terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Nizeta e Ronaldinho Gaúcho: duas faces, duas épocas, uma só moeda

Vi Nizeta jogar uma única vez no início da década de 70. Aos 62 anos, participou da Copa Arizona, um supercampeonato de futebol amador organizado pela Gazeta Esportiva com apoio da Souza Cruz. Foi, inclusive, homenageado por ser o atleta mais velho na competição. Ele gostava de ser lembrado; bajulado não. Era um ranzinza de coração mole, daqueles que não aceitam qualquer coisa fora do seu prisma de visão sobre o mundo mas são sensíveis às mazelas que vêem. E sua trajetória pelo esporte tem um pouco a ver com isso.

Foi jogador, treinador e dirigente do Avaí, time que o lançou, por um longo tempo. De 1938 a 1952, como meia-atacante, conquistou títulos importantes, transformou-se num dos maiores artilheiros do clube, vestiu a camisa da seleção estadual e figura nos melhores times imaginários, montados com jogadores que fizeram história nos gramados de Santa Catarina. Sua vida no esporte é cheia de superlativos, a pessoal nem tanto. Funcionário público federal, conciliava o futebol com os afazeres de contador. Não enriqueceu mas morreu com dignidade suficiente para pagar as despesas com doenças que a inanição o fez acumular depois da aposentadoria.

Nizeta, o genro e cronista esportivo Nimar, e a neta Cristina.
Singela despedida nos anos 80. O "estádio" na foto deu lugar
ao primeiro shopping da cidade de Florianópolis.

Nizeta era meu avô. E é assim que gosto de me lembrar dele. Ao longo de minha curta passagem pelo jornalismo esportivo, cerca de uma década, me perguntava porque não escrever sobre ele. Os parentes próximos ainda hoje me cobram. No fundo, sempre tive a resposta: não há porque alimentar a idolatria de quem viveu abominando isso. Não quero transformá-lo no que ele nunca foi; um cara humano e cheio de defeitos não combina com atletas perfeitos, encantadores. Prefiro a memória que puder guardar de um avô do que a imortalidade de um "craque do passado".

-- Desculpa, vô! Carrego em mim a tua ranzinzisse.

Era necessário exorcizar esse demônio. O exercício jornalístico não me permitia o conto em primeira pessoa. Não nutri suficientemente a alma de um Nelson Rodrigues. Fui condescendente demais com os ensinamentos modernos das técnicas implacáveis. Falar sobre meu avô é falar de mim mesmo. A primeira pessoa está ali, às vezes escondida sob um estilo textual de distanciamento, mas está ali. Minha única alternativa seria transformar Nizeta numa "marca", num produto; e este não seria mais meu avô. Tamanha objetividade não me é possível.

Pequenos troféus e medalhas sobre o peito
simbolizam as conquistas de um atleta que
marcou sua época. Nada tão singelo.

E é sobre essa tal objetividade que desejo falar. No Jornalismo contemporâneo ela é o que deseja matar: a própria alma. Nada mais pobre. Volto a Nelson Rodrigues:
(...) o jornalista que tem o culto do fato é profissionalmente um fracassado. Sim, amigos, o fato em si mesmo vale pouco ou quase nada. O que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação. (...) ai do repórter no dia em que fosse um reles e subserviente reprodutor do fato. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento, e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar. [Manchete Esportiva, 31/3/1956 - Republicada em A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol, brilhante seleção feita por Ruy Castro e editada pela Companhia das Letras em 1994].
Estamos, eu e Nelson Rodrigues, falando de jornalismo esportivo. Ou melhor, estamos falando do esporte recriado pela mídia. Nos tempos de Nelson, a dramaticidade do relato passional servia de marketing para lotar eventos. Pelo acréscimo da imaginação a palavra (impressa ou falada) descrevia o que ninguém podia ver, "servia para aumentar a idolatria", de acordo com Paulo Vinícius Coelho no livro homônimo ao tipo de Jornalismo a que nos referimos; "seres mortais alçados da noite para o dia à condição de semideuses" alimentavam uma rica indústria.

