quarta-feira, 30 de junho de 2010

O que é Jornalismo? Pergunte sempre!

O que é Jornalismo? A pergunta é recorrente. Vantagem minha ter a oportunidade de refletir sobre o assunto em bancas de monografia. O estudante Felipe Reis, da Unisul, traz o questionamento com a preciosa contribuição de não procurar uma resposta definitiva. O trabalho dele traça uma trajetória das principais teorias que sustentam o Jornalismo e analisa a decisão do Supremo Tribunal Federal de suspender a obrigatoriedade do diploma de nível superior para o exercício da profissão. A partir da provocação, faço as seguintes reflexões:

1) Apenas como hipótese, o reconhecimento da atividade jornalística parece estar inscrito na própria crise que gera a pergunta. A decisão do STF baseia-se na redução do Jornalismo ao jornal que é descartado depois de lido, como ilustra o professor Manuel Carlos Chaparro. Resume-se, portanto, às suas formas expressivas e seus suportes tecnológicos; qualquer um que os domine tem condições de exercer a profissão. Mas começo a pensar que a sobrevivência do Jornalismo está na força da própria pergunta. É ela que sustenta a reflexão sobre uma crise que acompanha a atividade desde o princípio; e, por isso mesmo, mantém viva a possibilidade de resposta. A pergunta "o que é Jornalismo" não é retórica; traz um sentido de utopia que nos provoca a resposta, ainda que nunca a aceite definitivamente. A pergunta das perguntas funda-se na máxima de que o bom jornalista é quem sabe perguntar, não quem tem as respostas para os problemas sociais.

2) A partir daí pode-se pensar o Jornalismo enquanto campo de atuação, espectro muito mais amplo que o mercado de trabalho e seus lugares de ocupação. No campo de atuação há espaço para quem teoriza. Pensar sobre a profissão é também parte de seu campo de atuação. Pode parecer uma constatação inapropriada ou mesmo óbvia. Não cometamos equívocos de interpretação aqui. As teorias do jornalismo não dão conta de responder à pergunta e isso nos estimula a pensar mais sobre. Digamos que os referenciais teóricos ora adotados ainda refletem um modelo de sociedade caracterizado pela linearidade dos processos comunicacionais, pelas verdades absolutas concorrentes e pela estatização da ideia de poder. O Jornalismo vivia entre dois extremos: o libertador e o alienado. Nossos espaços atuais são mais fluidos, mais abertos a nuances interpretativas menos dogmáticas. E isso pede novas tentativas de reflexão com base na pergunta "o que é Jornalismo".

3) Apenas como exemplo desta nova contextualização, trago a ideia de "singularidade" tratada dentro da filosofia pelo falecido Adelmo Genro Filho. Na concepção de Adelmo, a partir da filosofia de Hegel, a singularidade é parte integrante do particular e do universal ao mesmo tempo em que é constituída por ambos. São três dimensões da realidade que "compreendem em si as demais". Dito de outro modo, o gênero humano é universal; em particular, as diferentes raças se distinguem enquanto "gênero"; a singularidade está no homem branco de terno e gravata que não tem tempo para as humanidades. Para Adelmo, o Jornalismo parte do singular para o universal, o que exige um exercício de apreensão muito mais denso da "realidade" a ser descrita. Contudo, novos olhares para essa concepção trazem um sentido de singularidade que se constitui na condensação de variáveis possíveis para o que reconhecemos como universal. Essa condensação nos permite o trânsito por dobras conceituais outrora distantes por conta da rigidez das fronteiras que isolavam as variáveis em seus próprios "compartimentos". Sendo assim, se o Jornalismo tem na singularidade sua dimensão mais apropriada, há de se repensar os sentidos possíveis a partir das condensações feitas, para além das fronteiras que confinam o exercício intelectual de interpretação do mundo a variáveis estanques. Ainda a título de hipótese: o Jornalismo não precisa de modelos conceituais. Ele é a própria pergunta.

Viagem gostosa essa. Um estudante interessado, colegas (Rosane Porto e Raquel Wandelli) inspiradas, inquietações afloradas. Saio da conversa convencido: a atividade jornalística depende crucialmente da vivacidade da pergunta que a coloca em crise. O Jornalismo está no espaço de circulação que constitui seu campo de atuação. Não há lugares fixos nesta cartografia.

domingo, 27 de junho de 2010

Do capital financeiro ao capital político: giros no esporte midiatizado

Leio no blog do jornalista Daniel Castro que a campanha Um Dia Sem Globo postada no twitter não obteve sucesso. Lembremos a proposição: os posts sugeriam assistir ao jogo entre Brasil e Portugal em emissoras que não pertencem à Rede Globo, supostamente por causa do "incidente" entre o técnico Dunga e o jornalista Alex Escobar durante entrevista coletiva após a vitória contra Costa do Marfim. Diz o blog que, segundo o IBOPE, a Globo obteve 43,6 pontos de audiência, índice menor que o da estreia contra Coreia do Norte (45,2) e maior que o do jogo contra a Costa do Marfim (40,7). Sugere, portanto, que não houve mudanças significativas em função do "protesto". E acrescenta um dado: a Band bateu recorde, ainda que tenha ficado com míseros 12,7.


