quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os índices de desenvolvimento e a educação como bem de consumo

No início deste ano, a Grécia sediou a quinta edição do Fórum Internacional de Universidades. No debate esvaziado pela crise econômica, lamentações e olhares distintos sobre o papel destas instituições no contexto atual. Países no topo da cadeia científico-tecnológica mergulham na falta de ética, problema evidenciado pelo crescimento de plágio em publicações de pesquisa e pela falta de compromisso de cientistas com os sérios problemas que enfrentamos; países em emergência focam energia na melhoria do desempenho de suas universidades nos rankings internacionais; já os submersos na crise, discutem as perspectivas diante dos cortes e das demissões em grande escala no setor da educação.

Pelo menos essa foi a síntese de uma parca cobertura jornalística no Brasil. Aliás, a mídia brasileira há algum tempo tem vestido a farda conservadora do mercado da educação, preocupado em quantificar seus contingentes a custos irrisórios. A expansão do ensino técnico de nível médio, comemorada discretamente pelo setor industrial, ocupa espaços distintos no debate público em relação a um suposto interesse do governo brasileiro por atrair mão de obra qualificada estrangeira. E o ensino tecnológico, de nível superior, ainda é fomentado como necessidade para acelerar um mercado de trabalho "cheio de vagas".

 
Mão de obra qualificada estrangeira vê na economia brasileira uma boa perspectiva de
mudar de vida. O governo brasileiro, de olho nesse "filão", estuda propostas de abrir
oportunidades. A matéria foi veiculada no Bom Dia Brasil de 17/01/2012.

Somos um país em desenvolvimento agora "desacelerado" por conta de uma crise internacional, de um Estado ineficiente e de índices paupérrimos em educação, dizem sucintamente os setores especializados nas "ficções invariantes" da economia global. Por trás desse discurso há uma segregação intelectual nada comparada ao emergente crescimento social e econômico tupiniquim. Os ideários que a sustentam estão entranhados nos modos de organização, via de regra instrumental, das instituições brasileiras em todos os setores. E o da educação não é diferente.

Economia e conhecimento
O novo salário mínimo deve impactar nas classes sociais mais baixas, sobretudo na chamada "classe média". E não é de hoje que o mercado brasileiro tem voltado olhares para os níveis de renda crescentes de um extrato social capaz de movimentar a economia no atacado. No setor educacional, sobretudo o privado, produtos e serviços voltados para a "classe C" são vistos como solução para uma "crise educacional" ainda mensurada por uma economia de mercado. Na superficialidade do tema surge a excessiva preocupação com a formação humanística das escolas tradicionais do ensino superior, formação esta que "atrasa" o preenchimento de vagas num carente setor produtivo.

O processo de distribuição de renda no Brasil contrasta com o acesso ao sistema de formação de nível superior. Talvez por conta de uma estratégia, não de um contexto caótico. O Brasil, a China e a Índia (não necessariamente nesta ordem) viraram uma espécie de oásis de oportunidades num mundo de restrições culturais, perplexo com uma agonia há muito anunciada por pensadores que sequer sonhavam com a concretude de suas prospecções. Como nossas "ficções invariantes" nos impulsionam para uma corrida desenvolvimentista cuja base é a "economia do conhecimento", o acesso às oportunidades exige mais velocidade que equidade.

Assim como a mão de obra qualificada estrangeira, a formação de uma elite intelectual tem nome e sobrenome, tem grife financiada pelo Estado para a geração de ativos que fomentem commodities cujos dividendos rendam mais política do que socialmente. Na "outra ponta" está um passivo que precisa se qualificar e ao qual o financiamento do Estado depende do mérito individual dos interessados. A lógica sustenta a expansão do ensino técnico e tecnológico como solução para a melhoria dos índices de avaliação social e econômica, imputa às instituições públicas a excelência na formação das elites intelectuais e ao "resto" do sistema educacional de nível superior a formação para o mercado por uma questão de sobrevivência.

Números do Censo da Educação Superior tem sido sempre crescentes, com
pequenas variações. Na última década, a principal característica foi o
crescimento acentuado da ociosidade de vagas no ingresso ao sistema.
Os percentuais indicam a quantidade de vagas não preenchidas ano a ano.
Clique na imagem para ampliar.

