sexta-feira, 16 de março de 2012

Por um lugar epistemológico para a Educação

Não há o conhecimento como um todo disponível aos interessados. Há um estado da arte em que se pode acessar o compêndio de informações legitimadas sobre nossa "realidade". E é sobre esse compêndio que se institui a autoridade quanto ao que se pensa e o que se diz a respeito dos objetos e dos fenômenos que nos "cercam"; é em torno dele que gira o processo educacional. Interessante, porque propõe uma finalidade para a Educação e determina como organizá-la.

Uma ilustração: nas últimas cinco décadas o sistema educacional brasileiro tratou de organizar, entre muitas outras coisas, as áreas do conhecimento humano, entendidas como fundamentais para o desenvolvimento acadêmico-científico. Um compêndio de leis, pareceres e resoluções tratou de dar existência e normatizar o sentido para essas áreas. A Filosofia, por exemplo, ganhou um lugar dentro das Ciências Humanas. Uma contradição, na medida em que sem a primeira não existiria a segunda.

Vamos separar, então, o compêndio sobre o pensamento filosófico (para ser redundante) e a Filosofia. Dentro das Ciências Humanas temos um compêndio de informações sobre as referências que permitem estudar a Filosofia e (re)conhecer as escolhas que legitimam o que deve ser cultuado sobre o rico e inesgotável pensamento humano. Portanto, o máximo que as Ciências Humanas podem oferecer à Filosofia é dar ciência ao que se tem catalogado sobre as abstrações e, porquê não, as aplicações institucionalizadas das referências a ela.

Dentro das Ciências Humanas a Filosofia está pedagogizada, higienizada enquanto referência a respeito de seu confinamento. É como se o pensamento filosófico só fosse possível dentro de sua própria ciência; uma evidente forma de domesticá-lo. Não há possíveis disponíveis senão dentro do compêndio existente sobre o pensamento filosófico. Portanto, a Filosofia é para filósofos, para eleitos institucionalizados como representantes de sua ciência; cânones imortalizados por aquilo que evitaram ao longo de sua existência: domesticar as ideias pela linguagem erudita e dogmatizar os dizeres ensimesmados de um olhar sobre o mundo.

Sugata Mitra e suas experiências com aprendizagem sem professor, usando ferramentas modernas
em lugares pouco ortodoxos para o investimento em tecnologias de ponta.

Mas voltemos à Educação, ela própria uma área das Ciências Humanas. Assim como a Filosofia, ela se concebe num confinamento. Mas é preciso reconhecer uma perversidade maior nesta relação. Isso porque o compêndio referente à Educação tem um caráter explicitamente aplicado. Enquanto área ela não está pedagogizada, higienizada; ela é a pedagogia e a razão de higiene. Não vamos aqui perder tempo com tentativas de "desdizer" equívocos interpretativos a respeito do que este texto propõe. Vamos eliminar o tal didatismo responsável pela domesticação dos sentidos e pela homogeinização das contradições.

Só dentro das Ciências Humanas a Educação se concebe, dizem as referências sobre o conhecimento a seu respeito. É, portanto, necessário conhecê-la para que alguém possa legitimar-se como educador. É preciso aprender a educar dentro de sua própria ciência e, portanto, domesticar-se quanto às suas finalidades e processos. A Educação tem hoje um lugar na epistemologia mas está longe de ser um lugar epistemológico. Falta-lhe o propósito, aquilo que a constitui.

O lugar destinado à Educação no catálogo das epistemes é resultado de seus "objetos e métodos", dos conhecimentos interrelacionados e coletivamente construídos para fins de ensino, de pesquisa e de aplicações práticas. Pelo menos é o que dizem os documentos que justificam a classificação. Seu confinamento, portanto, não é por acaso. Não há um propósito para a Educação neste contexto; há para seu enquadramento. O espaço em que este lugar se inscreve é o das práticas da razão instrumentalizada para o fazer científico, delimitado pela tecnocracia e pelos repositórios de informação legitimada a seu respeito.

Bunker Roy e seu college dos pés-descalços, um espaço de aprendizagem pautado pela negociação
dos saberes e pela organização com base nos interesses coletivos da vida em sociedade.

Para ser um lugar epistemológico a Educação precisa romper os limites das Ciências Humanas. Ela deve estimular a negociação de seus processos e admitir múltiplas finalidades a si mesma. É num espaço de aprendizagem socializado em razão dos laços afetivos, das memórias compartilhadas, do reconhecimento do Outro pela solidariedade ao diferente, da livre circulação de diferentes saberes que a Educação deve se (re)conhecer. E sua ciência também cabe neste contexto, claro! Não como determinante, mas como um possível disponível enquanto referência.

Num espaço de aprendizagem não há professores e alunos, ou melhor, todos o são; não há requisitos prévios para a busca de soluções; não há arbitrariedade quanto às escolhas do que deve ser aprendido. Reconheçamos, nosso sistema atual não concebe essa despedagogização porque legitima a Educação apenas enquanto ciência humana. Disso depende toda a lógica de organização dos saberes escolares, do tempo pedagógico pautado numa cronologia e na chancela do que deve ser aprendido; disso depende a capacitação dos educadores, cuja finalidade principal parece a de atender aos padrões de resposta esperados para os pseudoproblemas que levantamos.

A Educação não pode ser vista como meio para acesso ao conhecimento. Primeiro porque não há o conhecimento a ser acessado. A relação entre ambos se dá pelos possíveis disponíveis quanto às finalidades envolvidas, os propósitos acordados. E, depois, o compromisso de conduzir os processos de aprendizagem não está em quem detém o poder de decisão sobre o estado da arte a ser adotado, tampouco nos territórios delimitados pela apropriação autoral de certos pensamentos. O potencial de desenvolvimento humano depende de um lugar epistemológico inscrito em espaços delimitados pelo (re)conhecimento de seus possíveis disponíveis e não pela disponibilidade de acesso ao conhecimento eleito arbitrariamente como única alternativa.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os índices de desenvolvimento e a educação como bem de consumo

No início deste ano, a Grécia sediou a quinta edição do Fórum Internacional de Universidades. No debate esvaziado pela crise econômica, lamentações e olhares distintos sobre o papel destas instituições no contexto atual. Países no topo da cadeia científico-tecnológica mergulham na falta de ética, problema evidenciado pelo crescimento de plágio em publicações de pesquisa e pela falta de compromisso de cientistas com os sérios problemas que enfrentamos; países em emergência focam energia na melhoria do desempenho de suas universidades nos rankings internacionais; já os submersos na crise, discutem as perspectivas diante dos cortes e das demissões em grande escala no setor da educação.

