sábado, 30 de abril de 2011

Estratégias em jogo: entre o paradigmático e o praxeomórfico

Chamamos de estratégia os modos de pensar e operar o alcance de determinados objetivos. Os gregos usavam o termo para designar a arte, a qualidade, as habilidades do general, o "mentor intelectual" das batalhas. No âmbito da gestão, as analogias contemporâneas ainda estão neste campo de interpretação: a saúde traduz-se num conjunto de batalhas contra as doenças; o mercado, num conjunto de batalhas contra os concorrentes; a preservação ambiental, num conjunto de batalhas contra os poluentes; a educação, num conjunto de batalhas contra os baixos índices de desenvolvimento humano e por aí vai. Administrar tensões, em nosso modelo, é estar sempre em luta por algo ou contra algo, é superar os conflitos que esmaecem as metas a serem alcançadas. Estratégias são, portanto, imprescindíveis.

A visão contemporânea de estratégia é um modelo mobilizador do mundo dos negócios, competitivo e sem lugares aparentes para todos os interessados em ocupá-los. Neste contexto, grosso modo, alguém tem a visão, a projeta no futuro, estabelece a forma de alcançar as metas traçadas em projeção e promove intervenções cotidianas, planejadas em função de objetivos claros o bastante para os que precisam ver a mesma coisa lá adiante. Tal visão não se abre a outros possíveis disponíveis. O caminho é um só e trilhá-lo é um exercício cuja força deve ser suficiente para que a rota não se altere significativamente. Em suma, um estrategista mira no horizonte (um espectro amplo de possibilidades) os focos sobre os quais se deve ver o futuro. A redução de perspectiva justifica-se pela concentração de esforços numa mesma direção. Os olhos, então, fixam-se no modelo para otimizar o percurso.

Tentemos, contudo, adotar "outros olhares" sobre os ideários que permeiam essa visão de mundo. François Jullien, estudioso da China clássica, salienta uma concepção de estratégia bastante significativa para os dias de hoje. A eficácia das ações propostas pelos estrategistas chineses estava relacionada à sabedoria, não apenas ao conhecimento.
[E]m vez de traçar um modelo que sirva de norma à sua ação, o sábio chinês é levado a concentrar a atenção no curso das coisas, tal como está envolvido nele, para descobrir-lhe a coerência e tirar proveito de sua evolução. Ora, dessa diferença poder-se-ia tirar uma alternativa para a conduta: em lugar de construir uma forma ideal que se projeta sobre as coisas, obstinar-se em detectar os fatores favoráveis que atuam em sua configuração; em vez de fixar um objetivo para sua ação, deixar-se levar pela propensão; em suma, em vez de impor um plano ao mundo, apoiar-se no potencial de situação. (...) Esse potencial é muito mais - e mesmo bem diferente - que um simples concurso de circunstâncias, por afortunado que seja: preso na lógica de um desenvolvimento regulado, é levado a desenvolver-se espontaneamente e pode nos "portar" (Francois Julien, em Tratado da Eficácia, publicado pela editora 34 em 1998).
Nossa visão estratégica entende oportunidade como acaso ou conjunto de fatores favoráveis sobre os quais nossos modelos podem ser estruturados. Na China clássica, o "vir a ser", aquilo que chamamos de futuro, estava inscrito num processo cujo potencial era "lido" para se agir com ele, não sobre ele. Sendo assim, a ideia de oportunidade não surge como inusitado favorável, tampouco como a soma de metas cumpridas em função de finalidades previamente planejadas. O oportuno, na concepção chinesa da antiguidade, era a colheita a jusante de ações a montante. Isso faz do "vir a ser" as escolhas constantes quanto aos possíveis disponíveis a cada momento, não um plano. O jogo não está em atingir o alvo a qualquer custo, mas avaliar constantemente os custos de empreender esforços contra o fluxo das coisas.

Devir como jogo
Johan Huizinga sustenta que o jogo antecede a humanidade; que há evidências de que as brincadeiras entre animais expressam relações lúdicas com finalidades biológicas. Diz ele que as teorias sobre o jogo, seja de que áreas de conhecimento humano venham, reconhecem tais finalidades. Fenômenos da cultura são as ideias que inspiram. As visões de mundo relacionadas às concepções de estratégia aqui sinteticamente descritas estão sistematizadas em dois jogos clássicos e bastante difundidos. No ocidente, o xadrez; no oriente, o go. O primeiro ilustra uma batalha em que o objetivo é derrotar o rei adversário; o segundo tem por princípio conquistar uma "terra de ninguém".

No xadrez, as estratégias são mapeadas em função da hierarquia das peças, do movimento restrito a cada uma delas, do grau de sacrifícios necessários para se atingir o objetivo principal (xeque mate) e do movimento do adversário, entre outras peculiaridades. O jogo começa com os "times" adversários pré dispostos, frente a frente. O cenário está dado e é nele que se constrói a "batalha". As variáveis para as tomadas de decisão (usando um jargão em voga no mundo dos negócios) circunscrevem-se ao cenário visível e são planejadas previamente para induzir o adversário a movimentar-se de acordo com as "metas" antecipadamente elaboradas.

O "go" é um jogo milenar chinês cuja lógica ainda não coube na linguagem
binária dos computadores. O cálculo não é suficiente para entendê-lo em
Jorge Luis Borges, tocado pelos possíveis disponíveis.

As estratégias para o "go" não têm sentido se elaboradas previamente. O jogo começa sobre um tabuleiro vazio; todas as peças têm o mesmo grau de importância, qualquer uma delas e a qualquer tempo podem determinar o fim da "batalha". Não há um sentido explícito de derrota, visto que o objetivo é ocupar o maior espaço possível no tabuleiro e a base de toda a estratégia é o equilíbrio. No "go" não há movimento; as pedras vão sendo colocadas, uma a uma, nas interseções das linhas que cortam o tabuleiro. É preciso, portanto, aprender a analisar o potencial de situação; os adversários não são inimigos, mas portadores do "vir a ser".

É emblemático que na linguagem binária dos computadores as variáveis do xadrez estejam mapeadas. As estratégias do jogo são modeláveis. No "go", as variações modeladas em computador utilizam apenas uma pequena parte do tabuleiro; as variáveis são tão diversificadas que não houve ainda, pela via do cálculo, possibilidade de mapeá-las. Imaginação e cálculo, no "go", não estão dissociados; compõem uma mesma visão de mundo. Visão que, aliás, reconhece no outro, mesmo no adversário, uma perspectiva de equilíbrio quanto ao fluxo das coisas. O devir, o "vir a ser", não se molda a mim, mas dele tiro vantagem com a anuência de meu adversário.

Modelos e processos
Thomas Khun é referência quando se fala em paradigma. Suas concepções estavam inscritas no campo da Ciência, mas são aplicáveis ao contexto aqui explicitado. Um paradigma, segundo ele, é uma matriz partilhada, um modo de ver e de praticar. Estamos falando de um modelo, um esquema através do qual nossas concepções de realidade são reconhecidas, legitimadas e explicadas. Este modelo, portanto, estrutura uma tradição e se expressa numa realização concreta. Neste contexto, o fluxo "normal" das coisas segue dentro de modelos cujas estratégias decorrem de regras estabelecidas, peças legitimadas para o uso e objetivos claros a atingir.