Em editorial, Globo dá sua "versão"; um drible na truculência de Dunga

Volto à ideia de circularidade que envolve o jornalismo esportivo e a indústria do entretenimento, sobretudo quanto ao esporte midiatizado. Entre 14 e 20 de junho, a campanha "Cala Boca Galvão", também postada no twitter, rendeu ao locutor global o status de figura mais "badalada" na imprensa. Os dados foram publicados pela MídiaB, empresa especializada em monitorar a mídia espontânea. Galvão Bueno não foi "autorizado" pela Globo a falar sobre o assunto, mesmo com insistentes pedidos de entrevista feitos pelos "jornalistas" de plantão. De boca bem fechada sobre o assunto, Galvão Bueno "curtiu" o merchandising dado pela grande mídia.

O fato de a Globo ter mantido sua audiência e de Galvão estar no top cast das personalidades televisivas só reafirma o grau de importância que as redes sociais assumem em relação aos meios de comunicação "tradicionais". Merece análise o nível de circularidade que uma "campanha", ainda que considerada boba e para a maioria dos "seguidores" apócrifa, tem mostrado. A indústria do entretenimento não se movimenta mais exclusivamente pelos interesses empresariais e de marketing; o giro de capital é mais amplo. Um Dia Sem Globo é um projeto, para além da Copa do Mundo.

Não se pode desconsiderar no episódio do twitter a ubiquidade da proposição. Os "internautas" estão em todo lugar e em lugar nenhum. Não representa "alívio" para a Globo o registro de que os índices de audiência não "caíram" em função da "campanha". Tanto que houve rápido movimento de resposta também quanto ao insucesso dos twitters responsáveis pela postagem. A circularidade, neste caso, sustenta um capital político na medida em que as estruturas de mercado não estão mais imunes às redes sociais. Ao contrário, estão atentas; muito atentas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Espaços sociais de aprendizagem e afetividade

Palavramundo é um termo cunhado pelo pensador Paulo Freire bem apropriado para a ideia de afetividade que aqui se quer tratar. Costumeiramente, o processo de ensino e aprendizagem impõe ao conceito de mundo o sentido de objeto sobre o qual a palavra ganha significado. É como se o mundo lido não pudesse ser sentido sem a descrição que o revela. Uma árvore, para Paulo Freire, pode ser um objeto a ser descrito. Mas, sob sua sombra há formas de apreendê-la para além de conceituações meramente descritivas. Isso porque a árvore simbolicamente descrita pela linguagem afeta o espaço de aprendizagem de quem o vivencia sob a sombra que ela (a árvore) cria.

A mágica do termo está justamente na inversão da relação costumeira entre ensino e aprendizagem. Ou melhor, está no desordenamento do processo. O mundo e a palavra não estabelecem uma relação linear de sentido. Não é necessário aprender a ler (as palavras) para entender a complexidade do mundo. Mas a complexidade do mundo é valorada quando conseguimos expressá-la a ponto de afetar os outros. Portanto, a importância da leitura não está na necessidade funcional de uma formação cidadã, ainda afetada por ideais iluministas de esclarecimento pela intelectualidade.

Quero dizer: o ato de ler está relacionado à socialização das ideias, à construção de regras de convivência humanas, à sensibilização de uma coletividade para as formas de interpretar e expressar a complexidade do mundo; é, portanto, um ato estruturante. A leitura constitui um elo com todas as formas possíveis de expressar o mundo, mas não pode ser confundida com o mundo mesmo. Para construirmos um laço de afetividade com a leitura precisamos do mundo que nos cerca e vice-versa. Não para compreendê-los (o mundo e o ato de ler) como objeto, mas para construirmos um processo de afeição mútua, como propõe o termo palavramundo.

Textura sonora: flaneria na hipermídia, de Daniel Signorelli (Unisul) - 
no espaço social de aprendizagem isso é uma monografia?

Li e socializei no twitter matéria sobre o analfabetismo funcional no Brasil, dilema que atinge, segundo pesquisas, 25% dos jovens acima de 15 anos. A questão é que são considerados analfabetos funcionais aqueles que não correspondem às exigências da sociedade da informação e que, portanto, não têm como exercer seu "direito democrático de cidadania". Para mudar o quadro, as bibliotecas comunitárias apresentam-se como espaços públicos importantes por constituirem-se em repositórios culturais e de socialização de informações significativas. É um esforço válido e importante. Mas o que afeta as pessoas que por elas passam?

Acumular todas as informações sobre o mundo, se fosse possível, não seria suficiente para transformá-lo. Uma super-biblioteca, por mais comunitária que fosse, não seria suficiente para aliviar as estatísticas quanto ao analfabetismo funcional brasileiro. Tampouco a qualificação das escolas e seus professores pela via da capacitação ou titulação acadêmica. Isso ajuda? Ajuda na formação para a cidadania, essa funcionalidade moderna necessária para justificar as políticas de estado e de mercado. Estes espaços públicos ainda são usados para ajudar a melhorar o acesso aos lugares de ocupação ávidos por jovens para garantir um grau de desenvolvimento compatível com o status geopolítico que o país almeja.

Volto à ideia de afetividade: os espaços públicos (entendidos como acessíveis) precisam também ser espaços sociais. Neste sentido, não bastam a troca de informações e a instrumentalização funcional pela leitura. Sem uma relação afetiva, compromissada em afetar a todos que circulam por estes espaços, de nada adiantam os esforços, ainda que mensuráveis positivamente. O ato de ler não é um ato de cidadania apenas. Não é para a sociedade da informação que o ato de ler torna-se fundamental. O ato de ler é uma capacidade humana que pode gerar novas formas de socialização e não está circunscrita na palavra impressa. O ato de ler é também um ato social na medida em que desvela a palavramundo e transforma os espaços de aprendizagem em espaços sociais de aprendizagem.

domingo, 20 de junho de 2010

O futebol de bar invade a racionalidade discursiva sobre o "jogo"

Conceituado antropólogo brasileiro, Luiz Henrique de Toledo publicou em 2002 uma análise interessante sobre o futebol e suas lógicas. Os clubes profissionais, os jornalistas esportivos e os torcedores foram postos em circularidade numa investigação etnográfica e empírica peculiar. Em síntese, a pesquisa buscava os consensos e dissensos para além do vazio que rege os discursos sobre este esporte. Por que postos em circularidade? De certa maneira, o campo esportivo visto a partir dos ideários que caracterizam os protagonistas do espetáculo, os especialistas e os consumidores servem de "fundamento" para o futebol midiatizado, ou também conhecido como "de alto nível".

Não é ao livro, explicitamente, que este texto é dirigido. Contudo, há uma interessante relação pensada pelo pesquisador entre o futebol jogado, o futebol discursado e o futebol de bar. Em certa medida, os critérios de julgamento para a construção dos argumentos a respeito de um "jogo" passam por estas instâncias circulares, que se retroalimentam. Vejamos a Copa do Mundo deste ano na África do Sul, especialmente o desempenho da Seleção Brasileira: qual o "nível técnico" ideal de uma competição como esta e de um postulante ao título? As respostas são diferentes a cada rodada.


Sem Garrincha, estas imagens seriam associadas ao futebol de várzea

Digamos que os especialistas têm a prerrogativa de "justificar" seus prognósticos imprecisos com uma racionalidade discursiva que recria o "jogo" e sua suposta racionalidade técnica. Neste sentido, o nível técnico pode ser alto ou baixo em uma competição, dependendo do grau de proximidade dos acontecimentos no futebol jogado com as análises "especializadas" no futebol discursado. A título de hipótese: o "futebol arte" brasileiro, supostamente ausente nos tempos atuais, tem muitíssimo a ver com a "arte discursiva" sobre ele. A "beleza" do futebol no país coincide com a "beleza" textual da crônica esportiva, tão ausente atualmente quanto os craques que protagonizavam os espetáculos de outrora.

Na mecânica do "jogo" encontramos uma mecânica do dizer sobre. Nelson Rodrigues não escreve mais sobre seus "reis" e "príncipes" em crônicas teatrais e poéticas; tampouco o Canal 100 elabora discursos audiovisuais com requintes cinematográficos. Hoje temos os "escritos" excessivamente descritivos, limitados ao "jogo", de prosa fria, distante; temos o "show de imagens" que se espetacularizam a si mesmas, insensíveis ao olhar poético, reduzidas à tecnologia dos equipamentos. Portanto, o futebol é outro.


Poética do "jogo" e poética discursiva: uma sem a outra?

Mundo globalizado, experiências intercambiáveis, futebol mundializado e mercantilizado, crônica esportiva limitada ao visível. Uma imagem é uma imagem e não uma fonte de inspiração; um texto é o dizer imparcial sobre a realidade e não a expressão sensível do universal pela singularidade. O futebol de bar antes alimentado pela "arte discursiva" sobre o esporte é hoje o que alimenta a mecânica do "jogo". Os dribles ainda existem, as belas jogadas ainda estão em pauta; só não são mais fonte de percepção para além de uma racionalidade técnica engendrada pela mecânica racionalidade discursiva dos especialistas de plantão.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Avaliar é também aprender

Para que serve uma avaliação? A pergunta é frequente entre os estudiosos em educação e o tema, bastante controverso. As razões para isso são muitas. Mas quero ater-me a uma em especial. Nos condicionamos a ver a avaliação como "etapa ulterior ao aprendizado"; avaliar, portanto, não é aprender. Esta concepção orienta os critérios usados para a composição de rankings, por exemplo. É como estimular os "piores" a ser como os "melhores" até a exaustão; ou então desistir. Novamente, estamos falando de um instrumento de gestão para diminuir as tensões provocadas pela multiplicidade de variáveis não passíveis de controle. As formas de "usar" a avaliação implicam tensões.

O Ministério da Educação tem realizado uma série de estudos a respeito e promovido um processo tão amplo quanto possível de avaliações. Na educação superior, criou o Índice Geral de Cursos para orientar os futuros estudantes na escolha de instituições "confiáveis". Na educação básica, tem debatido os índices "paupérrimos" de desempenho escolar. Como não há canais de debate aprofundado, o próprio MEC estimula através dos meios de comunicação uma visão superficial a respeito. Enquanto país, somos "atrasados" apesar dos esforços da burocracia político-administrativa.

