terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Nizeta e Ronaldinho Gaúcho: duas faces, duas épocas, uma só moeda

Vi Nizeta jogar uma única vez no início da década de 70. Aos 62 anos, participou da Copa Arizona, um supercampeonato de futebol amador organizado pela Gazeta Esportiva com apoio da Souza Cruz. Foi, inclusive, homenageado por ser o atleta mais velho na competição. Ele gostava de ser lembrado; bajulado não. Era um ranzinza de coração mole, daqueles que não aceitam qualquer coisa fora do seu prisma de visão sobre o mundo mas são sensíveis às mazelas que vêem. E sua trajetória pelo esporte tem um pouco a ver com isso.

Foi jogador, treinador e dirigente do Avaí, time que o lançou, por um longo tempo. De 1938 a 1952, como meia-atacante, conquistou títulos importantes, transformou-se num dos maiores artilheiros do clube, vestiu a camisa da seleção estadual e figura nos melhores times imaginários, montados com jogadores que fizeram história nos gramados de Santa Catarina. Sua vida no esporte é cheia de superlativos, a pessoal nem tanto. Funcionário público federal, conciliava o futebol com os afazeres de contador. Não enriqueceu mas morreu com dignidade suficiente para pagar as despesas com doenças que a inanição o fez acumular depois da aposentadoria.

Nizeta, o genro e cronista esportivo Nimar, e a neta Cristina.
Singela despedida nos anos 80. O "estádio" na foto deu lugar
ao primeiro shopping da cidade de Florianópolis.

Nizeta era meu avô. E é assim que gosto de me lembrar dele. Ao longo de minha curta passagem pelo jornalismo esportivo, cerca de uma década, me perguntava porque não escrever sobre ele. Os parentes próximos ainda hoje me cobram. No fundo, sempre tive a resposta: não há porque alimentar a idolatria de quem viveu abominando isso. Não quero transformá-lo no que ele nunca foi; um cara humano e cheio de defeitos não combina com atletas perfeitos, encantadores. Prefiro a memória que puder guardar de um avô do que a imortalidade de um "craque do passado".

-- Desculpa, vô! Carrego em mim a tua ranzinzisse.

Era necessário exorcizar esse demônio. O exercício jornalístico não me permitia o conto em primeira pessoa. Não nutri suficientemente a alma de um Nelson Rodrigues. Fui condescendente demais com os ensinamentos modernos das técnicas implacáveis. Falar sobre meu avô é falar de mim mesmo. A primeira pessoa está ali, às vezes escondida sob um estilo textual de distanciamento, mas está ali. