segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Propriedades do Jornalismo e o exercício jornalístico como propriedade: entre a Globo e o debate público

Isenção, correção e agilidade são atributos de qualidade para produção de um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas. Em síntese, o documento que explicita os Princípios Editoriais das Organizações Globo reduz o Jornalismo a uma forma de "apreensão da realidade" e aponta os critérios institucionais para dar conta dos valores que apregoam. Seguramente, tais princípios reúnem um belo material para o debate nas escolas de comunicação e nas rodas mais intelectualizadas dos diversos setores sociais. Um debate profícuo, sem dúvida, para uma elite intelectual. Não para a qualificação do espaço público.

Ainda que possa ser comemorado pelo ineditismo, pelo "compromisso" assumido com o público (diferente de compromisso público) e pela suposta transparência que ronda o documento, lê-lo é como ingerir doses de uma droga (lícita, enfatize-se) cujos efeitos são meramente anestésicos. "Consumidor da informação" ou "fonte dela" (como o próprio documento define), o público agora tem claros os argumentos que consolidam o perfil das Organizações Globo. Uma clareza revestida de poder de cobrança para os casos em que os princípios sejam feridos.

Digamos que as Organizações Globo contribuem para o debate a respeito de uma ocupação cujo status profissional é reconhecido por regras próprias de atuação mas não legitimado quanto aos critérios de formação para o exercício de tais regras. O documento define Jornalismo no afã de assegurar um exercício intelectual de interpretação do mundo como propriedade das instituições que financiam a disseminação de  informações. Valiosa no mundo contemporâneo, a informação (e a jornalística é uma das mais requisitadas) ganha "credibilidade" quando respaldada por modelos de negócio inscritos na tradição lucrativa do mercado da comunicação. Os princípios publicados pela Globo servem, antes de tudo, a estes ideários.

As Organizações Globo divulgaram seus princípios editoriais em todos os
seus veículos de comunicação, com toda a pompa que julgam merecer.

É preciso cuidado com as críticas ao documento. Ele é importante para a demarcação de um território periodicamente desestabilizado por decisões judiciais que põem em risco as regulamentações de uma atividade imprescindível para a sustentação da democracia. Para os jornalistas, os princípios publicados pela Globo referendam o próprio campo de atuação. Não como se gostaria. As críticas, portanto, enaltecem as demarcações e os valores explicitados no documento porque servem como "ponto de partida" para um debate bastante útil ao próprio campo. Todas as ressalvas decorrentes reacendem a luta pelo reconhecimento da formação profissional em Jornalismo; são uma oportunidade para ocupar o espaço midiático (considerado público) fruto do próprio campo.


Principais argumentos

A partir da definição de Jornalismo, três seções estruturam o documento: 1) Os atributos da informação de qualidade2) Como o jornalista deve proceder diante das fontes, do público, dos colegas e do veículo para o qual trabalha; e 3) Os valores cuja defesa é um imperativo do Jornalismo. Um compêndio das concepções que sintetizam a "prática intuitiva" do "bom jornalismo" desde a fundação de O Globo, em 1925. Na abertura assinada pelos acionistas da família Marinho, a sentença: em função da diversidade de meios de produção e difusão de informações é preciso identificar o Jornalismo de qualidade enquanto prática para reafirmar a necessidade do produto resultante dela.

   
No debate promovido pelo Observatório da Imprensa, a análise é conduzida
pelos e para os representantes do campo de atuação jornalístico. Neste caso,
jornalistas estudiosos, pesquisadores. Debate de intelectuais.


A defesa do debate público tem um duplo papel: evidenciar a necessidade
de uma prestação de contas à sociedade por parte das empresas concessionárias
de comunicação e a definição dos contornos do campo de atuação jornalístico.


O termo "plural" só aparece nos princípios editoriais da Globo associado à
necessidade de diversificação das redações quanto aos seus comentaristas,
cronistas, articulistas.

