terça-feira, 30 de setembro de 2008

Um ensaio sobre o mal-estar do Jornalismo

Jornalismo é profissão? De acordo com o professor e pesquisador português Nelson Traquina, a resposta está na simbiose entre a atividade jornalística e as teorias democráticas. Traquina defende que o Jornalismo é considerado profissão se analisado a partir do desenvolvimento da ocupação. Fruto da industrialização e da publicidade como forma de financiamento da disseminação de informações naquela nova sociedade, o jornalismo merece o status de profissão como uma atividade de contra-poder. Tornou-se, por assim dizer, a mediação necessária entre as esferas de poder e a sociedade.

Em sua trajetória, a atividade jornalística construiu hábitos e valores, uma história de luta por reconhecimento, saberes argüidos como próprios e necessários para o exercício profissional, código deontológico específico e uma autoridade reconhecida pela estrutura social, ainda que com resistências. Tais pressupostos, para a sociologia das profissões, garantem a classificação: Jornalismo, definitivamente, é profissão! A questão é fugir do debate reducionista ligado ao domínio técnico e das linguagens, que expõe os profissionais da área como “meros empregados, trabalhadores numa fábrica de notícias”.

Divulgada em abril de 2006, pesquisa da Federação Internacional dos Jornalistas indicava um alto índice de frustração profissional com os salários e alertava para a queda de qualidade dos jornais por conta da constante substituição dos jornalistas mais experientes pelos mais novos. Sintoma da convergente volatilidade entre tempo, espaço e capital e da falta de um debate consistente sobre as condições de possibilidade. O documento contém a sistematização dos dados colhidos em 41 empresas jornalísticas de 38 países. Essa não é uma crise localizada.

A instituição do tempo real no processo de geração de conteúdos jornalísticos engendrou um modo de ser profissional calcado na velocidade. Um fetiche, na concepção da pesquisadora Sylvia Moretzsohn. Tal fetiche já transcende a idéia de notícia como mercadoria. Não é mais a notícia - pode-se assumir o risco de dizer - o produto caracteristicamente jornalístico; mas a supressão do tempo de apuração e disseminação de informações sobre os acontecimentos do cotidiano. Quando fontes e versões sobre os fatos são homogeneizadas, as técnicas de apuração e produção dominam o processo; ou pior, são o produto. E é ao domínio do tempo que se entrega o exercício, antes intelectual, de interpretação do mundo.

Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, nosso mal-estar reside na insegurança, na instabilidade e na incerteza decorrentes de uma suposta liberdade espaço-temporal. Desencaixado das estruturas outrora “seguras”, o indivíduo agora navega pelos fluxos do tempo e do espaço. Projetos de vida, politicamente sustentados em ações coletivas, deram lugar ao movimento no que Bauman define como “política-vida”. Antes de caracterizar-se como visão pessimista, a reflexão propõe a necessidade de um novo sentido na construção do mundo. Qual o lugar do jornalismo neste contexto? Onde estão os limites, as fronteiras que o separam das demais ocupações e, portanto, o caracterizam como profissão?

Se há uma ocupação para o jornalista hoje, essa é a do não-lugar. Na sociedade fluida, os não-lugares admitem passagens até longas de indivíduos tidos sempre como estranhos. Por mais tempo que dure a estada, não há espaço para idiossincrasias e subjetividades. Na concepção de Bauman, todos devem sentir-se em casa, mas não podem se comportar como se nela estivessem. O não-lugar do Jornalismo está tanto nas relações de força que o sustentam enquanto profissão quanto no imaginário de ocupação possível.

É paradoxal: as fontes de informação se multiplicam e as alternativas são usadas para denunciar o movimento das organizações que, supostamente, dominam o processo de comunicação. Jornalistas “usam da palavra” nos meios alternativos contra os meios hegemônicos em defesa de um não-lugar de ocupação. Mas só o fazem quando estão fora deste não-lugar; quando não representam a hegemonia homogeneizante da informação. Talvez para perpetuar um sentido democrático de contra-poder que ainda sustenta, como propõe Nelson Traquina, o ideário da profissão.

Há outro lugar, contudo, que Zygmunt Bauman descreve como característico da sociedade fluida: são os espaços vazios. Poderíamos descrevê-los como espaços não-vistos e, portanto, sem significado. E isso não significa que não existam. Fazem parte de um modelo mental que não os reconhece; nem como existentes nem como possibilidade. Se o Jornalismo é profissão – e isso já não parece pertinente, terá de construir novos lugares de ocupação. Entre o não-lugar desconfortável dos postos de trabalho voláteis e da mediação técnica cada vez menos necessária, e os espaços vazios do não visto como condição de possibilidade há potencialidades a serem percebidas.

A atividade intelectual, romantizada pela imagem da máquina de escrever, símbolo da liberdade contra as racionalidades totalitárias, vive o mal-estar do desencaixe; do deslocamento das estruturas que já não oferecem segurança. Se é fora do não-lugar que a resistência parece possível, que o seja então para construir novos mundos. Com a multiplicidade de ferramentas tecnológicas disponíveis para quem lida com a disseminação de informações, está na busca pela expressividade sensível das relações humanas a resposta para o movimento necessário rumo aos espaços vazios.

Jornalismo é profissão? A resposta está numa outra perspectiva para a ocupação do que se diz ser um exercício intelectual.