quarta-feira, 28 de outubro de 2009

ESPAÇOS VAZIOS e seus sentidos "praxeomórficos"

O sociólogo Zygmunt Bauman usa o termo "praxeomórfico" para explicitar como a arte de viver é condicionada por processos estruturantes aos quais incorporamos nossos modos de ser. E incorporamos sem pô-los em crise, sem críticas consistentes que os desestabilizem. Os "degraus" que encontramos em nossos itinerários sempre parecem estar numa esteira rolante cuja trajetória é dada a priori e sobre a qual não se tem porque empreender qualquer esforço de movimento para outros sentidos. Pelo menos é assim que se pensa; nós entendemos/aprendemos o modo de fazer as coisas e tendemos a fazê-las sempre do mesmo jeito. Contudo, basta um estímulo diferente, um outro jeito de sentir, perceber, pensar, expressar... E o lugar já não é mais o mesmo. Os não lugares deixam de servir aos "passantes" como meros espaços de fluxo. Pelo sentido "praxeomórfico" se pode perceber que os espaços vazios estão em todo o lugar; mesmo nos tidos como de passagem. É quem os ocupa que dá sentido a eles.




segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A rejeição do OUTRO como pressuposto de relações NÃO SOCIAIS

Entrelugares [por Luciano Bitencourt]

Este espaço tem sido dedicado à ideia de lugar. Já comentamos sucintamente sobre os lugares êmicos e fágicos que Zygmunt Bauman foi buscar nas relações de alteridade descritas por Claude Lévi-Strauss. Falamos também sobre os não lugares de Marc Augé e sobre os espaços vazios de Bauman. Os conceitos não estão isolados em si mesmos ou em relação aos demais. Há uma trama de "subjetivações", todas fundamentadas na sociologia e na antropologia enquanto disciplina. Convencionalmente, são as ciências humanas que tratam do humano como ser social. Talvez tenhamos de começar por uma "anarqueologia" dos saberes para romper com essas divisões "puristas".

É do alemão Siegfried Zielinski o termo "anarqueologia"; pelo menos no sentido conceitual assumido como premissa. Pode-se dizer que para ele a ciência deixou de "compilar curiosidades" em nome de respostas legitimadas pelos centros de saber (leia-se poder). Contra os dogmas dos "não iluminados" a ciência transformou-se em dogma ao buscar no controle dos "objetos" que nos cercam seu poder de iluminação. Bem, Zielinski não diz exatamente isso. Ele nos sugere essa interpretação no momento em que adverte sobre a importância das escolhas quanto às premissas que sustentam nossas ideias.

Eis a questão por ora: segundo o biólogo chileno Humberto Maturana, o que funda nossas relações atuais é a "rejeição" do "outro como legítimo outro na convivência". Dizendo de outro modo, numa sociedade em que a competição por lugares de ocupação fundamenta nossas relações não há espaço para alteridade. Notemos que para Maturana "rejeição" é emoção, no sentido de que configura certos "domínios de ação" em relação ao outro e ao meio. Entre os humanos, sob esse ponto de vista, não há apenas relações sociais. As que configuram o mundo do trabalho, por exemplo, não reconhecem a alteridade, não reconhecem o "outro como legítimo outro" e, portanto, podem ser definidas como relações não sociais, ainda que humanas.

Vamos um pouquinho mais adiante. O que Maturana chama de legitimidade é a aceitação do outro apesar das premissas de suas ideias ou das interpretações que constituem um modo de ser distinto do nosso. Interessante que, nessa concepção, não há estranhamento porque a relação já parte de premissas que não instituem a diferença pela necessidade de convivência. Ou seja, a alteridade não estaria no aceitação do diferente a priori, mas no reconhecimento de que a diferença não constitui uma premissa a ser aceita. Na natureza, segundo o chileno, não há competição porque a "vitória" de um não depende da "derrota" do outro; não há essa consciência como pressuposto. Competir é, portanto, uma ação cultural cujo domínio está na "rejeição" do outro enquanto fundamento.

