sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Liberdade, segurança e microfones em confessionários

Este texto foi escrito para o blog ESTOPIM, produzido e organizado por estudantes da segunda fase do curso de Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina, campus da Grande Florianópolis. Faço aqui algumas adaptações para ampliar o debate.
Dois acontecimentos recentes disputaram o cenário noticioso na mídia de massa brasileira. A invasão do prédio da Reitoria da USP e a prisão do traficante Nem, considerado um dos principais chefes do tráfico no Rio de Janeiro. Não vamos aqui tecer conjecturas de sentido moral sobre os eventos em si. Deixemos isso para os entendidos em superficialidade distribuídos estrategicamente na mídia e para os ávidos em emitir opiniões no primeiro canal que lhes dê oportunidade.

Há questões nestes dois eventos que envolvem o Jornalismo como atividade para além da óbvia análise de coberturas. Traficantes e estudantes são apresentados com um perfil similar aos olhares da e através da mídia de massa, no contexto dos acontecimentos aqui expostos. São uma minoria e, ainda assim, "impõem" ao Estado democrático ações enérgicas para assegurar direitos de cidadania aos que não fazem parte destes grupos específicos. O interessante, contudo, é o cenário: estudantes violentos, polícia pacificadora.

Objetos de desejo, diplomas de ensino superior e entorpecentes ilícitos disputam o mesmo mercado das utopias consumistas contemporâneas, cuja promessa de felicidade está em consegui-los a custos nem sempre compatíveis aos benefícios implícitos no produto. O motivo que desencadeou "violentos protestos" de alguns estudantes em São Paulo é o mesmo que "conforta" as "comunidades" cariocas nos morros esquecidos pelo Estado. O combate à violência enfrenta um dilema próprio das organizações humanas, na medida em que segurança e liberdade são suas faces mais agudas.

Liberdade e segurança são faces extremas de um dilema próprio das
organizações humanas. Na contemporaneidade, muito relacionadas aos
objetos de desejo para consumo.


A semântica da ocupação
Para o Jornalismo em particular e a mídia em geral, está no comércio ilegal de drogas e sua influência sobre os poderes instituídos o ponto mais crítico no combate à violência. Nada mais simplório, redutor e reprodutor de sentidos. Esse discurso vem das fontes oficiais, do Estado representado por sua força militar. A violência urbana tem vários outros aspectos, muito mais profundos e difíceis de trazer aos palcos das operações policiais exitosas.

No Rio, a prisão de traficantes chega ao escracho da humilhação em público, comemorada como um gol num clássico Fla-Flu (momentaneamente sem Maracanã). Em São Paulo, a de estudantes mostra um poder de autoridade consentido pelo medo do que o uso de entorpecentes ilegais representa. Pela força militar, o Estado "ocupa"; quem "invade" são estudantes e traficantes. Um jogo semântico, aliás, sem novidades.

Dia desses, um estudante da Unisul, universidade em que trabalho, argumentava contundentemente que a apatia evidenciada por professores nos encontros acadêmicos precisa de contexto. O curso que ele frequenta era outro para turmas menos apáticas. Em certo sentido ele tem razão. Imputar somente aos estudantes uma falta de atitude diante das próprias escolhas é perverso. Outras variáveis precisam ser consideradas. E a liberdade como produto para consumo talvez seja uma das mais significativas.

O que implica a ocupação da Polícia Militar num campus universitário? No convênio feito pela USP, a segurança de que seus estudantes tendem a não ser mais assaltados, sequestrados, mortos dentro de suas dependências. Assaltos, sequestros e mortes quase sempre associadas ao tráfico de drogas. Em outros tempos, evocando os argumentos do estudante da Unisul aqui citado, a instituição militar representava repressão; leia-se também, Estado. Era de se esperar uma atitude em direção a um ambiente menos totalitário, arbitrário, autoritário. Um movimento violento de ruptura em que o Jornalismo enquanto atividade também tomava posições de confronto.


O sociólogo Zygmunt Bauman, em Fronteiras do Pensamento, faz uma síntese das concepções que
compõem sua obra. Ele se diz convencido de que segurança e liberdade são forças antagônicas de um
mesmo contexto social: quanto mais se consegue uma, mais perde-se da outra.

Fugacidade e apatia
Zygmunt Bauman argumenta que, quanto mais garantia de segurança, no contexto aqui evidenciado, mais comprometido o sentido de liberdade. Mesmo o mais fútil, como o de fumar maconha no pátio de uma instituição de ensino. Hoje, nos dias em que o Jornalismo vive de microfones em confessionários, a liberdade está descolada das responsabilidades decorrentes das escolhas difíceis que a vida nos oferece. "Desce os morros" o fruto de um abandono consciente que nem as melhores escolas são capazes de amenizar. As energias canalizadas contra a violência não sobem os degraus ocupados convenientemente pela pacificação policial; o "em cima" e o "em baixo", os "de dentro" e os "de fora" convivem segregando lugares que os outros ocupam.

Superficial, o debate público sobre violência se reconhece nas garantias individuais de deslocamento, seja no sentido simbólico ou material. Não surpreende que a instituição militar e seus aparatos repressivos ocupem com a mesma facilidade o campus da "maior universidade da América Latina" e as "comunidades" nas favelas do Rio de Janeiro. Não surpreende também que a mídia de massa, Jornalismo incluso, enalteça passionalmente os "trabalhadores honestos" das favelas cariocas e os "estudantes sérios" da elite acadêmica tupiniquim.

Quando a sensação de segurança é terceirizada, a de liberdade não tem outro lugar senão num convívio cujos laços ganham a forma de contratos temporários. Os estudantes presos na USP, tendo ou não razão, expressam-se hoje como o aparato militar estatal em momentos marcados pela história política brasileira. Deslocado, esse aparato, antes repressor das liberdades individuais, é agora sua garantia. A ilusão criada pela mídia e pelo discurso jornalístico atual é a de que as forças mudaram de lado.

Talvez tenhamos mesmo de entender a apatia como atitude. O estudante anônimo da Unisul, referenciado neste texto, está nos dizendo que não quer o que se está oferecendo a ele mas não sabe exatamente o que por no lugar. Não há aspirações coletivas suficientemente sólidas a serem socializadas. Se quer "comprar" com garantias um futuro que nunca está ali, amanhã de manhã, e isso fere a liberdade de escolha quanto aos objetos de desejo que se pretende consumir, sempre circunstancialmente, ao longo da vida.

Invadir uma reitoria e ocupar uma "comunidade" são ações inscritas num contexto em que segurança e liberdade não dizem mais respeito a projetos de vida. São reações momentâneas, entorpecidas por aspirações fugazes como a vida de um traficante ou uma "viagem" no campus de uma universidade. Tão fugazes quanto as declarações confessionais que satisfazem o Jornalismo na "construção" de informações para consumo.

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