Pelo menos essa foi a síntese de uma parca cobertura jornalística no Brasil. Aliás, a mídia brasileira há algum tempo tem vestido a farda conservadora do mercado da educação, preocupado em quantificar seus contingentes a custos irrisórios. A expansão do ensino técnico de nível médio, comemorada discretamente pelo setor industrial, ocupa espaços distintos no debate público em relação a um suposto interesse do governo brasileiro por atrair mão de obra qualificada estrangeira. E o ensino tecnológico, de nível superior, ainda é fomentado como necessidade para acelerar um mercado de trabalho "cheio de vagas".

 
Mão de obra qualificada estrangeira vê na economia brasileira uma boa perspectiva de
mudar de vida. O governo brasileiro, de olho nesse "filão", estuda propostas de abrir
oportunidades. A matéria foi veiculada no Bom Dia Brasil de 17/01/2012.

Somos um país em desenvolvimento agora "desacelerado" por conta de uma crise internacional, de um Estado ineficiente e de índices paupérrimos em educação, dizem sucintamente os setores especializados nas "ficções invariantes" da economia global. Por trás desse discurso há uma segregação intelectual nada comparada ao emergente crescimento social e econômico tupiniquim. Os ideários que a sustentam estão entranhados nos modos de organização, via de regra instrumental, das instituições brasileiras em todos os setores. E o da educação não é diferente.

Economia e conhecimento
O novo salário mínimo deve impactar nas classes sociais mais baixas, sobretudo na chamada "classe média". E não é de hoje que o mercado brasileiro tem voltado olhares para os níveis de renda crescentes de um extrato social capaz de movimentar a economia no atacado. No setor educacional, sobretudo o privado, produtos e serviços voltados para a "classe C" são vistos como solução para uma "crise educacional" ainda mensurada por uma economia de mercado. Na superficialidade do tema surge a excessiva preocupação com a formação humanística das escolas tradicionais do ensino superior, formação esta que "atrasa" o preenchimento de vagas num carente setor produtivo.

O processo de distribuição de renda no Brasil contrasta com o acesso ao sistema de formação de nível superior. Talvez por conta de uma estratégia, não de um contexto caótico. O Brasil, a China e a Índia (não necessariamente nesta ordem) viraram uma espécie de oásis de oportunidades num mundo de restrições culturais, perplexo com uma agonia há muito anunciada por pensadores que sequer sonhavam com a concretude de suas prospecções. Como nossas "ficções invariantes" nos impulsionam para uma corrida desenvolvimentista cuja base é a "economia do conhecimento", o acesso às oportunidades exige mais velocidade que equidade.

Assim como a mão de obra qualificada estrangeira, a formação de uma elite intelectual tem nome e sobrenome, tem grife financiada pelo Estado para a geração de ativos que fomentem commodities cujos dividendos rendam mais política do que socialmente. Na "outra ponta" está um passivo que precisa se qualificar e ao qual o financiamento do Estado depende do mérito individual dos interessados. A lógica sustenta a expansão do ensino técnico e tecnológico como solução para a melhoria dos índices de avaliação social e econômica, imputa às instituições públicas a excelência na formação das elites intelectuais e ao "resto" do sistema educacional de nível superior a formação para o mercado por uma questão de sobrevivência.

Números do Censo da Educação Superior tem sido sempre crescentes, com
pequenas variações. Na última década, a principal característica foi o
crescimento acentuado da ociosidade de vagas no ingresso ao sistema.
Os percentuais indicam a quantidade de vagas não preenchidas ano a ano.
Clique na imagem para ampliar.

Ensino e consumo
Relatório divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aponta um aumento de 156% nos rendimentos para quem faz curso superior no Brasil. Não por acaso a taxa de escolarização bruta (taxa de matrícula calculada pelo total da população do país no ensino superior em relação à população com idade universitária) é de apenas 27%. Os dados oficiais do Censo da Educação Superior em 2010 indicavam 5.449.120 de estudantes matriculados, 73,18% na rede privada. Hoje estima-se que haja cerca de 1 milhão de estudantes a mais. A meta do governo é chegar a 11 milhões em 2020.

A julgar pelos relatórios promovidos pelas organizações que respondem pela economia mundial, a educação é encarada como objeto de desejo. É pelo consumo da educação que os índices sofrem alterações. Na década passada, a demanda latente cresceu quase que na mesma proporção do número de matrículas. Contudo, tal demanda conta com as vagas ofertadas e não preenchidas quando do processo seletivo. Setenta por cento dos 5.108.690 candidatos que não ingressaram no sistema em 2010 não tinham mesmo vaga. Os demais, 1.529.980, não ingressaram por questões financeiras, visto que apenas 2,46% deles tinham disponibilidade em instituições que não cobram mensalidade.

Na década passada houve um crescimento significativo na demanda pelo
ensino superior brasileiro. Com as mudanças ao processo seletivo via ENEM
os números na próxima década tendem a ser mais próximos da realidade,
visto que o sistema de seleção é unificado. Em 2010 houve crescimento
tanto no número de candidatos quanto no de não classificados. E diminuiu,
ainda que pouco, o número de vagas não preenchidas. Clique no gráfico
para ampliar.

Estamos diante de um quadro bastante complexo. Para chegar aos patamares propostos no Plano Nacional de Educação, o governo federal terá de contar com o setor privado. Ainda que haja esforços quanto ao financiamento de bolsas de estudo e políticas inclusivas para população carente, ainda que haja o esforço de melhorar a estrutura do serviço público em educação superior, as metas são ambiciosas e inatingíveis se mantivermos os mesmos índices da última década. Para se ter uma ideia, não foram preenchidas 49% das vagas ofertadas no sistema no fim da última década. Mas a questão principal não é bem esta. Os esforços de resposta ainda enfatizam a educação como bem de consumo.

Para quem é a educação, afinal? Como direito inscrito na Constituição Federal ela deve oferecer perspectivas, estimular novas formas de organização social e traduzir-se numa política de desenvolvimento humano. Distribuir renda e fazer a economia girar nos patamares dos exemplos mais "desenvolvidos" não é, exclusivamente, sinônimo de crescimento. Tampouco a educação, descontextualizada, é índice para aferir os níveis de desenvolvimento de um "povo". A educação é um bem cultural cujo símbolo está no caráter formativo (e não apenas intelectual), no reconhecimento da diversidade enquanto riqueza (e não apenas no caráter desenvolvimentista) e, sobretudo, no conhecimento enquanto patrimônio coletivo (e não apenas enquanto commodity de uma economia de mercado).

O desafio maior, como disse no fórum sediado pela Grécia o "presidente" da Universidade de Lisboa, Antonio Nóvoa, é "reorganizar [as universidades] de maneira que estejam conectadas aos problemas locais". Isso implica estimular o acesso ao conhecimento gerado e socializado nestas instituições, o que significa promover a geração do conhecimento junto com a sociedade. Universidade não é sinônimo de graduação e pós-graduação; não é propriedade de uma elite intelectual; e não deve estar compromissada apenas com a parte mais tenra dos projetos de desenvolvimento no país. Enquanto ela for só para os "mais bem preparados" em dar respostas ao sistema, não há como pensar em desenvolvimento humano. O Brasil precisa de uma educação superior resistente à segregação intelectual que reproduz o mercado dentro do próprio sistema.



A CM Consultoria apresentou no ano passado uma proposta no Congresso Brasileiro da Educação Superior 
Particular um estudo com indicações de como atingir as metas do Plano Nacional de Educação para a 
próxima década, no que tange ao ensino superior brasileiro. O estudo contém muitas informações interessantes
mas tem o viés mercadológico, que enxerga a educação como bem de consumo. Quantitativamente, a 
proposta é viável. Qualitativamente, não é objeto do estudo.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Educação, protagonismo e desenvolvimento humano

Tentei instigar o sentido do a priori quando argumentava sobre premissas para um ano que vem. Este novo ano chegou e as "ficções invariantes" já estão temperando projetos e sonhos. Há estimativas de quanto vamos deixar de crescer economicamente, comparações especulativas quanto à situação brasileira na geopolítica dos mercados, prognósticos e receitas para quem quer se dar bem, conselhos para a política brasileira, polêmicas sobre o estado democrático (de fato e de direito), futilidades, tragédias e muita chuva. Em pauta, os mesmos medos, as mesmas frustrações, as mesmas resignações. Mudaram as circunstâncias. Na educação, especificamente, há muito o que pensar.

Aloizio Mercadante assume a pasta da Educação num cenário tão promissor quanto controverso. Houve avanços significativos na última década em termos quantitativos. Qualitativamente, contudo, os dados não foram tão estimulantes. Pelo menos não no ranking dos organismos internacionais que atestam os índices para o setor. É fato que ainda estamos muito aquém de países em desenvolvimento menos acelerado. Eis aí uma primeira "ficção invariante". No Brasil, valorizamos mais as experiências da China (ou de qualquer outro país de ocasião) do que nosso próprio ritmo de resposta aos problemas que nos afetam.

Como ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Mercadante
estabeleceu estratégias que não incluem a formação em 
Ciências Humanas e Sociais. Melhor para a tecnocracia acadêmica
brasileira, inscrita num promissor "mercado científico".
E como Ministro da Educação? 

Lá, com a economia galopante, os prognósticos ocidentalizados misturam admiração com previsões cautelosas. Como somos focados em projetos (e o da China permanece um mistério), construímos argumentos com base em percepções muitas vezes distorcidas pelo nosso próprio modo de ver as coisas. Não há nada de ruim nisso, é verdade. A não ser pelo ranqueamento dos padrões de resposta obtidos em relação aos esperados nas análises e prognósticos. O crescimento da China é tão ocidental quanto os a priori que assentam suas possibilidades.

Na educação, depois que a província de Xangai bateu todos os concorrentes nos testes do PISA (Programme for International Student Assessment), uma aura de exotismo paira sobre as salas de aula dos disciplinados chineses. O interessante é que o "modelo" chinês traz evidências de medidas já adotadas nos Estados Unidos e que estão sendo contestadas por seus próprios especialistas. Excesso de disciplina, de conteúdo, de preparação para provas, de competitividade acadêmica, de mercantilização do conhecimento... Não há nada de novo no "modelo" chinês. Nada que ateste uma proposta "inovadora". Só os resultados aos padrões de resposta propostos pelos organismos internacionais é que foram melhores. Significa que estão se ocidentalizando?

Currículo e ocupações
No Brasil, acirra-se o debate sobre a adoção de um currículo nacional para a educação básica, apontada como a bola da vez na próxima década, juntamente com o ensino superior em tecnologia. Os argumentos na questão do currículo ("ficções invariantes"?), em síntese, dão conta de promover uma formação básica mais paritária em todo o país, dadas as gritantes diferenças nos índices aferidos nos exames promovidos pelo Ministério da Educação. Parece haver aí também uma preocupação com a formação mais homogênea de professores "capacitados" para contribuir com o desenvolvimento pela via da educação.

Há uma questão central no debate sobre currículos que muito raramente entra em pauta. Que perspectivas as escolas vão abrir para que cada um de seus estudantes elabore trajetórias singulares, que tenham a ver com sua realidade e expectativas? Que tipo de formação se pretende? O que se pretende cultivar em termos humanos e sociais? Geralmente os currículos são estruturados com base nos conteúdos e nos métodos necessários para a aprendizagem. Mas não se ensina respeito às diferenças sem convívio com o diferente; não se ensinam valores sem que os espaços de aprendizagem permitam negociá-los; não se ensina aquilo que é próprio da formação. Formação se desenvolve, não se aprende.