É importante ressaltar que todos os critérios de avaliação ultimamente "lançados" descartam os espaços que não estejam a serviço do desenvolvimento científico e tecnológico ou da criação, ainda que imagética, de possibilidades de ascenção social. Este é um aspecto da cultura de avaliação cujos resultados justificam-se a si mesmos. Dizendo de outro modo: quem avalia não está no processo de avaliação, nem é objeto dela. O "mestre" define quando, de que forma e com que critérios seus "discípulos" aprendem; não está em pauta no processo. E para ser eficiente na avaliação, deve trabalhar objetivamente na observação de quem consegue e em que escala alcançar as metas propostas.

Nossa capacidade de atuar no mundo não se reduz às formas como aprendemos a descrever o que fazer em determinadas circunstâncias. Tampouco está em escalas de desempenho quantificáveis e mensuráveis por aferições distantes do fazer cotidiano. Avaliar é também aprender, como etapa do ato mesmo de apropriação daquilo que constitui o nosso real. E o nosso real está sempre em relação à nossa capacidade de construir parâmetros coletivos, normas de convivência e trajetórias conjuntas. A avaliação está para a organicidade, não para a ordem. É o que dá vida ao aprendizado e leva o ato de aprender à própria vida e suas escolhas.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O que se quer da educação afinal?

Visão sistêmica para a educação tem sido a bandeira do Ministério da Educação na gestão de Fernando Haddad. E sob essa bandeira foram definidos os processos de regulação do sistema brasileiro. Contudo, ainda há um enorme distanciamento entre os níveis de ensino: educação básica e educação superior são dois sistemas distintos. Aproximar os diferentes níveis é muito mais que um desafio; depende, fundamentalmente, de uma profunda mudança quanto às concepções que fundamentam a própria visão.

Na educação superior, os investimentos públicos têm sido muito mais significativos. Sobretudo porque ficam a critério do Governo Federal. A educação básica, ainda que garantida na Constituição Brasileira, é de responsabilidade dos estados e municípios. Os números neste nível de ensino são estarrecedores para um país que busca desenvolvimento e igualdade social. Recentes estudos apontam que apenas 48% dos jovens entre 15 e 17 anos estão matriculados no ensino médio. E 18% deles nem frequentam a escola. Estamos falando de 2 milhões de jovens nesta faixa etária.

O Ministro Fernando Haddad tem falado na perspectiva de inversão no processo de mobilidade de um sistema para outro. Segundo ele, apenas 12% dos que estudam em escolas públicas na educação básica têm vaga na educação superior pública. Os outros 88% preenchem o setor privado da educação superior. Eis a mudança considerada significativa: o próximo Plano Nacional de Educação parece mais focado na educação básica. Uma série de pesquisas tem norteado as decisões quanto aos investimentos para fortalecer espaços de aprendizagem entre os 4 e 17 anos. Mas esta não é a principal questão.

Conceitualmente, a visão sistêmica atende a critérios de gestão. Facilita, em termos, o ordenamento dos processos dentro de um "todo" reconhecido como dado ou projetado; propõe enxergar múltiplos "mecanismos", vários conjuntos de "engrenagens" que devem ser ajustadas em nome de uma complexidade "transcendente". O problema é que a complexidade é vista também como mecanismo; um mecanismo muito maior e controlável, de variáveis previsíveis. A visão cabe no cenário educacional brasileiro, principalmente pela quantidade de "engrenagens" a serem controladas. Cabe para a gestão, quase sempre ocupada em administrar quantidades.

Neste contexto, discute-se quanto do PIB deve ser aplicado em educação sem clareza de como e para quê. Há um projeto para a educação básica? Pode ser, mas estados e municípios orientam-se por ele? Não estamos falando de documentos reguladores nem normatizações. A educação no Brasil parece ter perdido o sentido: enquanto os discursos a associam à perspectiva de ascenção social a vida segue de outro jeito. Seja pelo nível de qualificação dos professores responsáveis pela educação básica, pela concepção de ensino e de aprendizagem ainda legitimada na sapiência do professor ou pela visão pouco sistêmica de nossos gestores.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Jornalismo esportivo e esporte midiatizado: circularidades

Dia de futebol, "jogo" de Copa do Mundo e da Seleção Brasileira inspira uma reflexão sobre o jornalismo e sua relação com o esporte. Como produto, o jornalismo esportivo ganha algumas qualidades; é "jovial", "dinâmico", "leve", "alegre", "ativo" tanto na forma quanto no conteúdo. Caracteriza-se como um modelo de expressão e de apuração dos fatos voltado para um tipo específico de consumidor. Mas o esporte enquanto fenômeno contemporâneo não é qualificado pelo jornalismo; é qualificado pela mídia. Chamamos de esporte midiatizado o segmento da indústria da sociedade de consumo que propõe a convergência entre informação, publicidade e entretenimento e que gira em torno de eventos competitivos.


Circularidade discursiva também em "pequenas" mídias

Umberto Eco, em sua viagem à irrealidade cotidiana (1985), denominava de falação esportiva a amplitude exponencial dada aos eventos esportivos, a ponto de se chegar ao discurso sobre o discurso sobre o espetáculo esportivo. A circularidade discursiva descrita por Eco ganha dimensões ainda mais amplas no contexto atual. São "imagens espetaculares", lugares especialmente organizados para dar "cor" ao espetáculo protagonizado pela mídia, elementos outros que nada tinham de relação com o esporte, agora inseridos no modo de produção do "jogo". A prática desportiva tornou-se secundária diante do evento esportivo midiatizado.

Está na própria convergência o sentido de circularidade. As coberturas jornalísticas são agendadas em função dos eventos competitivos considerados relevantes, com hora marcada e intervalos regulares para viabilizar sua espetacularização. Deles nascem as informações e decorrem as repercussões que os movimentam. O jornalismo esportivo "chama" o público e divulga o espetáculo; constroi uma imagem positiva do evento para marcá-lo na agenda. Depois, narra-o a partir de uma produção requintada e com olhar "especializado", simultaneamente ao acontecimento. Por último estabelece os critérios de análise dos resultados e reconfigura o acontecimento; o "jogo" em si dá lugar ao discurso sobre ele. Publicidade, entretenimento e informação movimentam a circularidade discursiva.


Circularidade para além das mídias convencionais

Ilustrando: Brasil x Coreia do Norte, estreia da seleção de Dunga na Copa do Mundo da África do Sul. Eis a agenda. Antes, todo um "fundamento" sobre o comportamento do treinador, dos jogadores, sobre o clima da estreia, aspectos comuns a todas as agendas do gênero. Ainda que informações consideradas jornalísticas, não há como negar o caráter publicitário que assumem na preparação para o espetáculo agendado. No momento do "jogo", narração com recursos tecnológicos e estéticos peculiares voltados para a garantia de satisfação quanto ao discurso sobre o acontecimento. Análises e interpretações vão gerar material agora para envolver o público até o próximo "compromisso", contra a Costa do Marfim. O movimento circular retoma seu eixo inicial.

A Copa do Mundo não se resume a um "jogo", tampouco ao mês em que todas as atenções voltam-se para o país-sede. É justamente o crescimento exponencial da circularidade discursiva sobre o esporte que estimula uma indústria direta e indiretamente ligada à agenda. Uma economia que dá à Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA) o status de organismo internacional comparado à Organização das Nações Unidas pelo montante de dinheiro que faz girar; uma economia que faz parar as nações quando seus "representantes" entram em campo. O esporte midiatizado, aqui especialmente o futebol, e o jornalismo têm sua origem e simbiose no processo de industrialização da sociedade. Cumpriram um importante papel disciplinar da vida moderna. Juntos, é bom que se diga.


O espetáculo não está mais no "jogo" em si. Não necessariamente

Mesmo que as estruturas sociais não sejam mais tão rígidas, que o mundo tenha diluído suas fronteiras e que a economia não esteja mais pautada por projetos de nação, mesmo assim, a midiatização do esporte não perdeu força. Como a globalização neoliberal, que reduziu o poder estatizante dos modelos sociopolíticos do Século XX, a midiatização do esporte centrou os investimentos na circularidade do discurso, da estrutura que o sustenta e dos recursos financeiros que a alimenta. Como foi possível perceber no "jogo" da Seleção Brasileira, não muito diferente de todas as outras estreias, a qualidade do espetáculo não está mais na prática desportiva que originou o produto Copa do Mundo.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Plano Nacional de Educação na agenda política e eleitoral

Pensar a educação como um processo amplo não é mais uma visão de futuro; aliás, nunca foi a não ser na retórica político-administrativa. Na última década, o Plano Nacional de Educação propôs 295 metas para melhorar os índices brasileiros no setor. A principal, contudo, foi abortada na origem com o veto do então presidente Fernando Henrique Cardoso à proposta de chegarmos a 7% do Produto Interno Bruto investidos em educação. A justificativa todos conhecem: é "muito dinheiro". Concordando ou não com a medida, cabe reconhecer que é mesmo; sem uma política pensada neste processo mais amplo, muito dinheiro para atingir índices meramete quantitativos.

O Ministério da Educação já prepara uma versão do PNE para o período 2011-2020. E as perspetivas dependem de uma mudança no montante dos investimentos, atualmente na casa dos 4% do Produto Interno Bruto. As metas agora são mais ambiciosas: começar com os 7% não alcançados nesta década e chegar a 10% do PIB em 2014 (alguma associação com o ano da Copa do Mundo no Brasil?). O projeto deve chegar ao Congresso Nacional em agosto e suas bases estão estruturadas sobre as diretrizes resultantes da Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada entre 28 de março e 1° de abril em Brasília. Em fórum legislativo se pretende garantir os recursos necessários para que, desta vez, as metas propostas tenham resultados mais próximos do proposto.

Na educação superior, o principal objetivo do PNE era inserir 30% dos jovens entre 18 e 24 anos no sistema de ensino, 40% destes em rede pública. O Ministério da Educação anuncia que até 2011 os índices devem ser alcançados, mas os dados são controversos. Na verdade, os índices importam bem pouco se relacionados aos aspectos qualitativos que ainda nos são caros. Segundo o MEC, o acesso ao ensino superior público quadruplicou nos últimos oito anos. Novas instalações, mais vagas e novas políticas de seleção contribuiram para a mudança no quadro. Professores da rede privada são atraídos novamente para a rede pública em busca de estabilidade e salários melhores, sobretudo para quem faz pesquisa. Mas o ensino continua sendo para os "melhores".

