quinta-feira, 2 de maio de 2013

Quando o conhecimento tem significado mas não faz sentido

Em 2012 a OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, publicou  "estudo" sobre a Educação em 34 países. Referência interessante, usada inclusive pelos meios de comunicação brasileiros como principal informação: o Brasil é o país com maior potencial de diferença nos salários pagos a quem tem e quem não tem um diploma de ensino superior. Vamos explicar melhor: há áreas que pagam quase três vezes mais para quem tem no currículo um curso superior completo. E 86,5% dos que conseguem terminar uma graduação, segundo os dados publicados, estão empregados.

Mas se considerarmos que 49,3% da população com 25 anos ou mais sequer completou o ensino fundamental, vamos entender o abismo em que mergulhamos ao lidar com os dados estatísticos sobre educação no Brasil. E talvez o porquê de tamanha diferença entre salários com e sem pedigree. O Censo Demográfico de 2010, organizado pelo IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, relaciona o rendimento per capita com o "grau de instrução": quanto maior a fonte de renda, mais alto o percentual de titulação acadêmica e, portanto, considerados os dados da OCDE, maiores as oportunidades.

A mobilidade social tem se demonstrado mais próxima de quem investe nos "estudos", de quem investe no conhecimento. Mas o que os dados não revelam, não explicitamente, é que a titulação, o "grau de instrução" ou como queiramos chamar para fins estatísticos, não representa diretamente o conhecimento em termos significativos. Em muitos casos, basta o diploma para um aumento no salário; não são levados em conta os fatores inscritos no tipo de estudo, na relevância do trabalho... O que muita gente chama de "meritocracia" não passa de um sistema de progressão automática, que engorda os índices de aferição meramente econômica.


Rubem Alves e o conhecimento significativo. O que faz sentido para a vida é que ganha significado.

Outro dia conversava sobre as perspectivas do ensino com um grupo de amigos. Nem chegamos perto de discutir sobre a educação. Questionaram-me quanto à resistência que nutro em fazer cursos de mestrado e doutorado para "qualificar" minhas funções na universidade. Como esses cursos têm um senso bastante estrito, é muito difícil negociar o que se pretende desenvolver em termos de estudo; ou você aceita as regras ou aceita as regras. Então alguém fez um comentário assim: "eu gosto de ser aluno, você não?". Minha resposta, intuitiva e quase imediata: "eu gosto de estudar; mas de ser aluno...". Não me dei o tempo necessário para pensar na resposta. Mas, pensando agora, quando se é aluno, acho mesmo que há pouco espaço para quem gosta de estudar.

Numa atividade de formação pedagógica da universidade em que trabalho, a Unisul, alguém levantou a hipótese de preparar os estudantes para não "colarem" nas provas. Geraldo Campos, amigo e professor, surgiu com uma resposta inesperada: "eu incentivo para que meus alunos colem, que façam provas coletivamente, que discutam sobre as questões e que as resolvam juntos, em grupo". O senso comum na docência propõe o controle da aprendizagem pelos conteúdos considerados necessários num determinado fluxo de tempo. Há nesse controle uma reprodução dos aspectos administrativos a que os professores são submetidos. É um modo de organização criticado da docência para fora mas reproduzido nas salas de aula. Em todos os níveis de aprendizagem.

O professor é autorizado pelo que conhece. Sua autoridade está na legitimação dos saberes que acumula; e esses saberes estão legitimados nos títulos que alimentam seu currículo. O termo estudar ganha, neste contexto, um sentido tecnocrático: o professor estuda para produzir cientificamente, estuda para processos seletivos em função da carreira, estuda para "qualificar" o currículo, estuda para se atualizar quanto aos conteúdos de suas disciplinas... estuda para tudo o que faz sentido na sua vida. Na de seus alunos, não sei.

Se pensarmos no planejamento das atividades docentes, por exemplo: via de regra o professor pensa em tudo antes. Define os caminhos para o acesso às informações que julga necessárias, define o tempo a ser dedicado aos estudos, os tipos de trabalho que serão desenvolvidos... tudo que os estudantes irão realizar (juntos no jogo disciplinar mas sozinhos nas tarefas de materialização do conhecimento) tem um percurso pensado para que as variáveis escapem o mínimo possível. Ele mesmo, o professor, se põe fora do processo em construção porque personifica aonde se deve chegar, carrega a luz que falta aos alunos.

Mário Sérgio Cortella e a cautela imobilizadora. Na educação, uma cultura.