Em depoimento no início do ano passado, a presidente Dilma Roussef discursa,
confirmando todas as referências para um projeto de educação moldado aos
padrões propostos pela perspectiva de tecnologização do ensino.

Conteúdos mínimos e disciplinas indispensáveis, seja com que percentuais se queira comuns, se põem a atender primeiramente à gestão do processo. Como os chineses de hoje, pensa-se nos padrões de resposta que legitimam as "ficções invariantes" de uma economia global. É nisso que a China, o Brasil, os países  emergentes e os decadentes estão focados. É preciso aumentar o nível de resposta aos padrões esperados, subir nos rankings que favoreçam o crescimento econômico, a oportunidade para todos. Só que não se faz isso sem Política. Queremos ser os Estados Unidos de 20 anos atrás daqui 10 anos? Queremos o nível de vida dos europeus de hoje, daqui 20? Queremos o crescimento econômico da China? As perguntas não são tão retóricas quando se trata de currículo.

Aloízio Mercadante na Educação pode representar a ampliação do "mercado científico" num projeto de formação. Três premissas fundamentam a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação  elaborada pela equipe de Mercadante no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para os próximos três anos: o governo brasileiro vai promover a inovação, capacitar recursos humanos e fortalecer a pesquisa e a infraestrutura científica e tecnológica. Não há espaço para as Ciências Humanas e Sociais. Ao que parece, o mesmo equívoco na formação de professores tecnocratas repete-se na de cientistas. Estamos atrás de commodities, de patentes, de todas estas "ficções invariantes" da economia que simulam percentuais de desenvolvimento.

Precisaríamos inscrever Ciência e Tecnologia na perspectiva do desenvolvimento humano (não só econômico). Sendo assim, o sentido de inovação estaria na nossa capacidade de cultivar referências que nos dêem perspectiva de viver com as diferentes maneiras de conhecer, de enfrentar problemas, de criar disponibilidade para os possíveis diante deles, de gerar sentidos novos na agenda social. Nossa proposta para as ocupações no Século XXI não deve ficar restrita a programas pontuais (mesmo que necessários para o momento). O debate sobre o currículo para a educação básica pode ser a oportunidade de nos trazer de volta a uma perspectiva de formação mais humana e menos voltada a capacitações de momento.

Demanda latente
Acompanho os censos na educação brasileira há algum tempo. Em 15 anos a taxa candidatos/vaga no ensino superior caiu de 4,3 para 2,1. Os especialistas atestam uma "saturação no mercado educacional", evidenciando que não há mais demanda reprimida no setor. A demanda agora é latente. Mas acompanhe no gráfico: o número de concluintes no ensino médio (linha azul) vem se mantendo em níveis relativamente estáveis nos últimos 10 anos. Contudo, em 2000, o número de vagas ofertadas (linha dourada) por Instituições de Ensino Superior era menor. Dez anos depois, o número de vagas é quase o dobro do de concluintes no ensino médio.

É interessante notar também que o número de inscrições para ingresso efetivadas no Ensino Superior (linha vermelha), nestes 15 anos, nunca alcaçaram o número de vagas. Sempre houve déficit na relação inscritos/vaga. De 0,76 em 1995, a taxa chegou a 0,51 no último censo divulgado. Significa que metade das vagas oferecidas no Ensino Superior brasileiro não é ocupada. Ainda que o número de candidatos a cursos de nível superior (linha verde) tenha mais que dobrado neste período. O cenário nos mostra um  afunilamento justamente na passagem da educação básica para a de nível superior.

Em 15 anos, o Brasil estancou o acesso ao sistema de educação superior.
O número de candidatos continuou crescendo, o número de vagas em
oferta também, mas o número de inscritos estagnou-se. O sistema ainda
estaria muito focado na oferta de cursos para concluintes do ensino médio?
Para visualizar melhor, clique na imagem.

Não dá para pautar uma análise profunda em um único gráfico. Mas as "verdades" com estrutura de ficção induzem a pensar soluções ainda muito ortodoxas para um problema que não está mais na esfera das respostas dadas. A política educacional brasileira tem optado pela valorização das universidades públicas, consideradas mais bem estruturadas, em detrimento do ensino privado, ainda visto como de menor qualidade. Não vamos confundir o sentido republicano de "público" com o que "é mantido pelo Estado". Falta no Brasil, justamente, uma educação pública, acessível a todos. Isso depende estruturalmente de uma política que valorize o desenvolvimento humano, seja de/para quem pode seja de/para quem não pode pagar os estudos.

Se considerarmos a relação entre candidatos/inscritos (4,2 em 2010), veremos que está muito próxima da taxa candidatos/vaga de 15 anos atrás (4,3). Neste período, não houve propostas de mudança quanto ao sistema educacional. Ainda mantemos os mesmos patamares de seletividade excessiva, seja pela via intelectual seja pela via econômica; ainda partimos do pressuposto de que ensino de nível superior é uma sequência do ensino médio e para poucos; ainda pautamos os valores da formação na empregabilidade e no desenvolvimento para o consumo. A educação virou um grande negócio (também para as universidades públicas e para o governo) e é a base para a chamada inovação.

As políticas públicas (aqui lidas como estatais) fundamentam-se na necessidade emergente de mão de obra  qualificada como formação de nível superior no curto prazo. Estamos fazendo isso também com a docência; professores formados pela necessidade de titulação imposta pelos parâmetros de aferição quantitativa não dão conta da responsabilidade de orientar na educação para um mundo sobre o qual sequer conseguem enxergar. O investimento em graduações tecnológicas precisaria trazer consigo a ideia de que a tecnologia é um fenômeno cultural, essencialmente humano. É também com ela que o humano se desenvolve.

O sistema educacional brasileiro está estrategicamente dividido em nichos para atender aos "diferentes públicos" e aos diferentes interesses por formação. As elites intelectuais ainda saem das poucas universidades ranqueadas no exterior. Como no mercado de ações, os ativos do conhecimento flutuam num jogo em que quanto mais se aumenta a demanda, mais se valoriza a oferta. O acesso a eles ainda depende do capital intelectual ou do capital financeiro que pudermos, enquanto indivíduos, acumular no sistema educacional. Dizem as "ficções invariantes" que o ensino público valoriza o capital intelectual, o que gera commodities e patentes para elevar o nome das instituições que nele estão; o ensino privado prefere o capital financeiro em troca de empregabilidade.

Quanto mais gente fora, mais competitivo é o sistema educacional, mais valor tem o mercado de titulações. Nos últimos 15 anos, dá para perceber, aumentamos a demanda latente (já não mais reprimida porque há uma quantidade significativa de vagas não preenchidas); afunilamos o ingresso às instituições que "merecem" crédito. Só não atingimos os patamares de resposta da China nos testes de desempenho tampouco temos universidades entre as melhores do mundo. Haveremos de conseguir? Talvez. Se continuarmos defendendo o colonialismo científico e a dependência econômica sobre commodities, pode ser mais rápido do que imaginamos. O preço, contudo, será a falta de protagonismo num dos setores mais importantes para qualquer organização social contemporânea.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Premissas para um ano que vem

Eis o momento de rever. Nossos rituais inventados são como portais; através deles os horizontes se abrem ou se fecham. Ou nos lançamos ao devir ou ao logo ali adiante, num futuro de certezas projetadas, fiéis aos esforços necessários para empreendê-lo. Há quem considere o devir um devaneio. A esses, o controle dos gestos, dos laços, dos afetos é imprescindível. Nos é possível não controlá-los, penso eu, inscrito na mesma mistificação ideológica que contradigo.

Slavoj Zizek, num dos livros revistos nos meus rituais de purificação, debrussa-se sobre a mistificação ideológica de que falo e solta todo o peso de seus indícios sob um passante desavisado:
Dito de maneira um tanto crua, a evocação da "complexidade da situação" serve para nos livrar da responsabilidade de agir. (...) A ideia de um sujeito plenamente "responsável" por seus atos, em termos morais e criminais, claramente atende à necessidade ideológica de esconder a complexa trama, sempre já operante, dos pressupostos histórico-discursivos, que não apenas dão o contexto do ato praticado pelo sujeito, mas também definem de antemão as coordenadas de seu sentido: o sistema só pode funcionar se a causa de sua disfunção puder ser situada na "culpa" do sujeito responsável. (...) em vez da mudança das relações sociais, busca-se uma solução na transformação psíquica interna, na "maturidade" que deveria habilitar-nos a aceitar a realidade social tal como é. (...) A lição teórica a ser extraída disso é que (...) a ideologia nada tem a ver com a "ilusão" (...); (...) a verdade tem a estrutura de uma ficção (...).
Perdoem os excessivos recortes na transcrição que fiz de Zizek. Mas, para fazê-lo dizer por mim o que pretendo, esse é o jeito que conheço. E por que fazê-lo dizer por mim? Há uma prosa legítima, uma aura mistificadora, uma ficção que me agrada neste texto. Ele sintetiza a simbologia do portal que se abre diante das escolhas até aqui feitas. Ao mesmo tempo em que me situa num devir generosamente incerto. E 2012 apresenta-se como um desses mistérios insolúveis. Podemos projetá-lo, podemos não.

Não sou muito de projetos. Prefiro articular os possíveis disponíveis que me forem inteligíveis diante das circunstâncias que se apresentem. Prefiro a cuidadosa leitura de cenários e de toda a ficção invariante que se puder perceber. Digo ficção invariante porque sempre há um a priori que não merece o tempo de quem é produtivo para discuti-lo. Como se o a priori já não fosse produto de consensos que se apagam. Parafraseando Zizek, todo a priori tem a estrutura de uma ficção.

Poder não projetar o ano que se avizinha é também um a priori aceitável. Nos põe em perspectiva o horizonte e uma periferia de percepções que todo projeto descarta de imediato. Nos amplia a diversidade de problemas cujas soluções não estão num menu de critérios delineados por especialistas excessivamente focados num objeto em detrimento dos contextos que os tornam (o objeto e o especialista) perceptíveis. Nos situa num oceano, à deriva, cuja angústia é proporcional ao potencial de liberdade quanto aos rumos a seguir.

Aonde quero chegar? Num ano de movimento intenso; de possibilidades cada vez mais amplas; de mistificações ideológicas que nos permitam, ao menos, mirar o horizonte e perceber as periferias; de poder não como potência; de ficções projetadas ou vividas em que todos estejamos reconhecidos e nos reconheçamos. Num 2012 em que as perspetivas sejam muito mais amplas do que os lugares já mapeados para chegada.
Aquilo que é potente de ser pode tanto ser quanto não ser. (...) Toda potência humana é, cooriginariamente, impotência; todo poder-ser ou -fazer está constitutivamente relacionado, para o homem, com a própria privação. (...) o homem é o animal que pode a própria impotência. (...) Se uma potência de não ser pertence originariamente a toda potência, será verdadeiramente potente apenas quem, no momento da passagem ao ato, não anulará simplesmente a própria potência de não, nem a deixará para trás em relação ao ato, mas fará com que ela passe integralmente nele como tal, isto é, poderá não-não passar ao ato.
A releitura de Giorgio Agamben sobre o conceito de potência em Aristóteles é a expressão de um mundo em que a dualidade "isso ou aquilo" se põe em ambivalência, "isso e aquilo". Esse sentido de movimento sobre as ideias, essa (des)mistificação ideológica, explicita o quanto o que se quer dizer depende de como interpretamos meros sinais. O que Aristóteles quis dizer importa tanto quanto o que somos capazes de julgar dito. Não há um só a priori.

Reconheçamos a potência de não agir como ato também responsável. Os gestos, os laços e os afetos que nos venham pelo (re)conhecimento de um coletivo transformado em social através da nossa capacidade de construir acordos, não consensos. As circunstâncias, que sejam "lidas" como situações em potência, não como obra do acaso ou da sorte, boa ou má. O devir, que nos emprenhe de um presente intenso, sem futuros projetados exclusivamente por sujeitos plenamente "responsáveis" por seus atos.

Porque não há respostas a priori para 2012.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Liberdade, segurança e microfones em confessionários

Este texto foi escrito para o blog ESTOPIM, produzido e organizado por estudantes da segunda fase do curso de Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina, campus da Grande Florianópolis. Faço aqui algumas adaptações para ampliar o debate.
Dois acontecimentos recentes disputaram o cenário noticioso na mídia de massa brasileira. A invasão do prédio da Reitoria da USP e a prisão do traficante Nem, considerado um dos principais chefes do tráfico no Rio de Janeiro. Não vamos aqui tecer conjecturas de sentido moral sobre os eventos em si. Deixemos isso para os entendidos em superficialidade distribuídos estrategicamente na mídia e para os ávidos em emitir opiniões no primeiro canal que lhes dê oportunidade.

Há questões nestes dois eventos que envolvem o Jornalismo como atividade para além da óbvia análise de coberturas. Traficantes e estudantes são apresentados com um perfil similar aos olhares da e através da mídia de massa, no contexto dos acontecimentos aqui expostos. São uma minoria e, ainda assim, "impõem" ao Estado democrático ações enérgicas para assegurar direitos de cidadania aos que não fazem parte destes grupos específicos. O interessante, contudo, é o cenário: estudantes violentos, polícia pacificadora.

Objetos de desejo, diplomas de ensino superior e entorpecentes ilícitos disputam o mesmo mercado das utopias consumistas contemporâneas, cuja promessa de felicidade está em consegui-los a custos nem sempre compatíveis aos benefícios implícitos no produto. O motivo que desencadeou "violentos protestos" de alguns estudantes em São Paulo é o mesmo que "conforta" as "comunidades" cariocas nos morros esquecidos pelo Estado. O combate à violência enfrenta um dilema próprio das organizações humanas, na medida em que segurança e liberdade são suas faces mais agudas.

Liberdade e segurança são faces extremas de um dilema próprio das
organizações humanas. Na contemporaneidade, muito relacionadas aos
objetos de desejo para consumo.


A semântica da ocupação
Para o Jornalismo em particular e a mídia em geral, está no comércio ilegal de drogas e sua influência sobre os poderes instituídos o ponto mais crítico no combate à violência. Nada mais simplório, redutor e reprodutor de sentidos. Esse discurso vem das fontes oficiais, do Estado representado por sua força militar. A violência urbana tem vários outros aspectos, muito mais profundos e difíceis de trazer aos palcos das operações policiais exitosas.

No Rio, a prisão de traficantes chega ao escracho da humilhação em público, comemorada como um gol num clássico Fla-Flu (momentaneamente sem Maracanã). Em São Paulo, a de estudantes mostra um poder de autoridade consentido pelo medo do que o uso de entorpecentes ilegais representa. Pela força militar, o Estado "ocupa"; quem "invade" são estudantes e traficantes. Um jogo semântico, aliás, sem novidades.

Dia desses, um estudante da Unisul, universidade em que trabalho, argumentava contundentemente que a apatia evidenciada por professores nos encontros acadêmicos precisa de contexto. O curso que ele frequenta era outro para turmas menos apáticas. Em certo sentido ele tem razão. Imputar somente aos estudantes uma falta de atitude diante das próprias escolhas é perverso. Outras variáveis precisam ser consideradas. E a liberdade como produto para consumo talvez seja uma das mais significativas.

O que implica a ocupação da Polícia Militar num campus universitário? No convênio feito pela USP, a segurança de que seus estudantes tendem a não ser mais assaltados, sequestrados, mortos dentro de suas dependências. Assaltos, sequestros e mortes quase sempre associadas ao tráfico de drogas. Em outros tempos, evocando os argumentos do estudante da Unisul aqui citado, a instituição militar representava repressão; leia-se também, Estado. Era de se esperar uma atitude em direção a um ambiente menos totalitário, arbitrário, autoritário. Um movimento violento de ruptura em que o Jornalismo enquanto atividade também tomava posições de confronto.


O sociólogo Zygmunt Bauman, em Fronteiras do Pensamento, faz uma síntese das concepções que
compõem sua obra. Ele se diz convencido de que segurança e liberdade são forças antagônicas de um
mesmo contexto social: quanto mais se consegue uma, mais perde-se da outra.

Fugacidade e apatia
Zygmunt Bauman argumenta que, quanto mais garantia de segurança, no contexto aqui evidenciado, mais comprometido o sentido de liberdade. Mesmo o mais fútil, como o de fumar maconha no pátio de uma instituição de ensino. Hoje, nos dias em que o Jornalismo vive de microfones em confessionários, a liberdade está descolada das responsabilidades decorrentes das escolhas difíceis que a vida nos oferece. "Desce os morros" o fruto de um abandono consciente que nem as melhores escolas são capazes de amenizar. As energias canalizadas contra a violência não sobem os degraus ocupados convenientemente pela pacificação policial; o "em cima" e o "em baixo", os "de dentro" e os "de fora" convivem segregando lugares que os outros ocupam.

Superficial, o debate público sobre violência se reconhece nas garantias individuais de deslocamento, seja no sentido simbólico ou material. Não surpreende que a instituição militar e seus aparatos repressivos ocupem com a mesma facilidade o campus da "maior universidade da América Latina" e as "comunidades" nas favelas do Rio de Janeiro. Não surpreende também que a mídia de massa, Jornalismo incluso, enalteça passionalmente os "trabalhadores honestos" das favelas cariocas e os "estudantes sérios" da elite acadêmica tupiniquim.

Quando a sensação de segurança é terceirizada, a de liberdade não tem outro lugar senão num convívio cujos laços ganham a forma de contratos temporários. Os estudantes presos na USP, tendo ou não razão, expressam-se hoje como o aparato militar estatal em momentos marcados pela história política brasileira. Deslocado, esse aparato, antes repressor das liberdades individuais, é agora sua garantia. A ilusão criada pela mídia e pelo discurso jornalístico atual é a de que as forças mudaram de lado.

Talvez tenhamos mesmo de entender a apatia como atitude. O estudante anônimo da Unisul, referenciado neste texto, está nos dizendo que não quer o que se está oferecendo a ele mas não sabe exatamente o que por no lugar. Não há aspirações coletivas suficientemente sólidas a serem socializadas. Se quer "comprar" com garantias um futuro que nunca está ali, amanhã de manhã, e isso fere a liberdade de escolha quanto aos objetos de desejo que se pretende consumir, sempre circunstancialmente, ao longo da vida.

Invadir uma reitoria e ocupar uma "comunidade" são ações inscritas num contexto em que segurança e liberdade não dizem mais respeito a projetos de vida. São reações momentâneas, entorpecidas por aspirações fugazes como a vida de um traficante ou uma "viagem" no campus de uma universidade. Tão fugazes quanto as declarações confessionais que satisfazem o Jornalismo na "construção" de informações para consumo.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Propriedades do Jornalismo e o exercício jornalístico como propriedade: entre a Globo e o debate público

Isenção, correção e agilidade são atributos de qualidade para produção de um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas. Em síntese, o documento que explicita os Princípios Editoriais das Organizações Globo reduz o Jornalismo a uma forma de "apreensão da realidade" e aponta os critérios institucionais para dar conta dos valores que apregoam. Seguramente, tais princípios reúnem um belo material para o debate nas escolas de comunicação e nas rodas mais intelectualizadas dos diversos setores sociais. Um debate profícuo, sem dúvida, para uma elite intelectual. Não para a qualificação do espaço público.

Ainda que possa ser comemorado pelo ineditismo, pelo "compromisso" assumido com o público (diferente de compromisso público) e pela suposta transparência que ronda o documento, lê-lo é como ingerir doses de uma droga (lícita, enfatize-se) cujos efeitos são meramente anestésicos. "Consumidor da informação" ou "fonte dela" (como o próprio documento define), o público agora tem claros os argumentos que consolidam o perfil das Organizações Globo. Uma clareza revestida de poder de cobrança para os casos em que os princípios sejam feridos.

Digamos que as Organizações Globo contribuem para o debate a respeito de uma ocupação cujo status profissional é reconhecido por regras próprias de atuação mas não legitimado quanto aos critérios de formação para o exercício de tais regras. O documento define Jornalismo no afã de assegurar um exercício intelectual de interpretação do mundo como propriedade das instituições que financiam a disseminação de  informações. Valiosa no mundo contemporâneo, a informação (e a jornalística é uma das mais requisitadas) ganha "credibilidade" quando respaldada por modelos de negócio inscritos na tradição lucrativa do mercado da comunicação. Os princípios publicados pela Globo servem, antes de tudo, a estes ideários.

As Organizações Globo divulgaram seus princípios editoriais em todos os
seus veículos de comunicação, com toda a pompa que julgam merecer.

É preciso cuidado com as críticas ao documento. Ele é importante para a demarcação de um território periodicamente desestabilizado por decisões judiciais que põem em risco as regulamentações de uma atividade imprescindível para a sustentação da democracia. Para os jornalistas, os princípios publicados pela Globo referendam o próprio campo de atuação. Não como se gostaria. As críticas, portanto, enaltecem as demarcações e os valores explicitados no documento porque servem como "ponto de partida" para um debate bastante útil ao próprio campo. Todas as ressalvas decorrentes reacendem a luta pelo reconhecimento da formação profissional em Jornalismo; são uma oportunidade para ocupar o espaço midiático (considerado público) fruto do próprio campo.


Principais argumentos

A partir da definição de Jornalismo, três seções estruturam o documento: 1) Os atributos da informação de qualidade2) Como o jornalista deve proceder diante das fontes, do público, dos colegas e do veículo para o qual trabalha; e 3) Os valores cuja defesa é um imperativo do Jornalismo. Um compêndio das concepções que sintetizam a "prática intuitiva" do "bom jornalismo" desde a fundação de O Globo, em 1925. Na abertura assinada pelos acionistas da família Marinho, a sentença: em função da diversidade de meios de produção e difusão de informações é preciso identificar o Jornalismo de qualidade enquanto prática para reafirmar a necessidade do produto resultante dela.

   
No debate promovido pelo Observatório da Imprensa, a análise é conduzida
pelos e para os representantes do campo de atuação jornalístico. Neste caso,
jornalistas estudiosos, pesquisadores. Debate de intelectuais.


A defesa do debate público tem um duplo papel: evidenciar a necessidade
de uma prestação de contas à sociedade por parte das empresas concessionárias
de comunicação e a definição dos contornos do campo de atuação jornalístico.


O termo "plural" só aparece nos princípios editoriais da Globo associado à
necessidade de diversificação das redações quanto aos seus comentaristas,
cronistas, articulistas.

Um dos atributos de qualidade da informação jornalística, a isenção merece atenção especial. O termo é usado com a clara intenção de definir responsabilidades por eventuais erros. As Organizações Globo eximem-se do fardo de assumir certos posicionamentos na medida em que estabelecem regras de convívio com as fontes e cuidados especiais na apuração da "verdade dos fatos". Ou as fontes não têm credibilidade ou os jornalistas são ingênuos a ponto de publicarem informações sem a devida e necessária atenção aos "diversos ângulos dos acontecimentos". Para a Globo, "produzir um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas" não é uma ação inscrita no contexto de lutas político-ideológicas. Os fatos o são por si mesmos, basta retratá-los.

Sendo assim, o segundo atributo de qualidade, a correção, estrutura-se sobre a evidência de que não há espaço para subjetivismos na produção jornalística. "Descrever e analisar os fatos da maneira mais acurada, dadas as circunstâncias do momento" é o que garante a credibilidade do produto; para tanto, é necessário distanciamento de todos os laços afetivos, das "idiossincrasias" e "gostos pessoais" no processo de produção jornalística. O correto está, portanto, na garantia de isentar a instituição do fardo de ter de responder por ideias que ponham em risco o modelo de negócios calcado numa economia de mercado dependente dos valores democráticos (e o direito ao consumo, evidentemente, é o mais importante), da livre iniciativa e da liberdade de expressão.