Ensino e consumo
Relatório divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta um aumento de 156% nos rendimentos para quem faz curso superior no Brasil. Não por acaso a taxa de escolarização bruta (taxa de matrícula calculada pelo total da população do país no ensino superior em relação à população com idade universitária) é de apenas 27%. Os dados oficiais do Censo da Educação Superior em 2010 indicavam 5.449.120 de estudantes matriculados, 73,18% na rede privada. Hoje estima-se que haja cerca de 1 milhão de estudantes a mais. A meta do governo é chegar a 11 milhões em 2020.

A julgar pelos relatórios promovidos pelas organizações que respondem pela economia mundial, a educação é encarada como objeto de desejo. É pelo consumo da educação que os índices sofrem alterações. Na década passada, a demanda latente cresceu quase que na mesma proporção do número de matrículas. Contudo, tal demanda conta com as vagas ofertadas e não preenchidas quando do processo seletivo. Setenta por cento dos 5.108.690 candidatos que não ingressaram no sistema em 2010 não tinham mesmo vaga. Os demais, 1.529.980, não ingressaram por questões financeiras, visto que apenas 2,46% deles tinham disponibilidade em instituições que não cobram mensalidade.

Na década passada houve um crescimento significativo na demanda pelo
ensino superior brasileiro. Com as mudanças ao processo seletivo via ENEM
os números na próxima década tendem a ser mais próximos da realidade,
visto que o sistema de seleção é unificado. Em 2010 houve crescimento
tanto no número de candidatos quanto no de não classificados. E diminuiu,
ainda que pouco, o número de vagas não preenchidas. Clique no gráfico
para ampliar.

Estamos diante de um quadro bastante complexo. Para chegar aos patamares propostos no Plano Nacional de Educação, o governo federal terá de contar com o setor privado. Ainda que haja esforços quanto ao financiamento de bolsas de estudo e políticas inclusivas para população carente, ainda que haja o esforço de melhorar a estrutura do serviço público em educação superior, as metas são ambiciosas e inatingíveis se mantivermos os mesmos índices da última década. Para se ter uma ideia, não foram preenchidas 49% das vagas ofertadas no sistema no fim da última década. Mas a questão principal não é bem esta. Os esforços de resposta ainda enfatizam a educação como bem de consumo.

Para quem é a educação, afinal? Como direito inscrito na Constituição Federal ela deve oferecer perspectivas, estimular novas formas de organização social e traduzir-se numa política de desenvolvimento humano. Distribuir renda e fazer a economia girar nos patamares dos exemplos mais "desenvolvidos" não é, exclusivamente, sinônimo de crescimento. Tampouco a educação, descontextualizada, é índice para aferir os níveis de desenvolvimento de um "povo". A educação é um bem cultural cujo símbolo está no caráter formativo (e não apenas intelectual), no reconhecimento da diversidade enquanto riqueza (e não apenas no caráter desenvolvimentista) e, sobretudo, no conhecimento enquanto patrimônio coletivo (e não apenas enquanto commodity de uma economia de mercado).

O desafio maior, como disse no fórum sediado pela Grécia o "presidente" da Universidade de Lisboa, Antonio Nóvoa, é "reorganizar [as universidades] de maneira que estejam conectadas aos problemas locais". Isso implica estimular o acesso ao conhecimento gerado e socializado nestas instituições, o que significa promover a geração do conhecimento junto com a sociedade. Universidade não é sinônimo de graduação e pós-graduação; não é propriedade de uma elite intelectual; e não deve estar compromissada apenas com a parte mais tenra dos projetos de desenvolvimento no país. Enquanto ela for só para os "mais bem preparados" em dar respostas ao sistema, não há como pensar em desenvolvimento humano. O Brasil precisa de uma educação superior resistente à segregação intelectual que reproduz o mercado dentro do próprio sistema.



A CM Consultoria apresentou no ano passado uma proposta no Congresso Brasileiro da Educação Superior 
Particular um estudo com indicações de como atingir as metas do Plano Nacional de Educação para a 
próxima década, no que tange ao ensino superior brasileiro. O estudo contém muitas informações interessantes
mas tem o viés mercadológico, que enxerga a educação como bem de consumo. Quantitativamente, a 
proposta é viável. Qualitativamente, não é objeto do estudo.

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