Na concepção do pensador estadunidense, essa visão de mundo tende a naturalizar o que fundamenta os modelos em uso, confinar as perspectivas numa ideia de progresso pautada pelo acúmulo sistemático de fundamentos partilhados numa mesma estrutura e por um grupo hegemônico. O jogo, neste caso, não está em jogo. Um paradigma é visto como enigma, algo a ser desvendado dentro do próprio modelo cuja resposta precisa ser alcançada sem que seus princípios sejam questionados. A visão khuniana põe em crise o próprio modelo. Em suma, o mundo é feito de rupturas, de "sobreposição" de modelos sobre os quais se estrutura.

Digamos que a concepção de Khun, aqui livremente usada para além da Ciência, foge do enigma mas para reconhecer outros enigmas possíveis. Sua ideia de paradigma é também paradigmática. Aceita a substituição de um modelo por outro; enquanto modelo, um paradigma é sempre o produto, o resultado de muitas variáveis que expressam uma tendência legitimada. É um modelo mobilizador que desconsidera os possíveis disponíveis por não evidenciar aquilo que o "eleva" ao status de paradigma. Quando se reconhece o paradigma morre o que nele é praxeomórfico.

O termo praxeomórfico designa "o que" fazemos por hábito e "como tendemos" a fazer esse "o quê" habitualmente. Está inscrito num processo que, quando naturalizado, é tido como de praxe. Mas sua força reside na ideia de praxis, em ações que não separam imaginação e cálculo tampouco são complacentes com o habitual naturalizado. São as ações a montante; aquelas que não se projetam e, portanto, só têm um fim quando "lidas" no potencial de situação. A forma advinda da praxis não é um modelo, justamente porque não deve ser vista como resultado a ser replicado. O praxeomórfico é um devir; o paradigma é o futuro.

No mundo dos negócios
Pesquisa recente revela que o Brasil teve em 2010 a maior taxa de empreendedores em estágio inicial entre os países do G20. Divulgada pelo Sebrae, a Global Entrepreneurship Monitor chegou à 11ª edição no ano passado. É o mais conceituado estudo independente sobre empreendedorismo no mundo, coordenado por uma associação de grandes escolas de negócio. Seus dados demonstram, em tese, que o brasileiro mudou o comportamento com relação à abertura de novos empreendimentos. Hoje, de cada três, dois são inspirados por oportunidade, um por necessidade. Significa dizer que há um planejamento mais consistente quanto aos passos para se abrir uma empresa, por exemplo.

A ideia de oportunidade aceita no contexto da pesquisa sobre empreendedorismo é paradigmática. Está sustentada na visão de mundo que aceita o acaso ou o planejamento cuidadoso antes da intervenção. Os riscos embutidos na empreitada são exclusivos, competem a quem decide intervir. Passa a ser de praxe adotar fórmulas de sucesso para diminuir os riscos, visto que o modelo mobilizador do mundo dos negócios apresenta-se como enigma a ser desvendado. Nesta concepção, só se pode "negociar" depois de certas certezas e com certas instâncias legitimadoras.


O projeto para iPhone 4 traz concepções novas para o que se conhece como edição de
vídeo, mobilidade, acessibilidade e qualidade fílmica. Para viabilizar o "negócio"
comercialmente, os idealizadores do projeto "pedem" aos internautas um investimento
na ideia. Vinte mil dólares eram suficientes. Conseguiram muito mais.


E o praxeomórfico? O mundo contemporâneo está repleto de possíveis disponíveis para realizações concretas. Estas condições de possibilidade alicerçam-se em relações negociadas constantemente e para além de hierarquias e legitimações. Não são necessariamente "modelos" de negócio, mas possibilidades de articulação de interesses seja em investimentos, ideias ou proposições concretas. O negócio não é o produto, mas o processo mesmo de articulação. E por articulação entenda-se um canal para evidenciar pontos de vista que, próximos ou não, podem estabelecer conexões produtivas (estamos falando do mundo dos negócios, não é mesmo?).

As organizações contemporâneas tendem a usar parte do seu tempo em discussões sobre como dar forma para fluxos e processos. Nada mais incoerente. De fato, aquilo que se chama de fluxo, via de regra é um organograma identificando por onde o que está em processo deve passar. Em suma, o fluxo é o menos importante; em destaque figuram os pontos de represamento, cruciais para que os fluxos sejam controlados. O "vir a ser" é compartimentado num modelo que naturaliza como costumamos fazer as coisas e como tendemos a fazê-las costumeiramente. O praxeomórfico, contudo, não vê forma. Ao articular possíveis disponíveis evidencia as condições potenciais para realizações concretas. Estamos carentes de organizações de sabedoria.

terça-feira, 15 de março de 2011

Harvard, Kamkwamba e os possíveis disponíveis: multivalências da paisagem em educação

William Kamkwamba é uma dessas figuras emblemáticas do mundo contemporâneo. Personifica todas as expressões usadas em pleonasmo para descaracterizar pela retórica a profunda ligação entre os termos que designam exclusão. Diante da pobreza, da fome e da impotência decidiu investir no conhecimento. Sem possibilidades de frequentar a escola, achou seu rumo numa biblioteca. Os livros lhe deram figuras através das quais construiu um gerador de energia para sua aldeia em Malaui, na África. Aprendeu sozinho a mobilizar os recursos de que dispunha para intervir na própria realidade e mudar a de todos.

Somos tentados a usá-lo como herói. Sua história tem todos os elementos dos mitos modernos: um garoto desafortunado que supera as adversidades e "vence" a própria sorte. Ou podemos enxergar nele um anti-herói: uma personagem-símbolo que eclode para nos mostrar o quão perversos são o sistema social e a cultura que preservamos; o quão conflituosos são nossos interesses, nossas idiossincrasias diante dos modelos mobilizadores que idolatramos. Kamkwamba pode jamais ser aluno de Harvard ou do MIT; mas tem lições a dar a todos os que por lá frequentam. Nas suas ações estão os valores mais importantes para o que chamamos de competência.

William Kamkwamba conta a experiência de criar um moinho para gerar energia
elétrica na casa onde morava com os pais, aos 14 anos. Palestra está disponível na
internet, legendada em várias línguas, numa rede social chamada TED (Tecnologia,
Entretenimento e Design) e que mantém uma plataforma de Educação com acesso livre

Do latim competere, o termo traz na raiz o sentido de pedir junto com, buscar junto com. Uma ordem econômica pautada na competitividade deu outro uso social ao termo. Competere passou a significar disputar junto com. Em educação o sentido de competência é controverso, subjaz de diversas correntes de pensamento e ganha contornos cheios de cuidados e especificidades. E assim deve ser, sobretudo para que não se confunda sobre as origens de onde se parte quando se usa um termo tão complexo. Kamkwamba desenvolveu capacidades para dar novo sentido ao lugar que ocupava e, portanto, suas qualificações nasceram com a própria proposta de transformação. Esse tipo de competência não é comum. Nem nas mais "brilhantes" instituições de ensino.

O que mais chama a atenção na história de Kamkwamba é que ele virou William. Sua "genialidade" lhe rendeu o status de cientista e empreendedor. Os adjetivos a ele imputados hoje são oriundos do modelo mobilizador que até então o havia excluído. Para o africano, agora, há um lugar reconhecido e legitimado; ninguém poderá ocupá-lo justamente porque surgiu de uma trajetória singular e estruturou-se num contexto nada ortodoxo. Talvez por isso Kamkwamba ainda cultue visceralmente a fonte de energia que mudou sua aldeia e abriu a ele perspectivas que um adolescente não imaginaria existir no ambiente em que vivia.

O africano, com status de cientista e empreendedor, palestra como
convidado no Massachusetts Institute of Technology, o MIT. Ele não
conseguiria entrar na instituição como estudante, mas tem muito a ensinar

Elite intelectual sem cor
Mudemos de personagem. Drew Faust anuncia uma visita de quatro dias ao Brasil a partir deste 23 de março. Reitora da renomada Universidade de Harvard desde 2007, a historiadora de 62 anos busca na internacionalização perspectivas de ampliação para o prestígio que a instituição representada por ela vem conquistando desde 1636. Harvard figura como a melhor universidade do mundo em diversos rankings organizados para medir desde o desempenho acadêmico até o valor da marca que estas instituições carregam. Faust é a primeira mulher a dirigi-la. Desnecessário dizer o quanto isso significa.

As atuais políticas de Harvard sustentam a necessidade de ampliar as oportunidades para "talentos" que não reúnem condições de arcar com os estudos. Sessenta por cento de seus estudantes têm algum tipo de bolsa. As políticas de acesso tentam privilegiar também a diversificação nos ambientes de aprendizagem. Vinte por cento dos estudantes são estrangeiros; e os da casa são estimulados a ter alguma experiência internacional já na graduação, muitos deles com incentivo financeiro. Segundo a reitora, um em cada quatro estudantes estadunidenses nos quadros de Harvard desenvolveu atividades acadêmicas fora do país no ano passado.

Drew Faust fala à Folha de São Paulo sobre sua visita ao Brasil e as políticas
de Harvard para conseguir novos talentos fora dos padrões de poder aquisitivo
convencionalmente aceitos pela instituição ao longo de sua história

Drew Faust simboliza os esforços de superar a crise financeira que abala as instituições acadêmicas privadas com uma visão menos centrada numa "elite branca". Mas a lógica que sustenta as oportunidades ainda é elitista. Seletividade antropoêmica, diríamos. É pelo potencial de desempenho acadêmico que se avalia o candidato. Neste sentido, não há mudança de paradigma. Os rituais e os valores ainda são os mesmos e para poucos. Os critérios é que são outros. Ainda não é politicamente correto execrar a segregação intelectual. Ou melhor, a elite intelectual não é mais só branca.

No caso de Harvard, o sentido de competência parte dos lugares desenhados para ocupação. Há, portanto, uma qualificação requisitada para a qual os interessados devem reunir referências. O discurso de acessibilidade, por mais interessante que seja e democrático que pareça, esconde numa suposta política meritocrática valores que reforçam o sentido de exclusão. As instituições de ensino, e Harvard é modelo a ser seguido, só estão efetivamente abertas aos que vão ajudá-las a se manter no topo dos rankings usados para se fazer gestão dos recursos financeiros destinados à educação.

Entre o registro e o controle
Não há uma única universidade brasileira entre as 100 mais reputadas do mundo no ranking da Times Higher Education, considerada a principal referência em avaliações do gênero. O índice de reputação, estruturado a partir de entrevistas com 13.388 acadêmicos com mais de 16 anos de trabalho em instituições de ensino superior e 50 artigos publicados, traz Harvard como a primeira da lista. No índice geral (cuja avaliação relaciona desempenho, estrutura e produção acadêmica) da THE, ela também lidera.

A imprensa brasileira, pautada pelo jornalismo fastfood de hoje, tem trazido ao debate informações relevantes, ainda que superficialmente tratadas. Consubstanciadas nos discursos oficiais a respeito do movimento educacional, fundamentadas em projeções, descontextualizadas, beiram a publicidade de ações supostamente importantes. É preciso ter uma universidade entre as 100 melhores do mundo? Claro que sim! Não podemos prescindir, como país emergente, como um BRIC, do status geopolítico que isso representa. Mesmo que nossa educação básica ainda dependa de tanto a ser feito e que nossos professores sejam tão desvalorizados.

O Brasil é o 88° país no ranking de educação da UNESCO. Estamos muito longe das metas traçadas para 2015 na Conferência Mundial de Educação de Dacar, em 2000. Reconheçamos, e os mesmos índices apontam isso, o Brasil está entre os que mais investiram na educação ao longo deste período. Lidos separadamente, os dados parecem incoerentes. Não são. A tangibilidade dos investimentos no caso da educação não pode ser reduzida a índices, ampliações de acesso meritocráticas, tampouco quantificações de toda ordem. Os processos de gestão precisam desses insumos desde que qualificados por tomadas de decisão orientadas em paisagens muito mais amplas.

Harvard e Kamkwamba são ambivalências de uma paisagem cultural cujos contornos podem ser apenas presumidos. Aos 14 anos, o africano então semianalfabeto ganhou notoriedade por conta das redes sociais e dos projetos viabilizados por uma cultura de colaboração e interessados em difundir ideias, venham de onde vierem. Kamkwamba não é um gênio; e é genial por isso mesmo. Harvard, com os 44 prêmios Nobel, as pesquisas de ponta, as patentes registradas e os ilustres estudantes que ajudou a formar  talvez não tenha construído algo tão significativo quanto um gerador de energia feito de restos de material numa aldeia africana sem a ajuda professoral dos rituais acadêmicos.

Modelos mobilizadores são praxeomórficos. A educação brasileira merece um lugar nessa diversificada paisagem cultural que valorize Harvard, Kamkwamba e os possíveis disponíveis em escalas tangíveis e perspectivas intangíveis. Está no registro de nossa riqueza cultural e não no controle dos processos de ensino e de aprendizagem a resposta para nossas angústias. Afinal, podemos não ter uma Harvard em nosso sistema edicacional, mas não sabemos quantos Kamkwambas andam por aí investindo em soluções para problemas que a "elite intelectual" finge não existir mais.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Reportar-se à reportagem é reportar o repórter a um outro Jornalismo

Dezesseis de fevereiro, dia do repórter. Nessa figura indispensável ao Jornalismo existe um dilema que sintetiza a crise da profissão. Repórter é geralmente visto como mediador social enquanto observador do cotidiano e mediador simbólico enquanto produtor de sentidos. A concepção o qualifica como mero espectador dos fatos. Alguém privilegiado, levado a ser "testemunha ocular da história de seu tempo", nas palavras de Clovis Rossi.

A ideia é em si controversa, mas traz uma discussão interessante. Ser testemunha ocular significa acompanhar de perto o rumo dos acontecimentos; estar presente na eventualidade das relações consideradas jornalisticamente relevantes. Essa presencialidade não nos é possível; quase nunca. No Jornalismo, a história de nosso tempo possível de ser ocularmente testemunhada é a eleita a priori como importante; pautada, antecipada em seus elementos previsíveis. Essa história é mobilizadora de "olhares" homogeneizados. As versões sobre os acontecimentos, por mais divergentes que sejam, levam em conta um único "mirante", um único "platô" de onde todos os "olhares" disputam o privilégio de observar melhor.

É possível interpretar a fala de Clovis Rossi - ainda que não creia ser esse o sentido dado a ela - por um viés mais metafórico. Por "testemunha ocular" pode-se entender também quem tem a preocupação rigorosa de reportar-se, no tempo e no espaço, aos acontecimentos que não pôde presenciar; de investigar com todo o cuidado e paciência os elementos que constituem uma versão possível, verossímil dos acontecimentos. Indo além, estabelecer conexões espaciotemporais entre o seu movimento de apuração e as versões plausíveis sobre o que se está apurando.

O termo reportagem traz uma dualidade redutora que é própria da conflituosa atividade jornalística. Quem delimita o exercício profissional a habilidades meramente retóricas, às linguagens, julga indispensável a descrição fria dos acontecimentos; um distanciamento marcado pela terceira pessoa como recurso textual. Os fatos impõem ao Jornalismo a ausência de juízos de valor no texto, no ato de reportá-los. Como se o que se diz sobre objetos e fenômenos não os valorasse de algum modo.

É no ato de reportar-se, de mergulhar num contexto específico, de dialogar com os possíveis disponíveis em termos de fontes e cenários observáveis que reside o sentido de ser repórter. Há uma difícil escolha por protagonismo nesse ato.
Tecer os sentidos contemporâneos num amplo contexto democrático, reconstituir as histórias de vida num cenário das diferenças culturais que assinam nas múltiplas oraturas e cruzar as carências sociais com o gesto generoso dos pesquisadores e dos artesãos de um outro futuro despertam uma sensibilidade altamente complexa e fina com o presente (Cremilda Medina em A Arte de Tecer o Presente: Narrativa e Cotidiano, publicado pela Summus em 2003).
Como mero espectador da agenda pautada pela mediação do previsível, portanto testemunha ocular da retórica hegemônica sobre a história, o repórter perde o que essencialmente o constitui. Lugar de repórter, como diz Ricardo Kotscho, é na rua. Não para ser apenas "testemunha ocular" de seu tempo, mas, e sobretudo, para reportar-se aos contextos de onde subjazem os insumos que qualificam nossa presença no cotidiano.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Corrida para não lugares: modelo mobilizador das ciências aplicadas e da educação internacionalizada

É preciso preencher os lugares de ocupação deixados em branco pela falta de gente especializada. Esse parece ser o modelo mobilizador que impulsiona a educação contemporânea. Eficaz, na medida em que a tecnologia ideologizada, transformada em prótese das utopias sociais, tem sempre a garantia de novas especializações para seu uso. Mas os lugares de ocupação a preencher não reduzem o poder de mobilização a si mesmos. É a "ciência aplicada", essa associada ao progresso e de racionalidade operatória, que dá sentido ao modelo.
(...) a velocidade com a qual são propostos hoje novos instrumentos técnicos que tornam os anteriores obsoletos cria uma forma de mobilização que, doravante, não tem mais nem necessidade nem tempo de forjar um paradigma. (...) a diferença entre o "antes" e o "depois" torna-se cada vez mais rápida, todavia não diz mais respeito a criações que afirmariam a autonomia e sim à obsolescência acelerada dos instrumentos que tornam a pesquisa datada (Isabelle Stengers em A invenção das ciências modernas, editado pela 34 em 2002).
Isabelle Stengers não está falando, é óbvio, de educação diretamente. Mas a ciência moderna descrita por ela, inventada pela naturalização de uma única retórica capaz de satisfazer sua História, sem necessidade nem tempo de forjar-se continuamente, é essa ciência que impulsiona o modelo educacional. Por um lado, consolida um sistema competitivo com indústria própria, valorizando as "mentes brilhantes" e as "instituições de excelência" adaptadas aos modos de produção que as subsidiam. Por outro, formata um campo de retóricas coerentes, indecifráveis aos que não pertencem a ele. Este modelo mobilizador, diríamos, consolida um sistema que mantém "fora" os "incapazes" (relação antropoêmica), coopta os "de dentro" ao seu modo de funcionamento (relação antropofágica) e valoriza títulos que "capacitam" para seus lugares de ocupação (não lugares).

Como fundamento, e esse é um dos pontos primordiais do pensamento de Isabelle Stengers, construir conhecimento não é uma ação pura, tampouco uma competência nobre o suficiente para isolá-la de outros afazeres mais "domésticos" no campo das ciências. Construir conhecimento é também fazê-lo existir, é construir sua existência. Portanto, o poder de mobilização dos recursos necessários para este fim não está no modelo, mas na capacidade de articulação dos interesses para além da produção decorrente e seus lugares legitimados. E o tempo dedicado ao estudo destas relações e seus "paradigmas" fundadores precisa ser recuperado. Não no sentido do que foi perdido, mas enquanto essência mesma do processo de construção do que chamamos de conhecimento.


Sistema educacional internacionalizado e padronizado por
índices de desenvolvimento descolados das necessidades
humanas fundamentais: eis a nossa ciência aplicada

Padrões de qualidade
O sentido de eficácia deste modelo mobilizador depende de sua tangibilidade. É como se as políticas que o movimentam perdessem a dinâmica da criação. São políticas de controle, forjadas para impor a aderência ao modelo. Sempre me pergunto: uma prova (apenas um dos instrumentos de avaliação disponíveis) serve para ranquear níveis de capacidade de resposta a determinados problemas (muitos deles descolados do cotidiano de quem deve dar as respostas) ou para verificar as perspectivas em termos de solução? Para o modelo mobilizador em questão, melhor que seja para responder a um padrão considerado ideal.

Etimologicamente, o termo qualidade confere ao que observamos uma propriedade. Elementos, digamos, característicos. Não há, portanto, julgamentos a priori quando o termo qualidade é aplicado em seu sentido etimológico. Todos os objetos e fenômenos têm suas qualidades, suas características, seus próprios elementos, sua própria constituição. A ideia de qualidade neste contexto não diz respeito à excelência, tampouco a parâmetros de comparação; é atributo, não atribuição de juízos de valor. Políticas de qualificação alinhadas com esta concepção poderiam partir do reconhecimento do que é próprio àquilo que se busca qualificar e isso exige um outro tipo de avaliação.

Estruturada sobre o modelo mobilizador em questão, a ideia de qualidade ganha outra conotação. Fruto de sistemas de produção focados na eficiência dos resultados, o termo qualidade está associado à melhor relação entre custos e benefícios. Há uma economia de escalas pré-determinadas sobre a qual se estrutura todo o sentido de qualificação. Quanto mais no topo do ranking, muito melhor. As agências reguladoras do Ministério da Educação têm aprimorado as propostas que orientam os ciclos avaliativos das áreas de formação e de conhecimento. Mas não escapam à ideia de qualidade como controle e condução dos processos educacionais a um ideal projetado em função do modelo mobilizador.

Os critérios adotados no processo de verificação dos padrões de qualidade não abrem espaço para reconhecer as características, as propriedades específicas das instituições de ensino, seus cursos, programas, seus professores e estudantes. A educação no Brasil não parece interessada em rever os paradigmas sobre os quais assentam-se os parâmetros que ora são adotados para mensurar a verificação de seu desempenho. Estatísticas, quantificações, capacidade de resposta, todas as referências à proposta de qualificação do sistema educacional brasileiro sustentam-se sobre o "paradigma" da sociedade do conhecimento e sua economia de escalas pré-determinadas.


Race to Nowhere: os não lugares estão expressos na relação entre a educação, a ciência
aplicada e uma escala de valores sustentada pela economia da sociedade do conhecimento

Outros possíveis disponíveis
Para Isabelle Stengers, o modelo mobilizador reprime outros possíveis disponíveis, justamente porque não põe em evidência a construção de sua existência enquanto modelo. Internacionalizada, estruturada sobre a ciência associada ao progresso e à racionalidade operatória, fiel à tecnologia ideologizada, a educação ainda está fundamentada nas respostas necessárias aos lugares de ocupação e seus critérios de qualidade. A qualidade do ensino, por exemplo, está vinculada ao ranking de avaliação estatística; mesmo que efetivamente não se aprenda nada de significativo além de dar respostas ao sistema.

Essa discussão não é nova, mas parece estar saindo dos círculos especializados. Recentemente, nos Estados Unidos, uma advogada e "mãe preocupada" ganhou notoriedade em função de um documentário chamado Race to Nowhere. Vicki Abeles trata da "cultura da alta performance", associando a corrida desenfreada por educação de "qualidade" à competitividade econômica e suas propriedades excludentes. Race to Nowhere propõe o debate (e as sessões em salas de cinema estadunidenses têm propiciado isso) sobre a agenda das novas gerações e o tipo de resposta que se pede a elas.

A tradução literal do documentário ("Corrida para Lugar Nenhum") pede outras interpretações. Se considerarmos que o filme procura demonstrar o excessivo peso dado às provas no contexto da formação, a obsessiva corrida pela disputa aos lugares de elite no sistema educacional e a obscura relação entre titulações e estes lugares de ocupação, podemos afirmar que os laços, as memórias compartilhadas e as histórias construídas coletivamente esvaem-se diante de um modelo mobilizador fomentado pela competitividade e pelo ranqueamento da vida. Siginifca dizer que o "lugar nenhum" sugerido pelo filme é um lugar específico, um não lugar. Quero dizer, um lugar cuja qualidade é a de não oferecer possibilidade de análise sobre a construção de sua existência.

No Brasil, em 10 anos dobramos o número de mestres e doutores e os artigos científicos são muito mais numerosos; há muito mais intercâmbio científico de pesquisadores brasileiros com os de países com tradição em práticas de investigação e produção científica; cresceram os programas de excelência na pós-graduação. Tudo isso sem que houvesse mudanças significativas em termos de desenvolvimento humano ou mesmo tecnológico. Apenas uma elite desfruta desses pseudoavanços. Não, não falamos da elite política. É de uma elite "intelectual-acadêmica" encastelada em "instituições de excelência" ou agências reguladoras que falamos; uma elite que entendeu bem a moeda do modelo mobilizador e se esforça para manter os padrões de qualidade para as respostas ao sistema.

Que fique claro, não estamos fazendo juízos de valor; apenas atestando as propriedades de um sistema, seus mecanismos e protagonistas. Alimentar a corrida para não lugares não é o passatempo consciente dessa elite "intelectual-acadêmica"; é sua própria visão de mundo. É o que a qualifica.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Nizeta e Ronaldinho Gaúcho: duas faces, duas épocas, uma só moeda

Vi Nizeta jogar uma única vez no início da década de 70. Aos 62 anos, participou da Copa Arizona, um supercampeonato de futebol amador organizado pela Gazeta Esportiva com apoio da Souza Cruz. Foi, inclusive, homenageado por ser o atleta mais velho na competição. Ele gostava de ser lembrado; bajulado não. Era um ranzinza de coração mole, daqueles que não aceitam qualquer coisa fora do seu prisma de visão sobre o mundo mas são sensíveis às mazelas que vêem. E sua trajetória pelo esporte tem um pouco a ver com isso.

Foi jogador, treinador e dirigente do Avaí, time que o lançou, por um longo tempo. De 1938 a 1952, como meia-atacante, conquistou títulos importantes, transformou-se num dos maiores artilheiros do clube, vestiu a camisa da seleção estadual e figura nos melhores times imaginários, montados com jogadores que fizeram história nos gramados de Santa Catarina. Sua vida no esporte é cheia de superlativos, a pessoal nem tanto. Funcionário público federal, conciliava o futebol com os afazeres de contador. Não enriqueceu mas morreu com dignidade suficiente para pagar as despesas com doenças que a inanição o fez acumular depois da aposentadoria.

Nizeta, o genro e cronista esportivo Nimar, e a neta Cristina.
Singela despedida nos anos 80. O "estádio" na foto deu lugar
ao primeiro shopping da cidade de Florianópolis.

Nizeta era meu avô. E é assim que gosto de me lembrar dele. Ao longo de minha curta passagem pelo jornalismo esportivo, cerca de uma década, me perguntava porque não escrever sobre ele. Os parentes próximos ainda hoje me cobram. No fundo, sempre tive a resposta: não há porque alimentar a idolatria de quem viveu abominando isso. Não quero transformá-lo no que ele nunca foi; um cara humano e cheio de defeitos não combina com atletas perfeitos, encantadores. Prefiro a memória que puder guardar de um avô do que a imortalidade de um "craque do passado".

-- Desculpa, vô! Carrego em mim a tua ranzinzisse.

Era necessário exorcizar esse demônio. O exercício jornalístico não me permitia o conto em primeira pessoa. Não nutri suficientemente a alma de um Nelson Rodrigues. Fui condescendente demais com os ensinamentos modernos das técnicas implacáveis. Falar sobre meu avô é falar de mim mesmo. A primeira pessoa está ali, às vezes escondida sob um estilo textual de distanciamento, mas está ali. Minha única alternativa seria transformar Nizeta numa "marca", num produto; e este não seria mais meu avô. Tamanha objetividade não me é possível.

Pequenos troféus e medalhas sobre o peito
simbolizam as conquistas de um atleta que
marcou sua época. Nada tão singelo.

E é sobre essa tal objetividade que desejo falar. No Jornalismo contemporâneo ela é o que deseja matar: a própria alma. Nada mais pobre. Volto a Nelson Rodrigues:
(...) o jornalista que tem o culto do fato é profissionalmente um fracassado. Sim, amigos, o fato em si mesmo vale pouco ou quase nada. O que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação. (...) ai do repórter no dia em que fosse um reles e subserviente reprodutor do fato. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento, e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar. [Manchete Esportiva, 31/3/1956 - Republicada em A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol, brilhante seleção feita por Ruy Castro e editada pela Companhia das Letras em 1994].
Estamos, eu e Nelson Rodrigues, falando de jornalismo esportivo. Ou melhor, estamos falando do esporte recriado pela mídia. Nos tempos de Nelson, a dramaticidade do relato passional servia de marketing para lotar eventos. Pelo acréscimo da imaginação a palavra (impressa ou falada) descrevia o que ninguém podia ver, "servia para aumentar a idolatria", de acordo com Paulo Vinícius Coelho no livro homônimo ao tipo de Jornalismo a que nos referimos; "seres mortais alçados da noite para o dia à condição de semideuses" alimentavam uma rica indústria.

Nizeta também teve, em sua época, seus Nelsons Rodrigues; vozes midiatizadas que o idolatraram a ponto de seu nome transcender sua vida. Por opção, contudo, Nizeta preferiu continuar mortal. Ser levado à semidivindade pedia sacrifícios que não podia ou não queria fazer. Uma escolha e tanto: afastar-se da mídia e do clube representou a cisão necessária entre o nome esportivo e a pessoa. Os que gostam de futebol sabem quem foi Nizeta; só não conseguiriam reconhecê-lo na rua.

Retórica outra, mesma indústria. Para o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, cuja dimensão poética é mais contemporânea, a
história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. (...) o futebol condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. (...) O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. [Futebol ao sol e à sombra, editado pela L&MP em 2002].
Tamanho espetáculo foi protagonizado agora por Flamengo e Ronaldinho Gaúcho. Negócio de milhões de dólares sustentado pela mídia e por uma indústria que, já há algum tempo, busca valorizar a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Ronaldo, Adriano e Robinho já fizeram parte do rol de produtos usados para este fim. Não se faz uma negociação dessas sem o tempo necessário de exposição da imagem do jogador e dos clubes envolvidos, sem entrevistas coletivas organizadas para não se dizer nada, pressões de toda a sorte manipuladas para envolver paixões... Todos ganham, mesmo quem "perde". Importa a imagem autêntica e alvar dos acontecimentos, como temia Nelson Rodrigues.


Antes mesmo de vestir a camisa do Flamengo, Ronaldinho Gaúcho pode ser visto
fazendo gols pelo novo clube. O acréscimo de imaginação, outrora expresso em
crônicas inteligentes e bem humoradas, tem novas formas de materialização

Surpreende, contudo, a passividade dos jornalistas esportivos. A entrevista coletiva de Ronaldinho Gaúcho pós-negociação é marcada por um "cerco" que em outros segmentos da imprensa seria tratado como censura. Perguntas enviadas com antecedência por e-mail, selecionadas por assessores do Flamengo e feitas ao atleta por um porta-voz; o cenário é o requinte de uma indústria que tem aprendido a valorizar a própria imagem e a fazer marketing com riscos cada vez menores para seus investimentos. A retórica jornalística sobre esporte hoje quase já não vem carregada de poesia; o excesso de imagens, de exposição da marca fala por si mesmo. Que jornalista viraria as costas para a entrevista coletiva mais esperada do momento? Melhor submeter-se às regras. Galeano está coberto de razão; o jogo agora é outro. Como diz Paulo Vinícius Coelho,
A única maneira de mostrar que o esporte é viável, é mostrar que o jornalismo esportivo não é feito apenas por esporte. [Jornalismo Esportivo, publicado pela Contexto em 2003]

Ricos em superlativos, os símbolos criados pela mídia são hoje naturalizados
por apaixonados pelo esporte e seus ídolos. Nada mais objetivo: a marca
Ronaldinho Gaúcho precisa impulsionar um mercado periférico de produtos

As fotos de família usadas para ilustrar meus argumentos são uma lembrança, parca lembrança do futebol recriado por uma narrativa mais artesanal; tão artesanal quanto as homenagens à Nizeta, ignoradas pela grande mídia. Ronaldinho Gaúcho dispensa qualquer narrativa acrescida de imaginação; há imagens de sobra para ilustrá-lo, sejam reais ou virtuais. Uma coisa entre ambos, no entanto, é semelhante ainda que por razões diferentes: ambos tiveram na mídia esportiva o ponto de referência para separar nome e pessoa, vida esportiva e vida pessoal. Um para não virar negócio; o outro para negociar o próprio nome. O jornalismo esportivo prefere a segunda escolha e dedica-se a manter vivos os que aceitam jogar o jogo.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Educar pela pesquisa é educar para a Ciência?

O amigo e professor Daniel Izidoro refere-se à tecnologia sempre como fenômeno da Cultura. Pode parecer óbvio mas esse aspecto antropomórfico tende a desaparecer em função da natureza das relações que engendram o "novo", que fomentam a "inovação". A tecnologia no mundo contemporâneo, como argumenta o filósofo e cientista político Pierre Musso, é uma ideologia; é a própria utopia de transformação social. As ferramentas de transformação das relações sociais esgotam-se como próteses da sociedade mesma. Faz-se da cultura um fenômeno da Tecnologia.

Mário Sérgio Cortella chama de antropolatria essa adoração pela exuberância da tecnologia e pelo conhecimento científico descolado das questões humanas essenciais. A natureza ferramental da tecnologia deu lugar à sua finalidade última de justificar-se pela própria existência. Os artefatos tecnológicos contemporâneos carregam em si mesmos o tempo necessário para fazer do próprio descarte o fundamento das supostas transformações. E a Ciência? O conhecimento decorrente de seus métodos de investigação tem ficado enclausurado no ambiente que o separa dos outros possíveis disponíveis. Diríamos, há uma espécie de segregação intelectual que orienta uma indústria do conhecimento.


Na base desta indústria está o que os cientistas e nós, acadêmicos, chamamos de pesquisa. Nela depositam-se os investimentos para promover a "inovação", inclusos todos os valores semânticos possíveis ao termo. Em entrevista recente, o ministro da Ciência e Tecnologia Aloizio Mercadante expôs as áreas potenciais para o Brasil que se avizinha e, timidamente, faz alusões a algumas políticas de investimento em pesquisa e desenvolvimento.
A primeira prioridade é expandir, melhorar a formação de recursos humanos. Nós formávamos 5 mil doutores e mestres em 1987. Em 2009, estávamos formando 50 mil mestres e doutores, mas ainda estamos abaixo da média internacional, especialmente em algumas áreas. Nós formamos um engenheiro para cada 50 formandos, a Coreia tem 1 engenheiro para cada 4 formandos. Segundo, aprofundar a pesquisa. Na inovação, temos de ter uma visão sistêmica, que articule todos os agentes e com atenção especial para as cadeias que tem grande potencial inovador. (...) Uma das metas é transformar a Finep numa instituição financeira, para aumentar a capacidade de financiamento, tanto de projetos reembolsáveis como não reembolsáveis, teria muito mais capacidade de alavancagem, inclusive com recursos de mercado. (...) As empresas brasileiras ainda investem pouco em pesquisa e desenvolvimento: 0,51% do PIB. O Japão tem investimento de 2,7% do PIB, só as empresas. (...) Nós queremos fazer a repatriação de talentos brasileiros que saíram nas épocas difíceis. Só professores nas universidades americanas, em exercício, são cerca de 3.000. É bom que tenha gente nos principais centros, na fronteira do conhecimento. Mas, além de atrair talentos, estamos precisando de técnicos, engenheiros, não só repatriar, como atrair talentos estrangeiros que queiram vir para cá. Vivemos durante um período uma diáspora de talentos, hoje somos um imã.
Interessante que estejamos pensando finalmente em superar o colonialismo científico. O problema da visão sistêmica é que ela não alcança os espaços vazios dentro de suas próprias fronteiras nem o horizonte diante dos olhos. A pesquisa, no contexto que alinhavamos, é um capital riquíssimo para se mensurar o lugar de ocupação no ranking geopolítico e os rendimentos deste capital no mercado de ações. O desenvolvimento "prometido" pelo investimento público em mestres e doutores, pensado isoladamente, pode efetivamente gerar desenvolvimento. Falta-nos, contudo, um projeto de sociedade, que tenha por princípio a solidariedade diante das diferenças.

Recentemente o Banco Mundial divulgou relatório avaliando que os investimentos em educação no Brasil cresceram mas não produziram os resultados esperados. Continuamos respondendo aos critérios de competitividade com a visão sistêmica de articular diversos atores sem mudança de regras. Os sistemas até aqui engendrados vão muito bem, obrigado; basta o esforço de articulá-los. Como a tecnologia, os sistemas se bastam. Mas a pergunta é: queremos estar no lugar dos países ditos desenvolvidos? É esse nosso objetivo? Não admira a miopia diante dos horizontes. Nosso apartheid social, como define o ministro Mercadante, está longe de ser diluído por esta via.

A moeda "pesquisa"
Pedro Demo estabelece uma diferença para o termo que não esgota o debate, obviamente. Mas é suficiente para o argumento ora desenvolvido. A pesquisa é concebida por ele como princípio científico e como princípio educativo. Saber construir conhecimento, reconhecer o legado intelectual que impulsionou a humanidade em seus "avanços" compõem a primeira concepção. E dela decorre hoje a ideia de "inovação", cujo processo não escapa ao jogo político das relações de interesse em determinados projetos.

Nesta direção estão indo todas as grandes instituições de ensino superior brasileiras que pretendem cultivar e manter o status de universidade. É, aliás, o que reza a legislação educacional: universidade tem de ter pesquisa. Mas a pesquisa com essa concepção é cara, depende de indústria própria ou financiamento do Estado. Portanto, para subsidiá-la são necessários resultados mensuráveis, retorno num tempo adequado ao capital investido e aplicação dos conhecimentos construídos. A tecnologia fornece possibilidade para a materialização desses quesitos.

Uma segunda concepção de Pedro Demo sustenta a pesquisa como método formativo. É pelas práticas de investigação, defende o professor, que se deve estimular a aprendizagem. Significa inserir a pesquisa num plano bem mais modesto em termos de resultados quantitativos. Pelo menos no curto prazo. Como princípio educativo, a atitude cotidiana de relacionar objetos e conceitos, de reconhecer e mobilizar recursos para solucionar problemas é que nos direciona para o bom apredizado. Também há aqui a proposição de "saber construir conhecimento", conhecer métodos como forma de qualificar os processos de aprendizagem, mais autônomos em relação à aula tradicional.


Seja como princípio científico seja como princípio educativo, não se faz pesquisa sem um ambiente adequado. No primeiro caso, identificar as oportunidades e investir nas possibilidades de concretizá-las é um passo. Mas ainda estamos inseridos num contexto de competitividade, numa economia em que o capital intelectual é o capital político. No segundo, dinamizar as relações entre professor e estudante e promover espaços de aprendizagem que conjuguem ação e reflexão também é um passo. Entretanto, há pouquíssimas experiências de ruptura com a segregação intelectual que institui a diferença entre os que aprendem bem, os que aprendem mal e os que não aprendem nunca.

Educação para a Ciência
Educar pela pesquisa não significa necessariamente formar pesquisadores. É preciso entender a Ciência também como fenômeno da Cultura. As práticas de investigação, quando incorporadas aos processos de formação cotidianamente, auxiliam na organização dos estudos, dão autonomia à aprendizagem, fornecem métodos para a elaboração dos argumentos que traduzem a realidade e proporcionam a convivência com outros pontos de vista sobre um mesmo fenômeno. Com diferentes graus de complexidade, a pesquisa é uma atividade cujo valor não se resume aos resultados obtidos através da "profissionalização" de seus métodos.

Miguel Nicolelis, renomado neurocientista, desenvolve um projeto de educação científica em Natal e Macaíba, no Rio Grande Norte. Cerca de mil crianças de escolas municipais e estaduais entram em contato com a geração do conhecimento em estado latente. Um dos principais objetivos do projeto é mostrar que através do método científico de investigação se pode "protagonizar a própria educação". A Ciência é "ferramenta pedagógica" para o exercício do pensar o mundo e elaborar as teorias que nos ajudam a entendê-lo.


Numa mesma direção, a organização Casa da Arte de Educar desenvolve projetos que propõem a investigação sobre a realidade dos lugares em que vivem seus estudantes. Um dos exemplos é o Núcleo de Educação para as Ciências. As atividades por ele desenvolvidas buscam valorizar as "tecnologias populares" e aproximá-las do conhecimento científico. Ferramentas aparentemente simples, usadas para solucionar problemas específicos, característicos das regiões em que a organização atua, são referência para a busca de explicações sobre seus contextos sociais.

Diferentes saberes propõem leituras sobre o cotidiano dos lugares investigados e as áreas do conhecimento escolar compõem um cenário para além de suas fronteiras. Tal iniciativa foi incorporada a programas financiados pelo Governo Federal em função de sua proposta de dar sentido aos currículos. A organização atende diretamente a crianças, jovens e adultos no Morro da Mangueira e no Morro do Macaco, periferia do Rio de Janeiro. A metodologia desenvolvida ao longo dos 11 anos de ação nas favelas do Rio é usada nas escolas públicas de tempo integral ligadas ao programa Mais Educação.


Projetos desta natureza ainda convivem com a formalidade das aulas tradicionais, são complementares aos currículos que estabelecem arbitrariamente o que deve ser ensinado; funcionam no horário em que não há "aula". Falar em pesquisa num contexto assim é reconhecer que estamos engatinhando, se é que já começamos a nos mover. A pesquisa de ponta, essa associada à "inovação" por meio da tecnologia ainda ideologizada, precisa ser pensada como decorrência de ambientes arejados, livres em fluxo de ideias, abertos a negociações constantes quanto aos resultados a serem alcançados, inseridos na realidade de quem os ocupa.

A tecnologia, para ser vista como fenômeno da Cultura, precisa ser desideologizada. As práticas de investigação associadas aos lugares em que são realizadas podem promover uma concepção de desenvolvimento em que a tecnologia retome sua função ferramental de apoio às soluções propostas para determinados problemas. Mais do que fazer pesquisa é sobre a própria ideia de pesquisa que precisamos nos debruçar. E as instituições de ensino precisam aprender muito ainda sobre isso. Quem sabe investigando as próprias práticas.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O técnico, a empresa, o computador e a geladeira


Entre o Natal e o Revéllion, duas situações marcaram de modo singular como ainda caracterizamos a formação para postos de trabalho em função da ocupação e seu nível de complexidade. E por que singular? Há nas duas situações algo de síntese que pode materializar políticas universais no que dizem respeito à educação. Não se está usando o termo educação no sentido genérico; o estamos associando à preocupação com a formação nas dimensões sociocultural e sociotécnica (para ficarmos com as que mais se adequam ao contexto).

Vamos às situações. Em viagem aos Estados Unidos, comprei um MacBook. Isso há três anos. Antes de vencer a garantia, o topcase do computador apresentava rachaduras. Numa primeira tentativa, levei-o a uma assistência técnica, a única da Apple emFlorianópolis até aquele momento. A resposta foi rápida: uso inadequado do equipamento; portanto, não valeria a pena o transtorno de enviar à matriz nos Estados Unidos as informações para a troca do topcase. Aceitei a explicação dois anos atrás.

Há algumas semanas fui em outra loja autorizada, aqui mesmo em Florianópolis, comprar um novo computador. Meu antigo MacBook dei ao meu filho. Por desencargo de consciência, fiz a pergunta a respeito da possibilidade da troca do topcase. Surpresa: não só era possível, como o procedimento levou menos de uma semana, incluindo o envio das informações para a matriz nos Estados Unidos e uma "pesquisa" de satisfação me enviada por e-mail após a conclusão do serviço.

No mesmo período, compramos uma geladeira da Electrolux direto da fábrica, através de um sistema interessante de indicações compartilhadas de compradores. O eletrodoméstico não funcionou adequadamente. São mais ou menos dez dias de indas e vindas da assistência técnica. Duas "placas" e um "sensor" foram trocados e, no momento em que escrevo este texto, espero com ansiedade um sopro de vida do equipamento. O diagnóstico foi decretado: "se não funcionar agora..." só a troca (e que 2011 comece bem!).

Diante do problema, algumas ligações para a assistência técnica, outras para a própria Electrolux. Nenhum contato nos foi feito espontaneamente. O laudo técnico é a única comprovação de necessidade da troca da geladeira. E, em dez dias, ainda não saiu. O mais engraçado: dá para ficar sem computador; sem geladeira, difícil. Três visitas técnicas depois, explicações que mal conseguimos decifrar e respostas pouco convincentes para leigos, resta apenas a esperança: sobrevida ou troca.
O que têm as dimensões de formação a ver com isso?

É preciso reconhecer que a qualificação para os postos de trabalho aqui ilustrados tem diferenças. O nível de complexidade tecnológica de um computador, em tese, é maior que o de uma geladeira. Em tese. A questão tem mais a ver com procedimentos, com aquilo que relacionamos em primeira instância a atitudes, a capacidades de resposta aos problemas. Neste aspecto, as duas empresas em questão mostram comportamento idêntico ao de seus técnicos. Significa dizer que o nível de desempenho técnico, em ambos os casos, atende ao nível de qualificação exigido pelas empresas para a função.

Parece evidente também que, no caso do computador, o técnico tem outras qualificações, para além da própria função. Bem informado a respeito dos produtos com os quais lida, bem articulado nas explicações, preocupado em usar uma linguagem mais próxima possível dos consumidores leigos (e este não é bem o meu caso)... a postura fala por si mesma. Mas há um componente ainda mais importante: ao receber de volta o computador "consertado", comentei sobre a negativa da outra loja autorizada em fazer os reparos ainda com o equipamento na garantia. O técnico tratou logo de, com explicações cuidadosas, levantar uma série de razões possíveis para "defender" a "concorrente".

No caso da geladeira, ao contrário, as razões para o não funcionamento do eletrodoméstico eram sempre colocadas sobre os ombros de terceiros. Os "culpados" pelo problema tinham como identidade o pronome na terceira pessoa do plural. Este componente ético é significativo. Primeiro, ilustra bem o tipo de preparo para lidar com situações-problema. Não há responsabilidades a assumir a não ser as imediatas, as que estão relacionadas a habilidades meramente funcionais, circunstanciais. Seguidos os procedimentos-padrão, os que constam dos manuais de treinamento, o resto é problema dos outros.

A dimensão sociotécnica no processo de formação está relacionada ao mundo do trabalho mas não se resume à funcionalidade dos lugares de ocupação determinados pelo mercado. Reconhecer que os postos de trabalho são fruto, resultam de relações sociais em todas as suas perspectivas é seu principal fundamento. Neste aspecto, o técnico de computador aqui descrito parece mais preparado para lidar com as profundas mudanças que estão por vir. O técnico da geladeira, entretanto, parece incapaz de identificar contextos que fujam à aparência imediata do seu lugar de ocupação. Quanto às empresas, bem, vale um outro texto.

Já na dimensão sociocultural, o aspecto ético, os procedimentos observáveis, os diálogos e as formas de expressão (descritas pauperrimamente aqui) propõem dois tipos de técnico. Mas é importante salientar que tais características também dizem respeito ao lugar que ambos ocupam. Consegue-se perceber o que lê, tem argumentos, parece satisfeito com sua situação atual, responde por seus atos, assume suas responsabilidades. Tal dimensão ainda não compõe o cenário da economia contemporânea nem mesmo faz parte do contexto formal de formação para o mundo do trabalho. Mesmo os cursos de nível superior, em sua grande parte, não têm se preocupado com isso.

Mensurar os recursos cognitivos e materiais disponíveis para solucionar problemas é uma das habilidades fundamentais no mundo contemporâneo. Mas isolada, descontextualizada, circunscrita aos manuais de procedimento-padrão (seja no trabalho ou na vida) esta habilidade não nos torna capazes de enfrentar o cotidiano naquilo que ele nos apresenta de inusitado. Para o técnico da geladeira, foi a primeira vez que um eletrodoméstico apresentou tanta dificuldade quanto à perspectiva de solução. Eis aí o problema: talvez, nas três visitas que me foram feitas, um tempo para pensar nas possibilidades fosse mais importante do que trocar peças supostamente defeituosas.