Por último, a informação jornalística ganha qualidade quando adicionado um terceiro atributo: a agilidade. O conhecimento produzido com rapidez pelo Jornalismo justifica-se porque a "imagem dos fatos", "traçada logo após o ocorrido" ainda não tem os "contornos definitivos". E não precisa ter; esse compromisso é da História. Como a "notícia tem pressa", os esforços para a "celeridade" do processo dependem dos investimentos em tecnologia adequada e processos administrativos condizentes. A demora na divulgação de informações só se justifica quando não acarreta "prejuízos à sociedade". O direito ao "primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas" em "primeira mão" vem em primeiro lugar.


Decorrências óbvias

Que perfil de jornalista corresponde aos critérios assumidos pelas Organizações Globo? Reconhecida a impossibilidade de um profissional despir-se totalmente de subjetivismos, que suas idiossincrasias podem representar "filtros" inconvenientes, é imperativo que as redações (o clássico lugar dos jornalistas na indústria da comunicação) sejam "plurais", componham-se de diversos nichos de especialidade, diferentes concepções de valores e crenças. Diversificar os "filtros" é a maneira de proteger-se contra eles na medida em que "todos são responsáveis" pela isenção, pela correção e pela agilidade do processo de produção do "primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas".

Bom jornalista, neste contexto, é o que defende os valores democrátios (independente de suas próprias crenças e valores) e a liberdade de expressão. Interessante que o termo "livre iniciativa" apareça apenas quando o documento aborda as organizações do grupo e é usado, junto com os que ilustram o perfil ideal de profissional, como apelo à defesa "de qualquer tentativa de controle estatal e paraestatal" no sentido de cercear as liberdades fundamentais da sociedade. Sejamos francos, o único lugar possível para as Organizações Globo é o de mediadora entre as esferas de poder e os diversos setores sociais. Esse é o seu negócio. Mas é o lugar das instituições concessionárias de comunicação que está em jogo.

O mérito do documento parece estar no óbvio, apontado como novidade. Retórica sem precedentes na indústria da comunicação brasileira, os princípios editoriais, aqui parcamente analisados, trazem muito mais insumos para o estudo do campo de atuação jornalístico no país. Há quem pergunte se tudo o que está escrito será cumprido; há quem diga que a sociedade precisa cobrar. Pragmaticamente, pouco importa. Os valores da Globo não estão em debate. Não estão inscritos no contexto da democracia, da liberdade de expressão e da livre iniciativa que defendem. São regras para um grupo específico de profissionais, para um tipo peculiar de produto; não podem ser trazidos para "iluminar" todo um campo de atuação. Não se pode assumir, mesmo inconscientemente, o fato de as Organizações Globo terem publicado em "primeira mão" seus princípios editoriais como marco para o debate público sobre a produção jornalística no Brasil.

domingo, 5 de junho de 2011

Entre a bandeira política e as políticas públicas: o que avaliar quer dizer

Em 24 universidades federais o vestibular não será mais realizado. Só neste ano, cerca de 83 mil vagas nestas instituições foram selecionadas exclusivamente com base nos índices do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Mas para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) é bom lembrar que o exame é instrumento de avaliação, não de seleção. Malvina Tuttman, atual presidente do INEP, tem feito questão de reiterar a principal função do ENEM: "ele continua guardando sua qualidade de avaliação do ensino médio". Seus resultados, portanto, não foram pensados para ranquear estudantes interessados na educação superior.

Constatação semelhante é feita na educação básica. Levantamento recente aponta que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) não está sendo adequadamente utilizado pelos gestores das escolas. Os sistemas avaliativos em andamento no Brasil guardam uma complexidade pouco familiar à cultura de processos do gênero. Quando divulgados, os resultados dos inúmeros exames realizados no país aparecem "desqualificados" por uma visão meritocrática e seletiva. O mérito não está em discussão a não ser quando nossos parâmetros são comparados aos de sistemas considerados mais "avançados" em termos de resultado.

São inúmeros os fatores que influenciam nos resultados apontados pelos sistemas avaliativos. Sem contar que os próprios sistemas são compostos por diferentes instrumentos com o objetivo de promover o confronto de índices obtidos em instâncias de observação distintas. O desempenho de estudantes não pode ser confundido com a qualidade da escola; sem contextualização, os números específicos de cada exame podem ser interpretados de acordo com a vontade de quem os analisa. O desempenho de estudantes deve ser examinado em função das políticas para a educação porque pode revelar aspectos importantes quanto às ações que tais políticas inspiram.

Os investimentos públicos por aluno na educação superior no Brasil é cinco vezes maior do que na educação básica. Não há novidade nos dados divulgados pelo próprio INEP. Eis o problema. Os sistemas avaliativos brasileiros, por mais consistentes que sejam, de nada têm servido para mudar a educação em seus aspectos mais elementares. São expostos descontextualizadamente, usados tecnocraticamente e continuam surpreendendo a cada velha informação travestida de novidade. Depoimentos como o da professora Amanda Gurgel, para quem os números escondem mais do que dizem, ainda sensibilizam um país em que a educação é bandeira política, não política pública.


Depoimento da professora Amanda Gurgel em audiência pública sobre as
condições da educação no Rio Grande do Norte. Seus argumentos lhe renderam
notoriedade nacional. Mas o salário dos professores continua no mesmo
patamar. Na audiência, índices quantitativos ilustraram a "avaliação".


Pegando carona no "sucesso" da professora nas redes sociais, a Globo chegou
a interromper a veiculação de suas bobagens domingueiras para tratar de um
tema caro ao Brasil. Pena que a seriedade do assunto esbarre nos interesses
pelos índices de audiência. Avaliações viram retórica na mídia em geral...