Agora voltemos aos lugares êmicos e fágicos. São lugares de ocupação num espaço cindido pela "rejeição" do "outro como legítimo outro na convivência"; nas ações simbólicas de "regurgitar" ou "devorar" os estranhos encontramos relações não sociais. Os não lugares estariam, nesse contexto, nos fluxos entre esses espaços de relações não sociais cujos "passantes", sempre alheios, correm o risco de serem "devorados" ou "regurgitados" numa estada mais duradoura. Mas e os espaços vazios? Bem, a esses faltam novas premissas, novos fundamentos que rompam com a fundamentação sempre aceita a priori como premissa. Ou, por outra, que parta das relações sociais em que o outro seja legítimo por compartilhar suas ideias e interpretações.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O dito e o mundo na educação, o dito e o mundo da educação


Reunião Pedagógica - a imagem é de alunos, a imaginação é nossa

Jacques Rancière, ao tratar da emancipação intelectual, encontra num pedagogo francês do Século XVIII a força argumentativa para dar conta de ilustrar a educação contemporânea. O mundo precisa ser explicado para instituir a diferença entre os explicadores e os incapazes. "É o explicador que tem a necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal". Dito de outro modo, os "excluídos do mundo da inteligência subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão". A explicação tem nos incapazes de compreensão seu pressuposto básico e essa incapacidade faz-se condição para o ato de explicar.

Nossos sistemas educativos respiram homogeneidades. O tempo pedagógico dedicado à aprendizagem é o do planejamento. Há pouco espaço para o inusitado, o que instiga descobertas. Conteúdos planejados carecem de explicações; sejam em si mesmos ou em justificativas sobre as escolhas que os validam e legitimam. E, portanto, conteúdos planejados são a sustentação dos explicadores. Os sistemas educativos ainda sustentam-se no ensino e talvez por isso estejam em crise. Os ambientes escolares vivem repletos de alunos, seres sem luz, etimologicamente falando. Mas o que encanta quem deseja aprender? Aquilo que faz do docente um curioso; aquilo que desperta na docência o interesse por compreender o mundo à sua volta. E esse é o princípio da aventura intelectual.

Como sugere Maurice Tardiff, os saberes docentes incluem as histórias de vida e experiências exploratórias no contexto da educação; suas atividades partem de fontes e se propõem a atingir objetivos distintos e simultâneos; e o principal para este argumento: tais saberes muito dificilmente podem ser dissociados dos traços de personalidade e das características do ambiente de trabalho. Portanto, a docência não se restringe aos conteúdos programáticos. Parece óbvio, mas nem tanto. Há um sistema que impõe o ensino por conteúdos, inclusive na formação docente, e avalia a aprendizagem ainda desta forma. O processo formativo vigente prepara as pessoas para dar respostas, não para achar caminhos e buscar soluções. Ora, respostas prontas dependem de bons explicadores.

Recupero uma leitura feita anos atrás num dos artigos publicados pela revista Nova Escola (se a memória não falha) em que Eugênio Bucci usava o princípio de Arquimedes para criticar a falta de contemplação e de abstração do mundo. O argumento enfatizava a distância entre conhecer o princípio pela sua representação, pela explicação dada, e pelo conceito a partir de interpretações próprias. Arquimedes não tinha, na Grécia Antiga, elementos imagéticos para ilustrar os princípios que defendia. E, na verdade, o uso da alavanca e do ponto de apoio para mover o planeta foi uma forma simples de ilustrar um princípio matemático e, sobretudo, filosófico. O esforço intelectual de Arquimedes hoje não precisa mais ser feito.

Eis o ponto de apoio deste argumento: o esforço intelectual, o sentido de aventura para as formas de ver, de ouvir, de tatear, de degustar, de expressar não podem ser confinados a explicações. Tampouco o trabalho docente deve prescrever explicações sobre como e o quê explicar. Aliás, comecemos por valorizar a contemplação do mundo que nos cerca, mas não exclusivamente pelos cânones que o interpretam; comecemos por valorizar quem se aventura, não quem "professa". Entender o que dizem os gênios é fundamental; mas para compreendermos seus métodos, suas formas de perceber as coisas, de conceituá-las. O dito dos gênios é sempre contestável, por princípio. E o de quem os "professa", ainda mais.