Garantir 10% do PIB para a educação tem lá suas prioridades; afinal, não se consegue atingir metas, mesmo as mais tímidas, sem orçamento efetivamente garantido. Contudo, o processo eleitoral talvez seja mais decisivo em função das referências ideológicas que caracterizam cada projeto político. Há uma diferença significativa nas propostas governamentais dos anos 90 e as da última década. Os dois partidos que protagonizaram essa diferença polarizam a disputa e vão definir, dependendo do projeto político, como os recursos serão aplicados; tenham o percentual do PIB que tiverem. E a agenda do Congresso Nacional pode estar comprometida com a corrida presidencial prioritariamente. A educação corre o risco de continuar na retórica político-administrativa.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Educação transnacional universitária, uma perspectiva

Se buscarmos as análises econômicas para o setor da educação, por mais divergentes em questões pontuais, haverá unanimidade quanto à potencialidade do mercado neste século. O pesquisador português Boaventura de Souza Santos, pensando a universidade no Século XXI, discute argumentos usados por organismos internacionais para estimular a transnacionalização mercantil da educação superior. No "comércio mundial de serviços", o setor educacional passou a constituir-se nas duas últimas décadas em fatia considerável se pensado pelo viés do mercado global.

Especializada em análise de serviços financeiros, a empresa norte-americana Merril Lynch enunciava na virada do século que, mesmo gigantesco, o mercado global da educação caracterizava-se por pouca produtividade, pela busca de tecnologia apesar do baixo nível de aproveitamento tecnológico, por uma gestão pouco profissional e uma baixíssima taxa de capitalização. Um mercado muito fragmentado cujo potencial de investimentos depende de novas áreas de valorização.

Há um modelo econômico pensado a partir do modo de vida dos países centrais em que, na concepção de Boaventura, as estratégias sociais de organização focam-se na necessidade de qualificação para o domínio das tecnologias. A chamada "sociedade da informação" é a base dessas estratégias. Neste contexto, as desigualdades sociais não estão em pauta. O uso das ferramentas para acesso à "economia do conhecimento" parte do princípio de que o direito a elas é livre, independente das oportunidades construídas coletivamente.

O "capital humano" é o motor dessa economia. Aptidões e capacidades cognitivas precisam ser trabalhadas para dar à informação um uso criativo e eficiente, colocá-la a serviço de "processos de reciclagem" exigidos por essa economia. Em outras palavras, é de formação permanente que ela precisa. O termo não pode ser confundido: uma coisa é formação, capacitação permanente para os lugares de ocupação dessa economia; a outra é educação permanente, um processo muito mais amplo de formação que põe essas aptidões e capacidades cognitivas sob o crivo de avaliações socioculturais e científico-tecnológicas mais responsáveis.

A saída para a desfragmentação desse gigantesco mercado, segundo os organismos internacionais de financiamento, depende de uma transnacionalização dos processos educativos; uma rede tecnológica capaz de transferir know how e formar capital humano através das tecnologias da informação e da comunicação, diz Boaventura. Contudo, essa estrutura pode também ser usada com o intuito de aproximar diferenças, construir oportunidades coletivas e acessíveis, sustentar projetos locais de desenvolvimento e criar políticas sociais de sustentabilidade.

As universidades, pelas características já enfatizadas aqui, têm "competência instalada" para usar as ferramentas de transnacionalização do processo educacional numa direção menos mercantilizada e para compor uma rede de múltiplos saberes capazes de mobilizar recursos cognitivos, estéticos e ético-morais no sentido de superar as desigualdades. Neste aspecto, Boaventura defende um novo modelo de conhecimento cujo "princípio organizador de sua produção é a aplicação que lhe pode ser dada". Um caminho interessante para a recomposição dos critérios que hoje sustentam cursos de nível superior e seus programas de pesquisa e extensão.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A UNIVERSIDADE, sua identidade e a publicidade


Do faturamento das Instituições de Ensino Superior (IES) privadas no Brasil em 2004, foram aplicados em marketing e comunicação 4,2%. Isso equivale a R$ 596 milhões, quantia mais que razoável. A questão é que, na época, 75% desse "investimento" destinou-se à captação de novos alunos, basicamente através de propaganda. Esse estudo da Hoper, contudo, já indicava e necessidade de mudança na alocação dos recursos destinados à área. Isso porque o relacionamento com os estudantes já inseridos no sistema educacional parecia mais coerente do que atrair uma demanda nova.

Estamos falando, claro, das instituições privadas. E, antes de mais nada, é bom ressaltar que há diferenças significativas ao se falar nelas. As IES com fins lucrativos ou particulares em sentido estrito obedecem a critérios empresariais de dar retorno fincanceiro aos investidores; já as sem fins lucrativos classificam-se pela vocação social de estarem vinculadas a pessoas físicas ou jurídicas comunitárias, confessionais ou filantrópicas. Há um terceiro tipo de fundação institucional cuja natureza jurídica é pública de direito privado. Signfica dizer que seu processo de gestão é similar ao das IES privadas que não visam o lucro, ainda que classificadas no sistema com o mesmo status administrativo das federais, por exemplo.