Conservo em casa o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, uma edição de 1948 organizada por Hildebrando de Lima e Gustavo Barroso, revisto na "parte geral" por Manuel Bandeira e José Baptista da Luz, e na "parte de brasileirismos" por Aurélio Buarque de Holanda. Nele fiz uma consulta a respeito do termo estudar. À página 531, o verbete aparece com a primeira significação: "aplicar a inteligência a, para aprender"; em seguida, o termo estudo é denotado como "acto de estudar; aplicação do espírito para aprender".

É preciso levar em consideração que dicionários expressam o uso corrente da língua num contexto em que as palavras têm o valor do uso social que delas se faz no cotidiano. Em dicionários mais recentes, o termo estudar mantém o sentido, mas relaciona-se diretamente à ideia de adquirir conhecimento. Ora, há uma diferença abissal entre aplicar a inteligência e adquirir conhecimento. Considere-se também que, nas teorias educacionais, há uma perspectiva de deslocamento nas concepções de ensino e de aprendizagem para o ato de aprender.

Aprender não é somente adquirir conhecimento; o termo sequer expressa o ato de conhecer em sua dimensão plena. O ato de adquirir, inclusive, não é meramente ilustrativo nesse caso. É como se o conhecimento pudesse ser acessado em algum lugar, transportado para a nossa bagagem cultural através de papéis comprobatórios quanto à capacidade de dar respostas adequadas ao sistema que o organiza, o classifica, o disponibiliza. O lugar da docência nesse cenário é o de usar o compêndio de informações sistematizadas a que o docente teve acesso, e convencionou-se chamar de conhecimento, para transmitir conteúdos. O professor ensina para quem pode alcançá-lo, para quem joga o jogo disciplinar de seu domínio.

A estratégia de fazer com que os estudantes aprendam uns com os outros (como alertou o amigo Geraldo), que pensem nas soluções aos problemas que os afetam, que discutam os possíveis disponíveis no processo de formação... a estratégia de fomentar o diálogo com a vida e de aplicar a inteligência para aprender o que faz sentido em relação a ela ainda não cabe nos planejamentos pedagógicos formais. Planos de ensino, documentos em que se estabelece o quê e quando deve ser ensinado, poderiam ser substituídos por programas de estudo, propostas de diálogo com a vida, com as informações sistematizadas, com os saberes cotidianos e com os recursos ferramentais adequados a ações significativas. Ações conjuntas entre professores e estudantes.

Congregação do curso de Comunicação Social da Unisul, campus Pedra Branca, em 2009. Debate sobre 
o lugar da docência na educação superior realizado numa das reuniões de planejamento semestral. 

Somente 11,3% da população brasileira detêm títulos de graduação. E é esse o universo valorizado em termos salariais, segundo os dados da OCDE. No plano econômico, educação e instrução, aprendizagem e treinamento são sinônimos bem apropriados para justificar as concepções estatísticas que embasam a mensuração do desenvolvimento em quaisquer dimensões. No plano político, os investimentos recaem sobre estruturas que mantêm o rumo apontado pelas estatísticas. Os "estudos" quase nunca refletem a aplicação da inteligência para aprender algo que realmente transforme; nossas fontes de referência não passam de compêndios usados ao sabor de quem domina a linguagem douta que os legitima. E é no plano científico que mais se ensina a adquirir conhecimento, algo bem distante da aplicação do espírito para aprender.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

2013 e o tempo necessário

Com quanto anos se faz uma vida?

Há quem de 33 faça 2.000. E há quem de 73 faça o tempo que for necessário. Prefiro o tempo que for necessário por muitas razões particulares. Mas há perspectivas genéricas que sustentam minha escolha: o tempo necessário (kairós) é auspicioso, paciente e lúdico. Ele não devora almas, as cultua no ritmo de nossas escolhas, no passo de nossas possibilidades. Sua grandiosidade está na complexidade que a mais eloquente das crenças jamais conseguiria capturar em discurso. O tempo necessário é o que é para cada um de nós.

Os auspícios estão na singularidade de cada estalo, de cada "cair de ficha" que nos alimenta a consciência. E não há como contá-los pelo acúmulo das horas vividas. Auspiciosos são os dias em que percebemos... são aqueles instantes de apropriação pela sinestesia cosmogênica cujo sentido não nos paralisa; tais instantes não nos esclarecem, nos enchem de dúvidas novas que ampliam nossa perspectiva, nos dão um agradável lugar no desconforto.

