terça-feira, 29 de maio de 2012

Currículo como práxis de espaços sociais de aprendizagem

Este texto foi produzido como base para uma mesa de debates no II Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, realizado em Florianópolis, cuja temática era Promoção da Acessibilidade no Contexto da Educação Permanente
A reflexão aqui proposta tem o intuito de promover um debate a respeito do sistema educacional no que tange a estruturação e a integralização de currículos escolares, sobretudo no ensino de nível superior. Parte-se do princípio de que ainda são tímidos os espaços de aprendizagem abertos às potencialidades que a criação e as perspectivas de desenvolvimento humano podem materializar em termos de formação para a vida, o que também inclui a esfera do trabalho. Neste contexto, o termo “inclusão” aparece para evidenciar os esforços promovidos por políticas de acesso ao sistema educacional em todas as instâncias e níveis de aprendizagem, mas sem mudanças significativas quanto às propostas de formação.

De origem latina, etimologicamente a palavra currículo é associada a percurso. No âmbito escolar, percursos em projeção; um conjunto de itinerários formativos geralmente sequenciado, proposto por especialistas como subsídio quanto às possíveis trajetórias em aberto para uma formação que atenda a necessidades sociais contemporâneas. Mas a questão que se põe em debate subjaz de uma práxis quanto à organização curricular cujos fundamentos têm origem numa sociedade industrial, tecnocrática e tecnologizada. O sistema educacional é excludente por princípio; segrega intelectualmente os desprovidos de capacidade para ingressar em determinada etapa do aprendizado, segrega socialmente os estranhos aos padrões estabelecidos pelas normas legitimadas e segrega economicamente os incapazes de prover com recursos próprios seu ingresso no sistema. Ou seja, reproduz um ideário de sociedade pautado na competitividade e em valores que cultuam a acumulação de bens materiais e simbólicos.

Para Tomaz Tadeu da Silva, a divisão do currículo em matérias ou disciplinas, a distribuição sequenciada de conteúdos em fluxos de tempo determinados e as hierarquias no processo de organização curricular refletem contingências sociais e históricas. Do mesmo modo, nossos currículos pessoais dependem de documentos comprobatórios que chancelam o que atestamos de significativo em nossa trajetória de vida. Podemos dizer que o sistema educacional, diante deste quadro, oferece espaços de valorização de títulos e certificados cujo acúmulo em maior número nos oferece garantias de oportunidades em escalas quantitativas proporcionais. Quanto mais títulos acumulados, maiores as oportunidades de ascensão social e de acesso aos bens materiais e simbólicos que se almeja.

Quando a Educação - e estamos nos referindo mais especificamente aqui à de nível superior - assume o status de objeto de desejo numa sociedade de consumo e propõe formar perfis para um sistema produtivo que já não garante mais lugares de ocupação por muito tempo; quando os investimentos pessoais em uma área de formação já não representam um investimento direto num emprego específico, como enfatiza Boa Ventura de Souza Santos; quando, segundo Renato Janine Ribeiro, uma perspectiva de carreira profissional toma um rumo em diagonal, cada vez mais afastado do diploma de origem, os títulos e certificados se fortalecem na segregação alimentada pelo sistema educacional.

É praxeomórfico neste sistema atualmente o que reforça os títulos e certificados em si mesmos, o que distribui as etapas de formação em função de uma hierarquia de conteúdos, o que legitima um certo mercado para o conhecimento considerado produtivo e obsoleto, o que faz da Educação uma commodity capaz de redimir a sociedade, sempre no futuro, de suas mazelas. Entram de maneira abstrata no debate quanto aos rumos para a Educação, pelo menos enquanto políticas sociais, os aspectos relacionados ao desenvolvimento humano e aos saberes considerados válidos para a solução de nossos problemas.

E o que se quer dizer com praxeomórfico? Já usamos o termo em outras oportunidades neste espaço. Adotado por Zygmunt Bauman, diz respeito a como tendemos a conceber o mundo a partir do que podemos fazer e do que fazemos habitualmente. O “o que podemos fazer”, sugerimos, está no âmbito das potencialidades, de nossa capacidade prospectiva de imaginar realizações futuras. O “o que fazemos habitualmente”, na esfera dos valores que cultuamos, dos procedimentos e das atitudes que adotamos diante das questões cotidianas e, num certo sentido, dos processos cognitivos internalizados ou legitimados coletivamente. O termo designa, portanto, que a “forma” decorre da práxis, das constantes negociações de sentido quanto aos rumos que tomamos frente aos problemas pelos quais todos somos afetados. E a práxis na estruturação de currículos escolares tem referendado uma tradição que pouco explora as próprias potencialidades.

A despeito dos debates contemporâneos e das experiências menos ortodoxas de estruturação, qualquer proposta de integralização curricular tem em conta ainda a linearidade, a hierarquia nas escalas de valores, no acesso aos saberes e no fluxo de informações represado em grades disciplinares, a avaliação por acúmulo de requisitos subsequentes, enfim, a práxis na estruturação de currículos escolares mantém as formas de organização de itinerários formativos em padrões que talvez já não sejam suficientes para dar conta das necessidades sociais de hoje.

A própria ideia de Educação Inclusiva, reconhecidos os avanços quanto às concepções que lhes são próprias, mantém como desafio genérico a integração de pessoas deficientes nos ambientes escolarizados por classes consideradas normais. Contudo, considere-se que a sensação de normalidade na escola só existe em função do currículo, em função do que se propôs como itinerário formativo. Neste aspecto, as concepções de inclusão sustentam-se na necessidade estrutural de prover a superação das deficiências - sejam elas físicas, comportamentais, intelectuais ou de quaisquer ordens - com recursos que auxiliem o ambiente a manter-se nos padrões de normalidade. Não é o currículo que está em questão mas as maneiras de fazer com que todos, independente das deficiências que tragam consigo, alcancem a “normalidade” por ele projetada.

Se está no currículo escolar a delimitação das referências essenciais para o processo de formação é a partir dele que se pode constituir os espaços de aprendizagem igualmente necessários. Sem uma práxis, portanto, que valorize laços afetivos, rumos constantemente negociados e aprendizagem autônoma não há forma que represente outras perspectivas em relação ao que já consolidamos no ambiente educacional. É importante enfatizar que nem todo o espaço de aprendizagem é social, na medida em que nele não há referências que afetem a todos os envolvidos e, por consequência, laços e memórias que expressem um sentido orgânico de coletividade. Cada indivíduo neste espaço de tensões solitárias, usando termos de Marc Augé, mantém vínculos com seu próprio movimento em busca de chancelas que lhes abra oportunidades.

Um espaço de aprendizagem que se propõe social concebe lugares para se estar neles em permanente circulação. Não se trata de uma passagem circunstancial por itinerários formativos planejados para conferir documentos comprobatórios quanto ao mérito adquirido num determinado fluxo de tempo. Estes são uma decorrência. Laços afetivos e memória estão intimamente relacionados com a valorização de múltiplos saberes, de diferentes percepções sobre as questões fundamentais para a formação, de uma vocalidade que expresse o diverso como constitutivo do espaço. Para Zygmunt Bauman, vocalidade é um termo que denota o caráter polissêmico do diálogo com os saberes. Pois bem, num espaço assim a aprendizagem se dá pela potencialização das diferentes capacidades de resposta às questões pelas quais todos nele são afetados.

Enquanto política, podemos continuar buscando formas de facilitar o acesso dos excluídos ao sistema educacional. Mas parece oportuno reavaliar as referências essenciais que os currículos impõem aos espaços de aprendizagem. Desde meados do Século XX, quando a Educação passou a ser entendida como um direito, as classes e gêneros que ascendem a ele crescem na mesma proporção em que se estratificam os tipos de formação em oferta. As chancelas hoje são muitas e atendem aos mais variados graus de interesse por formação. E os currículos reproduzem-se a partir de modelos que valorizam a padronização da forma em detrimento de uma práxis quanto à sua estruturação. Os itinerários formativos propostos pelas instituições de ensino precisam perceber e valorizar as trajetórias constituídas fora da “normalidade” que impõem.

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