Um outro aspecto a ser considerado em qualquer análise relacionada ao setor é a organização acadêmica. Nem todas as IES são iguais ou respondem pelo mesmo status acadêmico. Interessam para este breve comentário as universidades. Isso porque tais organizações precisam oferecer formação em graduação e pós-graduação, com pesquisa e extensão associadas às políticas de ensino (vale um recorte específico em outra oportunidade). E há regras estruturais definidas pelo Ministério da Educação quanto a esse quesito; até 2013, todas deverão ofertar regularmente, além do ensino de graduação, 6 cursos de mestrado e 2 de doutorado.

A complexidade do sistema educacional brasileiro é fruto de uma trajetória repleta de nuances e ainda curta, se comparada a de países vizinhos na América Latina. Tais diferenças interferem diretamente no modelo de oferta de cursos, de gestão do processo acadêmico e na estrutura organizacional. Não dá para comparar uma universidade, com todo o peso das exigências que lhe são feitas, a outras IES. E o próprio MEC reconhece isso quando promove suas avaliações. O problema é que a complexidade aqui descrita não aparece nas campanhas de marketing ou nas estratégias de comunicação institucionais.

Faltam aos estudos na área certos fundamentos imprescindíveis para que se possa fazer uma análise mais profunda. As estratégias de comunicação e marketing têm obedecido aos critérios empresariais, como se educação fosse objeto de consumo. É lógico que as organizações privadas, incluindo as públicas de direito privado, precisam achar formas atrativas de convencer as pessoas que vale a pena investir nelas. Mas não pelo consumo. O negócio de qualquer universidade é o conhecimento, é o espaço de circulação estruturado em torno dele; é torná-lo patrimônio coletivo e garantir a educação como bem público, um direito republicano de acesso a esse patrimônio.

Quando as estratégias de comunicação e de marketing começarem a trabalhar a imagem institucional pela publicidade dos elementos que constituem sua identidade, talvez o sistema educacional brasileiro consiga superar o viés ideológico da dicotomia entre público e privado. O que é sinônimo de qualidade está associado ao direito público de acesso à educação e, portanto, as IES mantidas pelo Estado levam uma certa vantagem, independente de sua história e trajetória. Ao setor privado, relegado ao nicho de "mercantilista", ficam as "sobras" do sistema. Eis a interpretação de senso comum que as estruturas de marketing e de comunicação, pelo investimento que recebem, deveriam estar preocupadas em superar.

Há quem esteja fazendo isso, por um outro viés, mais inteligente, bem-humorado e, certamente, com orçamento bem mais modesto. As boas instituições privadas ajudam a formar o senso crítico proposto nos vídeos aqui anexados; falta usá-los em seu próprio benefício.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Política inclusiva e ingresso facilitado: UNIVERSIDADE para todos?

Há cerca de seis anos, um estudo do Núcleo de Apoio a Estudos de Graduação da USP mostrava um interessante aspecto da educação superior brasileira. Não obstante quaisquer generalizações e deduções apressadas, impressionam os dados revelados. Em 2004, ingressaram na Universidade de São Paulo mais moradores de uma única rua (Bela Cintra, na região dos Jardins) do que a soma de 74 bairros da zona Sul da cidade. A pesquisa ia mais adiante: nos dez anos anteriores, bairros que concetravam apenas 19,5% da população preencheram 70,3% das vagas para ingressantes na instituição.

Recentemente, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro divulgou os resultados de um primeiro estudo sobre seu sistema de ações afirmativas, pioneiro no Brasil. Os dados também são reveladores em alguns aspectos: o principal deles está relacionado à forma como os estudantes beneficiados pela política de cotas valorizam a oportunidade de ingressar numa Instituição de Ensino Superior. O estudo levanta aspectos positivos e negativos do processo, mas ajuda a elucidar que o grau de desempenho acadêmico não depende diretamente da forma como se ingressa no sistema.

Não foram poucas as vezes que ouvi professores expressando seu compromisso com o ensino apenas para os "melhores alunos". O princípio que fundamenta esse comportamento é o de que a universidade não é mesmo para todos; só para os mais bem preparados. Os dados de 2004 e os divulgados recentemente têm objetos distintos mas resultados semelhantes em termos de análise. Os mais preparados para enfrentar os processos seletivos da elite educacional são também de uma elite social e isso não parece novidade. O que há de novo no processo é a perspectiva de mudança quanto à visão preconceituosa a respeito dos estudantes beneficiados por políticas inclusivas.

Nas universidades privadas, com ou sem fins lucrativos, o processo de seleção para a maioria dos cursos não exige mais empenho significativo. Há vagas sobrando; portanto, o vestibular não mais expressa o acesso para os mais bem preparados. Decorre daí a interpretação generalizada de que a "mercantilização" do ingresso via processos seletivos menos rigorosos beneficiam estudantes desinteressados e incapazes de ingressar nas "melhores escolas". Política inclusiva e ingresso facilitado sofrem o mesmo tipo de menosprezo: não condizem com a tradição elitizada do sistema de ensino superior.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Decorrência da PESQUISA universitária: patrimônio coletivo ou propriedade intelectual?

Corria outro dia por entre links na rede. Buscava informações para uma palestra na Semana da Integração Docente e Discente na universidade em que trabalho. Impressiona ainda o excesso de desconfiança acadêmica sobre as possibilidades dessa ferramenta. Mas esse é outro assunto. Queria algo que pudesse ilustrar a importância de se construir argumentos sólidos sobre a ideia de universidade na contemporaneidade. Encontrei uma aprensetação organizada por professores da Escola Superior de Propaganda e Marketing que, num dado momento, relacionava a atividade de pesquisa com a economia do conhecimento.