No tempo necessário mora a paciência das esperanças. Quando se sabe que o destino é alcançável, dá para "empreender" esforços em outras "paragens"; e isso amplia o horizonte de possíveis disponíveis. Essa paciência histórica nada tem a ver com "vitórias" ou "derrotas", "covardia" ou "coragem"; ela simplesmente cultua os auspícios, os torna mais fortes.

No tempo necessário é lúdico viver; em si mesmo e nos que o cercam.

Nós sempre buscamos um fim; sem ele não há recomeços. Um ano acaba, outro começa. E com eles contam-se vidas. As que podem durar 2.000 anos e as que ficam nos 73. A diferença está no tempo necessário que cada uma delas cultivou: auspiciosa, paciente e ludicamente. Cronos não tem como devorar a consciência dos auspícios em qualquer calendário que padronize o tempo para todos. O tempo necessário não permite contagens padronizadas.

Que 2013 se fortaleça nos auspícios, na paciência e no lúdico do tempo necessário. O tempo necessário de uma vida.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Os primeiros dias do resto de minha vida!

A eternidade é uma brincadeira que inventamos para dar sentido ao jogo da vida. Não teria a menor graça simplesmente acabar. Inventamos planos, inventamos deuses, criamos formas lúdicas de amenizar dores profundas. Não há verdades neste jogo; essa é a regra básica. E é a essa capacidade humana de criação que entrego minhas crenças.

Nimar era um nome incomum para alguém cuja vida foi discreta. Nada de grandes feitos ou protagonismos arrojados como os que cultuamos nesse mundo em que chamamos de realidade o que é apenas aparente. Houve, claro, em certos momentos, tentativas. Poucas. Pouquíssimas. Esse não era o legado dele.

Começo a me dar conta de quanto teremos de inventariar na sua ausência. Os bens materiais são quase nada. Os simbólicos, nem sei por onde começar. Havia uma complexidade quase ingênua nos gestos, no sorriso de canto de lábio, na introspecção profunda, no silêncio doloroso que o temor da morte talvez o provocasse. E a morte veio nesse silêncio sábio, nesse silêncio de quem não queria antecipar a própria dor aos outros, sobretudo aos mais próximos.

Nimar era um homem incomum para a barbárie em que vivemos. Sobre o corpo já enrijecido pela ausência da anima que lhe dava identidade meu irmão teve a sobriedade de sintetizar a essência humana que caracterizou toda uma vida: "Ser homem é dar o que de melhor existe em si mesmo sem esperar nada em troca". Não há inventário capaz de mensurar esse legado.

Vou continuar brincando com ele até que eu me despeça. Tenho peças suficientes, tenho a filosofia do jogo... me falta o lúdico, essa complexidade quase ingênua de fazer gestos simples para celebrar ocasiões marcantes, de sorrir discretamente para as resistências à ontologia singular dos próprios gestos, de ser capaz de confortar nos outros as dores que nos aterrorizam por toda a vida.

Sinto não tê-lo mais para continuar aprendendo. Sinto não tê-lo percebido ensinar tanto. Tenho a eternidade como conforto, ainda bem! Ainda bem que somos capazes de inventar jeitos tão nobres de perpetuar a simplicidade. O vejo agora com o sorriso nos lábios, talvez conduzindo cada frase que escrevo. É porque tenho um pouco da anima que o tornava singular que escrevo.

O que me conforta não é imaginar um outro plano em que Nimar esteja; conforta reconhecer em mim, por mínimo que seja, a presença do Pai, do Amigo, do Sábio que respondia sozinho pela dramaticidade de relacionamentos nem sempre tranquilos. Ele não era o Norte; assumiu a missão muito mais inglória de ser nossa Âncora.

Espero, tenhamos reconhecido o lugar que ele cultuou de um jeito tão próprio; é para este lugar que pretendo ir sempre que o descanso for a melhor saída para o permanente trânsito em que estamos mergulhados. Até que o meu descanso seja o dele.

"Ser homem é dar o que de melhor existe em si mesmo
sem esperar nada em troca" (irmão Fernando
Bitencourt). Nimar e o legado de preencher o vazio
com o que somos.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Currículo como práxis de espaços sociais de aprendizagem

Este texto foi produzido como base para uma mesa de debates no II Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, realizado em Florianópolis, cuja temática era Promoção da Acessibilidade no Contexto da Educação Permanente
A reflexão aqui proposta tem o intuito de promover um debate a respeito do sistema educacional no que tange a estruturação e a integralização de currículos escolares, sobretudo no ensino de nível superior. Parte-se do princípio de que ainda são tímidos os espaços de aprendizagem abertos às potencialidades que a criação e as perspectivas de desenvolvimento humano podem materializar em termos de formação para a vida, o que também inclui a esfera do trabalho. Neste contexto, o termo “inclusão” aparece para evidenciar os esforços promovidos por políticas de acesso ao sistema educacional em todas as instâncias e níveis de aprendizagem, mas sem mudanças significativas quanto às propostas de formação.

De origem latina, etimologicamente a palavra currículo é associada a percurso. No âmbito escolar, percursos em projeção; um conjunto de itinerários formativos geralmente sequenciado, proposto por especialistas como subsídio quanto às possíveis trajetórias em aberto para uma formação que atenda a necessidades sociais contemporâneas. Mas a questão que se põe em debate subjaz de uma práxis quanto à organização curricular cujos fundamentos têm origem numa sociedade industrial, tecnocrática e tecnologizada. O sistema educacional é excludente por princípio; segrega intelectualmente os desprovidos de capacidade para ingressar em determinada etapa do aprendizado, segrega socialmente os estranhos aos padrões estabelecidos pelas normas legitimadas e segrega economicamente os incapazes de prover com recursos próprios seu ingresso no sistema. Ou seja, reproduz um ideário de sociedade pautado na competitividade e em valores que cultuam a acumulação de bens materiais e simbólicos.

Para Tomaz Tadeu da Silva, a divisão do currículo em matérias ou disciplinas, a distribuição sequenciada de conteúdos em fluxos de tempo determinados e as hierarquias no processo de organização curricular refletem contingências sociais e históricas. Do mesmo modo, nossos currículos pessoais dependem de documentos comprobatórios que chancelam o que atestamos de significativo em nossa trajetória de vida. Podemos dizer que o sistema educacional, diante deste quadro, oferece espaços de valorização de títulos e certificados cujo acúmulo em maior número nos oferece garantias de oportunidades em escalas quantitativas proporcionais. Quanto mais títulos acumulados, maiores as oportunidades de ascensão social e de acesso aos bens materiais e simbólicos que se almeja.

Quando a Educação - e estamos nos referindo mais especificamente aqui à de nível superior - assume o status de objeto de desejo numa sociedade de consumo e propõe formar perfis para um sistema produtivo que já não garante mais lugares de ocupação por muito tempo; quando os investimentos pessoais em uma área de formação já não representam um investimento direto num emprego específico, como enfatiza Boa Ventura de Souza Santos; quando, segundo Renato Janine Ribeiro, uma perspectiva de carreira profissional toma um rumo em diagonal, cada vez mais afastado do diploma de origem, os títulos e certificados se fortalecem na segregação alimentada pelo sistema educacional.

É praxeomórfico neste sistema atualmente o que reforça os títulos e certificados em si mesmos, o que distribui as etapas de formação em função de uma hierarquia de conteúdos, o que legitima um certo mercado para o conhecimento considerado produtivo e obsoleto, o que faz da Educação uma commodity capaz de redimir a sociedade, sempre no futuro, de suas mazelas. Entram de maneira abstrata no debate quanto aos rumos para a Educação, pelo menos enquanto políticas sociais, os aspectos relacionados ao desenvolvimento humano e aos saberes considerados válidos para a solução de nossos problemas.

E o que se quer dizer com praxeomórfico? Já usamos o termo em outras oportunidades neste espaço. Adotado por Zygmunt Bauman, diz respeito a como tendemos a conceber o mundo a partir do que podemos fazer e do que fazemos habitualmente. O “o que podemos fazer”, sugerimos, está no âmbito das potencialidades, de nossa capacidade prospectiva de imaginar realizações futuras. O “o que fazemos habitualmente”, na esfera dos valores que cultuamos, dos procedimentos e das atitudes que adotamos diante das questões cotidianas e, num certo sentido, dos processos cognitivos internalizados ou legitimados coletivamente. O termo designa, portanto, que a “forma” decorre da práxis, das constantes negociações de sentido quanto aos rumos que tomamos frente aos problemas pelos quais todos somos afetados. E a práxis na estruturação de currículos escolares tem referendado uma tradição que pouco explora as próprias potencialidades.

A despeito dos debates contemporâneos e das experiências menos ortodoxas de estruturação, qualquer proposta de integralização curricular tem em conta ainda a linearidade, a hierarquia nas escalas de valores, no acesso aos saberes e no fluxo de informações represado em grades disciplinares, a avaliação por acúmulo de requisitos subsequentes, enfim, a práxis na estruturação de currículos escolares mantém as formas de organização de itinerários formativos em padrões que talvez já não sejam suficientes para dar conta das necessidades sociais de hoje.

A própria ideia de Educação Inclusiva, reconhecidos os avanços quanto às concepções que lhes são próprias, mantém como desafio genérico a integração de pessoas deficientes nos ambientes escolarizados por classes consideradas normais. Contudo, considere-se que a sensação de normalidade na escola só existe em função do currículo, em função do que se propôs como itinerário formativo. Neste aspecto, as concepções de inclusão sustentam-se na necessidade estrutural de prover a superação das deficiências - sejam elas físicas, comportamentais, intelectuais ou de quaisquer ordens - com recursos que auxiliem o ambiente a manter-se nos padrões de normalidade. Não é o currículo que está em questão mas as maneiras de fazer com que todos, independente das deficiências que tragam consigo, alcancem a “normalidade” por ele projetada.

Se está no currículo escolar a delimitação das referências essenciais para o processo de formação é a partir dele que se pode constituir os espaços de aprendizagem igualmente necessários. Sem uma práxis, portanto, que valorize laços afetivos, rumos constantemente negociados e aprendizagem autônoma não há forma que represente outras perspectivas em relação ao que já consolidamos no ambiente educacional. É importante enfatizar que nem todo o espaço de aprendizagem é social, na medida em que nele não há referências que afetem a todos os envolvidos e, por consequência, laços e memórias que expressem um sentido orgânico de coletividade. Cada indivíduo neste espaço de tensões solitárias, usando termos de Marc Augé, mantém vínculos com seu próprio movimento em busca de chancelas que lhes abra oportunidades.

Um espaço de aprendizagem que se propõe social concebe lugares para se estar neles em permanente circulação. Não se trata de uma passagem circunstancial por itinerários formativos planejados para conferir documentos comprobatórios quanto ao mérito adquirido num determinado fluxo de tempo. Estes são uma decorrência. Laços afetivos e memória estão intimamente relacionados com a valorização de múltiplos saberes, de diferentes percepções sobre as questões fundamentais para a formação, de uma vocalidade que expresse o diverso como constitutivo do espaço. Para Zygmunt Bauman, vocalidade é um termo que denota o caráter polissêmico do diálogo com os saberes. Pois bem, num espaço assim a aprendizagem se dá pela potencialização das diferentes capacidades de resposta às questões pelas quais todos nele são afetados.

Enquanto política, podemos continuar buscando formas de facilitar o acesso dos excluídos ao sistema educacional. Mas parece oportuno reavaliar as referências essenciais que os currículos impõem aos espaços de aprendizagem. Desde meados do Século XX, quando a Educação passou a ser entendida como um direito, as classes e gêneros que ascendem a ele crescem na mesma proporção em que se estratificam os tipos de formação em oferta. As chancelas hoje são muitas e atendem aos mais variados graus de interesse por formação. E os currículos reproduzem-se a partir de modelos que valorizam a padronização da forma em detrimento de uma práxis quanto à sua estruturação. Os itinerários formativos propostos pelas instituições de ensino precisam perceber e valorizar as trajetórias constituídas fora da “normalidade” que impõem.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Por um lugar epistemológico para a Educação

Não há o conhecimento como um todo disponível aos interessados. Há um estado da arte em que se pode acessar o compêndio de informações legitimadas sobre nossa "realidade". E é sobre esse compêndio que se institui a autoridade quanto ao que se pensa e o que se diz a respeito dos objetos e dos fenômenos que nos "cercam"; é em torno dele que gira o processo educacional. Interessante, porque propõe uma finalidade para a Educação e determina como organizá-la.

Uma ilustração: nas últimas cinco décadas o sistema educacional brasileiro tratou de organizar, entre muitas outras coisas, as áreas do conhecimento humano, entendidas como fundamentais para o desenvolvimento acadêmico-científico. Um compêndio de leis, pareceres e resoluções tratou de dar existência e normatizar o sentido para essas áreas. A Filosofia, por exemplo, ganhou um lugar dentro das Ciências Humanas. Uma contradição, na medida em que sem a primeira não existiria a segunda.

Vamos separar, então, o compêndio sobre o pensamento filosófico (para ser redundante) e a Filosofia. Dentro das Ciências Humanas temos um compêndio de informações sobre as referências que permitem estudar a Filosofia e (re)conhecer as escolhas que legitimam o que deve ser cultuado sobre o rico e inesgotável pensamento humano. Portanto, o máximo que as Ciências Humanas podem oferecer à Filosofia é dar ciência ao que se tem catalogado sobre as abstrações e, porquê não, as aplicações institucionalizadas das referências a ela.

Dentro das Ciências Humanas a Filosofia está pedagogizada, higienizada enquanto referência a respeito de seu confinamento. É como se o pensamento filosófico só fosse possível dentro de sua própria ciência; uma evidente forma de domesticá-lo. Não há possíveis disponíveis senão dentro do compêndio existente sobre o pensamento filosófico. Portanto, a Filosofia é para filósofos, para eleitos institucionalizados como representantes de sua ciência; cânones imortalizados por aquilo que evitaram ao longo de sua existência: domesticar as ideias pela linguagem erudita e dogmatizar os dizeres ensimesmados de um olhar sobre o mundo.

Sugata Mitra e suas experiências com aprendizagem sem professor, usando ferramentas modernas
em lugares pouco ortodoxos para o investimento em tecnologias de ponta.

Mas voltemos à Educação, ela própria uma área das Ciências Humanas. Assim como a Filosofia, ela se concebe num confinamento. Mas é preciso reconhecer uma perversidade maior nesta relação. Isso porque o compêndio referente à Educação tem um caráter explicitamente aplicado. Enquanto área ela não está pedagogizada, higienizada; ela é a pedagogia e a razão de higiene. Não vamos aqui perder tempo com tentativas de "desdizer" equívocos interpretativos a respeito do que este texto propõe. Vamos eliminar o tal didatismo responsável pela domesticação dos sentidos e pela homogeinização das contradições.

Só dentro das Ciências Humanas a Educação se concebe, dizem as referências sobre o conhecimento a seu respeito. É, portanto, necessário conhecê-la para que alguém possa legitimar-se como educador. É preciso aprender a educar dentro de sua própria ciência e, portanto, domesticar-se quanto às suas finalidades e processos. A Educação tem hoje um lugar na epistemologia mas está longe de ser um lugar epistemológico. Falta-lhe o propósito, aquilo que a constitui.

O lugar destinado à Educação no catálogo das epistemes é resultado de seus "objetos e métodos", dos conhecimentos interrelacionados e coletivamente construídos para fins de ensino, de pesquisa e de aplicações práticas. Pelo menos é o que dizem os documentos que justificam a classificação. Seu confinamento, portanto, não é por acaso. Não há um propósito para a Educação neste contexto; há para seu enquadramento. O espaço em que este lugar se inscreve é o das práticas da razão instrumentalizada para o fazer científico, delimitado pela tecnocracia e pelos repositórios de informação legitimada a seu respeito.

Bunker Roy e seu college dos pés-descalços, um espaço de aprendizagem pautado pela negociação
dos saberes e pela organização com base nos interesses coletivos da vida em sociedade.

Para ser um lugar epistemológico a Educação precisa romper os limites das Ciências Humanas. Ela deve estimular a negociação de seus processos e admitir múltiplas finalidades a si mesma. É num espaço de aprendizagem socializado em razão dos laços afetivos, das memórias compartilhadas, do reconhecimento do Outro pela solidariedade ao diferente, da livre circulação de diferentes saberes que a Educação deve se (re)conhecer. E sua ciência também cabe neste contexto, claro! Não como determinante, mas como um possível disponível enquanto referência.

Num espaço de aprendizagem não há professores e alunos, ou melhor, todos o são; não há requisitos prévios para a busca de soluções; não há arbitrariedade quanto às escolhas do que deve ser aprendido. Reconheçamos, nosso sistema atual não concebe essa despedagogização porque legitima a Educação apenas enquanto ciência humana. Disso depende toda a lógica de organização dos saberes escolares, do tempo pedagógico pautado numa cronologia e na chancela do que deve ser aprendido; disso depende a capacitação dos educadores, cuja finalidade principal parece a de atender aos padrões de resposta esperados para os pseudoproblemas que levantamos.

A Educação não pode ser vista como meio para acesso ao conhecimento. Primeiro porque não há o conhecimento a ser acessado. A relação entre ambos se dá pelos possíveis disponíveis quanto às finalidades envolvidas, os propósitos acordados. E, depois, o compromisso de conduzir os processos de aprendizagem não está em quem detém o poder de decisão sobre o estado da arte a ser adotado, tampouco nos territórios delimitados pela apropriação autoral de certos pensamentos. O potencial de desenvolvimento humano depende de um lugar epistemológico inscrito em espaços delimitados pelo (re)conhecimento de seus possíveis disponíveis e não pela disponibilidade de acesso ao conhecimento eleito arbitrariamente como única alternativa.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os índices de desenvolvimento e a educação como bem de consumo

No início deste ano, a Grécia sediou a quinta edição do Fórum Internacional de Universidades. No debate esvaziado pela crise econômica, lamentações e olhares distintos sobre o papel destas instituições no contexto atual. Países no topo da cadeia científico-tecnológica mergulham na falta de ética, problema evidenciado pelo crescimento de plágio em publicações de pesquisa e pela falta de compromisso de cientistas com os sérios problemas que enfrentamos; países em emergência focam energia na melhoria do desempenho de suas universidades nos rankings internacionais; já os submersos na crise, discutem as perspectivas diante dos cortes e das demissões em grande escala no setor da educação.

Pelo menos essa foi a síntese de uma parca cobertura jornalística no Brasil. Aliás, a mídia brasileira há algum tempo tem vestido a farda conservadora do mercado da educação, preocupado em quantificar seus contingentes a custos irrisórios. A expansão do ensino técnico de nível médio, comemorada discretamente pelo setor industrial, ocupa espaços distintos no debate público em relação a um suposto interesse do governo brasileiro por atrair mão de obra qualificada estrangeira. E o ensino tecnológico, de nível superior, ainda é fomentado como necessidade para acelerar um mercado de trabalho "cheio de vagas".

 
Mão de obra qualificada estrangeira vê na economia brasileira uma boa perspectiva de
mudar de vida. O governo brasileiro, de olho nesse "filão", estuda propostas de abrir
oportunidades. A matéria foi veiculada no Bom Dia Brasil de 17/01/2012.

Somos um país em desenvolvimento agora "desacelerado" por conta de uma crise internacional, de um Estado ineficiente e de índices paupérrimos em educação, dizem sucintamente os setores especializados nas "ficções invariantes" da economia global. Por trás desse discurso há uma segregação intelectual nada comparada ao emergente crescimento social e econômico tupiniquim. Os ideários que a sustentam estão entranhados nos modos de organização, via de regra instrumental, das instituições brasileiras em todos os setores. E o da educação não é diferente.

Economia e conhecimento
O novo salário mínimo deve impactar nas classes sociais mais baixas, sobretudo na chamada "classe média". E não é de hoje que o mercado brasileiro tem voltado olhares para os níveis de renda crescentes de um extrato social capaz de movimentar a economia no atacado. No setor educacional, sobretudo o privado, produtos e serviços voltados para a "classe C" são vistos como solução para uma "crise educacional" ainda mensurada por uma economia de mercado. Na superficialidade do tema surge a excessiva preocupação com a formação humanística das escolas tradicionais do ensino superior, formação esta que "atrasa" o preenchimento de vagas num carente setor produtivo.

O processo de distribuição de renda no Brasil contrasta com o acesso ao sistema de formação de nível superior. Talvez por conta de uma estratégia, não de um contexto caótico. O Brasil, a China e a Índia (não necessariamente nesta ordem) viraram uma espécie de oásis de oportunidades num mundo de restrições culturais, perplexo com uma agonia há muito anunciada por pensadores que sequer sonhavam com a concretude de suas prospecções. Como nossas "ficções invariantes" nos impulsionam para uma corrida desenvolvimentista cuja base é a "economia do conhecimento", o acesso às oportunidades exige mais velocidade que equidade.

Assim como a mão de obra qualificada estrangeira, a formação de uma elite intelectual tem nome e sobrenome, tem grife financiada pelo Estado para a geração de ativos que fomentem commodities cujos dividendos rendam mais política do que socialmente. Na "outra ponta" está um passivo que precisa se qualificar e ao qual o financiamento do Estado depende do mérito individual dos interessados. A lógica sustenta a expansão do ensino técnico e tecnológico como solução para a melhoria dos índices de avaliação social e econômica, imputa às instituições públicas a excelência na formação das elites intelectuais e ao "resto" do sistema educacional de nível superior a formação para o mercado por uma questão de sobrevivência.

