terça-feira, 3 de agosto de 2010

Educar para as possibilidades é abrir perspectiva para os possíveis disponíveis

Educar para as possibilidades significa negociar e construir ferramentas para pensar e agir em situações sempre novas, muitas delas centradas em problemas que sequer surgiram. Essa concepção de educação vem ganhando corpo em função das constantes mudanças e das incertezas diante da vida e do mundo, características tidas como elementares na sociedade atual. E, de fato, há pouca probabilidade de percebermos nossa existência sem que esses elementos nos conduzam a dilemas profundos quanto às perspectivas de ter o que dizer nestas circunstâncias. Parafraseando Zygmunt Bauman,
(...) a filosofia e a teoria educacionais enfrentam a tarefa pouco familiar e desafiadora de teorizar um processo formativo que não é guiado desde o princípio pela forma do alvo projetada de antemão; moldar sem conhecer ou visualizar claramente o modelo a ser atingido; (...) em resumo, um processo com final aberto, mais preocupado em permanecer assim do que com qualquer resultado específico e temendo mais qualquer encerramento prematuro do que buscando evitar a perspectiva de permanecer para sempre inconclusivo (A sociedade individualizada, 2008, página 177).
A afirmação não traz, em si mesma, qualquer reflexão que não sejamos capazes de fazer. Mas pela tradição epistemológica que sustenta o processo educativo e suas referências conceituais, assertivas como esta legitimam as ações em termos de projeto, incluindo a avaliação dos resultados. Aqui cabe uma ressalva: Bauman não é uma referência canonizada no campo da educação; e, pela característica descrita aqui por ele mesmo, talvez jamais venha a sê-lo. Voltemos à afirmação: o que ela nos traz de imediato é a inquietação quanto ao lugar que ocupamos como educadores. Estamos mais para a tradição epistemológica, ainda!

Significa dizer que as possibilidades para as quais estamos preparados a "ensinar" são as testadas pelas metodologias da ciência e referendadas pelas teorias dos cânones. Isso é ruim? Em princípio, não. Romper com a história do pensamento não parece uma atitude sensata para quem pretende pensar o novo. Romper com as concepções construídas a partir dessa tradição também não ajuda a conceber alternativas. O problema está no confinamento: a ciência não nos trouxe um mundo melhor justamente porque suas verdades são mais verdadeiras do que outras.

Concepções em modelos

Nos útlimos dias, algumas afirmações vindas de lugares aparentemente distintos contextualizam o que dizemos aqui. Diane Ravitch, ex-secretária adjunta de Educação nos Estados Unidos, sustenta que o modelo que ela mesma ajudou a consolidar não trouxe uma educação melhor para o país. Se considerarmos que o modelo está sendo adotado em vários lugares do mundo, incluindo o Brasil, a afirmação é importante. Segundo Diane, o sistema que responsabiliza os professores pelo processo está formando pessoas capazes de responder a avaliações, essencialmente. E melhorar a educação não é melhorar as pontuações nas provas.

Visão semelhante tem o físico alemão Andreas Schleicher. O diretor de Programas de Análise e Indicadores em Educação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e responsável pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) sustenta um modelo de educação menos centrado nos currículos. Adverte Schleicher que a aprendizagem não é um lugar e que, portanto, não pressupõe padrões; a aprendizagem é uma atividade que requer ritmo e espaço próprios a cada indivíduo. Nisso reside o desafio da educação.

Apenas para corroborar com os pontos de vista e trazer o debate para o Brasil emergente, também o ministro da Educação, Fernando Haddad, parece preocupado com esta questão. No encerramento da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ele sustentou que os vestibulares estão sobrecarregando o ensino médio. Logicamente, o discurso está centrado na "eficiência" do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como substituto para o processo seletivo inscrito na tradição das Instituições de Ensino Superior. Mas a referência é válida, na media em que põe em cheque o ensino para provas e processos seletivos em substituição a um processo mais aprofundado quanto às questões que nos afetam.

As três visões sustentam os mesmos pressupostos de Bauman, mas dão sentidos distintos quanto ao que se propõe como ferramenta. O sociólogo polonês não fala de capacitação para o uso de novas tecnologias ou para profissões que ainda não existem; não fala de critérios economicistas de desenvolvimento tampouco de currículos que valorizem cada indivíduo pela sua capacidade de consumo. A assertiva de Bauman está alicerçada na possibilidade de construção de laços suficientemente consistentes para transformar os coletivos humanos em algo que possamos chamar de sociedade.

Sombras do possível

Siegfried Zielinski nos fala em aprender a seguir pistas. Significa aprendermos a reconhecer "eventos e movimentos" resultantes dos meios culturais e técnicos com os quais construímos nossa realidade. E isso pressupõe "manejo", muito mais que poderes sobre os quais sustentamos nossas trajetórias. Em outras palavras, educar para as possibilidades é manejar um processo de construção coletiva quanto aos critérios de sociabilidade e suas decorrências. Sem isso, o possível torna-se "sombra da realidade", profundo equívoco da filosofia segundo Ludwig Wittgenstein. Zielinski prefere uma outra concepção a partir de sua própria experiência:
Em relação às pessoas, às ideias, aos conceitos e aos modelos que encontrei durante essa trajetória de busca anarqueológica [do tempo remoto das técnicas do ver e do ouvir], esse ponto de vista [da filosofia como sombra da realidade] é virado de cabeça para baixo: seu lugar de morada é o possível, e a relidade, que de fato aconteceu, torna-se uma sombra, em comparação (Arqueologia da Mídia, 2006, página 46).
Há muitos possíveis disponíveis, como acrescenta Isabelle Stengers. Mas eles não estão em exposição e à escolha em função das circunstâncias. Os possíveis disponíveis estão na capacidade de construirmos referências para "transformar e subverter a paisagem dos conhecimentos". Para tanto, é mister romper com juízos de valor que reduzem as práticas humanas a modelos que confinam saberes; educar para as possibilidades é reconhecer nos enunciados a experimentação mesma de narrar possíveis, com o intuito de gerar disponibilidades para as ações coletivas que se pretendam sociais. E ainda não há instrumentos de avaliação capazes de mensurá-los.

Ao analisarmos os dados referentes à educação no Brasil, a partir de um projeto sustentado na quantificação de resultados para elevar os índices do país em rankings construídos por instituições econômicas; ao verificarmos o ranqueamento de escolas em função de exames de desmpenho que desconsideram a experiência de viver situações-problema; ao propormos nossa adequação a um modelo de avaliação pensado para fazer gestão sobre seus resultados, reduzimos o sentido de educar. Talvez porque o problema esteja na adoção de um modelo, obrigatoriamente. Um modelo que vinga por descartar outros possíveis disponíveis.

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