A relação é chave: segundo os dados sustentados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), 89% da produção de pesquisa brasileira está nas universidades. Comparado com países em franco crescimento, como a Coreia do Sul, e potências reconhecidas, como os Estados Unidos, o Brasil está em desvantagem. Nestes países, maior parte das pesquisas é financiada por empresas (87% nos EUA, 69% na Coreia). De acordo com o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), a Coreia e o Brasil estavam "empatados" em número de registro de patentes em 1980 (30 cada). A reconfiguração na Coreia foi significativa para a mudança no quadro: 20 anos depois, a Coreia detinha 3600 patentes registradas e o Brasil, 96.


Por que o preâmbulo? Estamos evidenciando o contexto enfrentado pelas universidades no mundo inteiro em relação à sua, digamos, vocação. Como instituição social, a universidade construiu uma identidade vocacionada para a socialização de conhecimento como patrimônio coletivo. Conhecimento este estruturado por saberes universais, responsáveis por um futuro humanamente aceitável. Não é para a propriedade intelectual que esta instituição está voltada; pelo menos, não deveria. Os dados enfatizam isso. Países que desenvolvem patentes via ciência e tecnologia, o fazem por outras instituições, estas oriundas do modelo econômico que valoriza a propriedade, neste caso, intelectual.

Não se está querendo dizer que as universidades não devem entrar neste território. Não devem entrar inocentemente, pensando apenas nas alternativas de financiamento. Pesquisas para o setor produtivo, digo empresarial, tendem a não valorizar os aspectos socioculturais que, via de regra, põem em cheque os interesses primeiros em relação aos próprios resultados. Se a universidade vai se apropriar intelectualmente de uma nova tecnologia, que o seja para resguardar o uso responsável das ferramentas decorrentes. Neste caso, os princípos educativos têm como articular saberes universais e conhecimentos instrumentais. Instituição e organização completam-se pelo caráter recíproco dos elementos que constituem sua sustentabilidade.

Claro que é preciso ressaltar diferenças entre organizações públicas e privadas. Numa outra oportunidade.

domingo, 6 de junho de 2010

UM debate sobre a UNIVERSIDADE

Saberes universais x conhceimentos instrumentais [Luciano Bitencourt]

Há alguns meses não estabeleço conexões na rede de ideias deste blog. As justificativas são inúmeras, mas nenhuma boa o bastante. A questão é que sempre existe o tempo das reflexões; aquelas profundas, que redirecionam o fazer cotidiano e as projeções para a vida. Mergulhado em pesquisa e avaliação sobre educação superior no Brasil, não dei a atenção que gostaria para o espaço de registro desta experimentação em enunciados. O sentido de temporalidade no contexto que descrevo é nada cartesiano e cronológico. Diria que tive de dar um tempo pedagógico para a consolidação de meus argumentos. E é nesse tempo que recomeço minha compilação de curiosidades.

Na universidade em que trabalho estão em debate questões de fundo quanto à reforma de suas estruturas acadêmico-administrativas. E assim estão também as universidades brasileiras, envolvidas num desafio tanto mais difícil quanto mais se aprofunda nele. Importa nesta retomada reflexiva fazer algumas ponderações a respeito dos fundamentos. Primeiro, a própria ideia de universidade: seja pelos aspectos legais ou conceituais, uma universidade se destingue de outras instituições do ensino superior por oferecer formação em graduação e pós-graduação com desenvolvimento de pesquisa e atividades de extensão. E esta assertiva diz pouco.

Milenar enquanto instituição, a universidade contemporânea é uma organização que vive profunda crise, sedimentada no tipo de resonsabilidade social que assume. Enquanto instituição nasceu para cultivar os saberes universais, aqueles que dão à aventura humana um significado e uma trajetória preocupada com o patrimônio cultural de sua existência. Atualmente contudo, ao ensino superior recaem também as responsabilidades pelo conhecimento instrumental, aplicado a técnicas de ocupação em lugares definidos por uma estrutura de base econômica, pouco ou quase nada afetada por políticas sociais de desenvolvimento.

Foi com a sociedade industrial que a instituição universidade assumiu o compromisso de desenvolvimento científico e tecnológico; e enquanto organização segmentou os critérios de formação sociocultural, mais relacionada aos saberes universais, e os de formação sociotécnica, focada nos conhecimentos instrumentais. As concepções que alimentam o debate ainda estão atadas à estrutura de carreira acadêmica e seus processos avaliativos que constituem uma espécie de corporação e à estrutura de mercado desconsiderada em suas dimensões culturais e historicamente construídas.

Aprofundar estas questões torna-se fundamental para uma reconfiguração da universidade, seja instituição ou organização. Respeitando as temporalidades subjetivas que caracterizam a vida atual, passaremos a discutir os aspectos centrais desta temática. Não há aqui pretensões didáticas. O propósito é a construção de um enunciado experimental, como argumenta Isabelle Stengers, propondo os pontos de conexão possíveis para uma outra percepção quanto ao que chamamos de educação superior. Ao mesmo tempo, traremos materiais que a rede (a social e a prótese técnica) já nos disponibilizam.