Números do Censo da Educação Superior tem sido sempre crescentes, com
pequenas variações. Na última década, a principal característica foi o
crescimento acentuado da ociosidade de vagas no ingresso ao sistema.
Os percentuais indicam a quantidade de vagas não preenchidas ano a ano.
Clique na imagem para ampliar.

Ensino e consumo
Relatório divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta um aumento de 156% nos rendimentos para quem faz curso superior no Brasil. Não por acaso a taxa de escolarização bruta (taxa de matrícula calculada pelo total da população do país no ensino superior em relação à população com idade universitária) é de apenas 27%. Os dados oficiais do Censo da Educação Superior em 2010 indicavam 5.449.120 de estudantes matriculados, 73,18% na rede privada. Hoje estima-se que haja cerca de 1 milhão de estudantes a mais. A meta do governo é chegar a 11 milhões em 2020.

A julgar pelos relatórios promovidos pelas organizações que respondem pela economia mundial, a educação é encarada como objeto de desejo. É pelo consumo da educação que os índices sofrem alterações. Na década passada, a demanda latente cresceu quase que na mesma proporção do número de matrículas. Contudo, tal demanda conta com as vagas ofertadas e não preenchidas quando do processo seletivo. Setenta por cento dos 5.108.690 candidatos que não ingressaram no sistema em 2010 não tinham mesmo vaga. Os demais, 1.529.980, não ingressaram por questões financeiras, visto que apenas 2,46% deles tinham disponibilidade em instituições que não cobram mensalidade.

Na década passada houve um crescimento significativo na demanda pelo
ensino superior brasileiro. Com as mudanças ao processo seletivo via ENEM
os números na próxima década tendem a ser mais próximos da realidade,
visto que o sistema de seleção é unificado. Em 2010 houve crescimento
tanto no número de candidatos quanto no de não classificados. E diminuiu,
ainda que pouco, o número de vagas não preenchidas. Clique no gráfico
para ampliar.

Estamos diante de um quadro bastante complexo. Para chegar aos patamares propostos no Plano Nacional de Educação, o governo federal terá de contar com o setor privado. Ainda que haja esforços quanto ao financiamento de bolsas de estudo e políticas inclusivas para população carente, ainda que haja o esforço de melhorar a estrutura do serviço público em educação superior, as metas são ambiciosas e inatingíveis se mantivermos os mesmos índices da última década. Para se ter uma ideia, não foram preenchidas 49% das vagas ofertadas no sistema no fim da última década. Mas a questão principal não é bem esta. Os esforços de resposta ainda enfatizam a educação como bem de consumo.

Para quem é a educação, afinal? Como direito inscrito na Constituição Federal ela deve oferecer perspectivas, estimular novas formas de organização social e traduzir-se numa política de desenvolvimento humano. Distribuir renda e fazer a economia girar nos patamares dos exemplos mais "desenvolvidos" não é, exclusivamente, sinônimo de crescimento. Tampouco a educação, descontextualizada, é índice para aferir os níveis de desenvolvimento de um "povo". A educação é um bem cultural cujo símbolo está no caráter formativo (e não apenas intelectual), no reconhecimento da diversidade enquanto riqueza (e não apenas no caráter desenvolvimentista) e, sobretudo, no conhecimento enquanto patrimônio coletivo (e não apenas enquanto commodity de uma economia de mercado).

O desafio maior, como disse no fórum sediado pela Grécia o "presidente" da Universidade de Lisboa, Antonio Nóvoa, é "reorganizar [as universidades] de maneira que estejam conectadas aos problemas locais". Isso implica estimular o acesso ao conhecimento gerado e socializado nestas instituições, o que significa promover a geração do conhecimento junto com a sociedade. Universidade não é sinônimo de graduação e pós-graduação; não é propriedade de uma elite intelectual; e não deve estar compromissada apenas com a parte mais tenra dos projetos de desenvolvimento no país. Enquanto ela for só para os "mais bem preparados" em dar respostas ao sistema, não há como pensar em desenvolvimento humano. O Brasil precisa de uma educação superior resistente à segregação intelectual que reproduz o mercado dentro do próprio sistema.



A CM Consultoria apresentou no ano passado uma proposta no Congresso Brasileiro da Educação Superior 
Particular um estudo com indicações de como atingir as metas do Plano Nacional de Educação para a 
próxima década, no que tange ao ensino superior brasileiro. O estudo contém muitas informações interessantes
mas tem o viés mercadológico, que enxerga a educação como bem de consumo. Quantitativamente, a 
proposta é viável. Qualitativamente, não é objeto do estudo.