Nizeta também teve, em sua época, seus Nelsons Rodrigues; vozes midiatizadas que o idolatraram a ponto de seu nome transcender sua vida. Por opção, contudo, Nizeta preferiu continuar mortal. Ser levado à semidivindade pedia sacrifícios que não podia ou não queria fazer. Uma escolha e tanto: afastar-se da mídia e do clube representou a cisão necessária entre o nome esportivo e a pessoa. Os que gostam de futebol sabem quem foi Nizeta; só não conseguiriam reconhecê-lo na rua.

Retórica outra, mesma indústria. Para o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, cuja dimensão poética é mais contemporânea, a
história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. (...) o futebol condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. (...) O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. [Futebol ao sol e à sombra, editado pela L&MP em 2002].
Tamanho espetáculo foi protagonizado agora por Flamengo e Ronaldinho Gaúcho. Negócio de milhões de dólares sustentado pela mídia e por uma indústria que, já há algum tempo, busca valorizar a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Ronaldo, Adriano e Robinho já fizeram parte do rol de produtos usados para este fim. Não se faz uma negociação dessas sem o tempo necessário de exposição da imagem do jogador e dos clubes envolvidos, sem entrevistas coletivas organizadas para não se dizer nada, pressões de toda a sorte manipuladas para envolver paixões... Todos ganham, mesmo quem "perde". Importa a imagem autêntica e alvar dos acontecimentos, como temia Nelson Rodrigues.


Antes mesmo de vestir a camisa do Flamengo, Ronaldinho Gaúcho pode ser visto
fazendo gols pelo novo clube. O acréscimo de imaginação, outrora expresso em
crônicas inteligentes e bem humoradas, tem novas formas de materialização

Surpreende, contudo, a passividade dos jornalistas esportivos. A entrevista coletiva de Ronaldinho Gaúcho pós-negociação é marcada por um "cerco" que em outros segmentos da imprensa seria tratado como censura. Perguntas enviadas com antecedência por e-mail, selecionadas por assessores do Flamengo e feitas ao atleta por um porta-voz; o cenário é o requinte de uma indústria que tem aprendido a valorizar a própria imagem e a fazer marketing com riscos cada vez menores para seus investimentos. A retórica jornalística sobre esporte hoje quase já não vem carregada de poesia; o excesso de imagens, de exposição da marca fala por si mesmo. Que jornalista viraria as costas para a entrevista coletiva mais esperada do momento? Melhor submeter-se às regras. Galeano está coberto de razão; o jogo agora é outro. Como diz Paulo Vinícius Coelho,
A única maneira de mostrar que o esporte é viável, é mostrar que o jornalismo esportivo não é feito apenas por esporte. [Jornalismo Esportivo, publicado pela Contexto em 2003]

Ricos em superlativos, os símbolos criados pela mídia são hoje naturalizados
por apaixonados pelo esporte e seus ídolos. Nada mais objetivo: a marca
Ronaldinho Gaúcho precisa impulsionar um mercado periférico de produtos

As fotos de família usadas para ilustrar meus argumentos são uma lembrança, parca lembrança do futebol recriado por uma narrativa mais artesanal; tão artesanal quanto as homenagens à Nizeta, ignoradas pela grande mídia. Ronaldinho Gaúcho dispensa qualquer narrativa acrescida de imaginação; há imagens de sobra para ilustrá-lo, sejam reais ou virtuais. Uma coisa entre ambos, no entanto, é semelhante ainda que por razões diferentes: ambos tiveram na mídia esportiva o ponto de referência para separar nome e pessoa, vida esportiva e vida pessoal. Um para não virar negócio; o outro para negociar o próprio nome. O jornalismo esportivo prefere a segunda escolha e dedica-se a manter vivos os que aceitam jogar o jogo.

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