Um dos atributos de qualidade da informação jornalística, a isenção merece atenção especial. O termo é usado com a clara intenção de definir responsabilidades por eventuais erros. As Organizações Globo eximem-se do fardo de assumir certos posicionamentos na medida em que estabelecem regras de convívio com as fontes e cuidados especiais na apuração da "verdade dos fatos". Ou as fontes não têm credibilidade ou os jornalistas são ingênuos a ponto de publicarem informações sem a devida e necessária atenção aos "diversos ângulos dos acontecimentos". Para a Globo, "produzir um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas" não é uma ação inscrita no contexto de lutas político-ideológicas. Os fatos o são por si mesmos, basta retratá-los.

Sendo assim, o segundo atributo de qualidade, a correção, estrutura-se sobre a evidência de que não há espaço para subjetivismos na produção jornalística. "Descrever e analisar os fatos da maneira mais acurada, dadas as circunstâncias do momento" é o que garante a credibilidade do produto; para tanto, é necessário distanciamento de todos os laços afetivos, das "idiossincrasias" e "gostos pessoais" no processo de produção jornalística. O correto está, portanto, na garantia de isentar a instituição do fardo de ter de responder por ideias que ponham em risco o modelo de negócios calcado numa economia de mercado dependente dos valores democráticos (e o direito ao consumo, evidentemente, é o mais importante), da livre iniciativa e da liberdade de expressão.

Por último, a informação jornalística ganha qualidade quando adicionado um terceiro atributo: a agilidade. O conhecimento produzido com rapidez pelo Jornalismo justifica-se porque a "imagem dos fatos", "traçada logo após o ocorrido" ainda não tem os "contornos definitivos". E não precisa ter; esse compromisso é da História. Como a "notícia tem pressa", os esforços para a "celeridade" do processo dependem dos investimentos em tecnologia adequada e processos administrativos condizentes. A demora na divulgação de informações só se justifica quando não acarreta "prejuízos à sociedade". O direito ao "primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas" em "primeira mão" vem em primeiro lugar.


Decorrências óbvias

Que perfil de jornalista corresponde aos critérios assumidos pelas Organizações Globo? Reconhecida a impossibilidade de um profissional despir-se totalmente de subjetivismos, que suas idiossincrasias podem representar "filtros" inconvenientes, é imperativo que as redações (o clássico lugar dos jornalistas na indústria da comunicação) sejam "plurais", componham-se de diversos nichos de especialidade, diferentes concepções de valores e crenças. Diversificar os "filtros" é a maneira de proteger-se contra eles na medida em que "todos são responsáveis" pela isenção, pela correção e pela agilidade do processo de produção do "primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas".

Bom jornalista, neste contexto, é o que defende os valores democrátios (independente de suas próprias crenças e valores) e a liberdade de expressão. Interessante que o termo "livre iniciativa" apareça apenas quando o documento aborda as organizações do grupo e é usado, junto com os que ilustram o perfil ideal de profissional, como apelo à defesa "de qualquer tentativa de controle estatal e paraestatal" no sentido de cercear as liberdades fundamentais da sociedade. Sejamos francos, o único lugar possível para as Organizações Globo é o de mediadora entre as esferas de poder e os diversos setores sociais. Esse é o seu negócio. Mas é o lugar das instituições concessionárias de comunicação que está em jogo.

O mérito do documento parece estar no óbvio, apontado como novidade. Retórica sem precedentes na indústria da comunicação brasileira, os princípios editoriais, aqui parcamente analisados, trazem muito mais insumos para o estudo do campo de atuação jornalístico no país. Há quem pergunte se tudo o que está escrito será cumprido; há quem diga que a sociedade precisa cobrar. Pragmaticamente, pouco importa. Os valores da Globo não estão em debate. Não estão inscritos no contexto da democracia, da liberdade de expressão e da livre iniciativa que defendem. São regras para um grupo específico de profissionais, para um tipo peculiar de produto; não podem ser trazidos para "iluminar" todo um campo de atuação. Não se pode assumir, mesmo inconscientemente, o fato de as Organizações Globo terem publicado em "primeira mão" seus princípios editoriais como marco para o debate público sobre a produção jornalística no Brasil.