos estes aspectos caem no vazio.

Interessaria, talvez, ampliar o debate. A pergunta que merece resposta é qual o lugar de ocupação do Jornalismo na sociedade? Que importância essa atividade tem para as sociedades contemporâneas? Os depoimentos favoráveis e contrários ao fim do diploma, via de regra, reduzem o Jornalismo ao jornal diariamente jogado fora, ao programa de rádio despretenciosamente ouvido, ao telejornal cada vez mais novelesco ou aos simples dados publicados na internet com status de informação. E os magistrados que protagonizaram a decisão de enterrar pelo menos meio século de discussões no campo de atuação profissional e estudos acadêmicos usaram os mesmos critérios: entende a corte que o Jornalismo enquanto profissão pode ser exercido por quem tem habilidades meramente expressivas.

Por esse argumento, há jornalistas muito mais competentes que os magistrados na construção de justificativas jurídicas. Pena que esse debate não se amplie ao direito. Contudo, importa pensar que o Jornalismo não se resume à sua forma expressiva. Aliás, o principal aprendizado nesta profissão não é o de se expressar pelas técnicas; isso é o que pedem as empresas de comunicação. Ao que parece, o diploma está muito ligado aos produtos midiático-jornalísticos. Estamos falando de um modelo de negócios ao qual não interessa pensadores verdadeiramente preocupados com os rumos da sociedade em que vivemos. Registrar o cotidiano depende de interpretações, posicionamentos, curiosidades não-ingênuas (como costumava dizer Paulo Freire), enfim, depende de um lugar de ocupação na sociedade. E a decisão do STF leva em consideração apenas o lugar de ocupação num posto oferecido pelo mercado.

Às escolas de comunicação cabe uma resposta pela via do direito, essa expressiva, e outra pela via da ação, muito mais importante. Talvez agora despojadas da garantia de mercado para os egressos as escolas tenham condições de discutir a formação, o quanto de contribuição podem dar para a consolidação desse lugar de ocupação na sociedade. Se as empresas vão continuar contratando diplomados, passa a ser um problema delas; as que não o fizerem, seguramente vão perder. As escolas, no entanto, têm de começar a trabalhar para que a sociedade se componha com gente preocupada, gente humana e que esteja acima de um bom texto. Que o diploma expresse uma formação que contradiga a postura dos nobres magistrados brasileiros, interessados, talvez, em garantir uma boquinha num jornaleco qualquer para satisfazer o próprio ego.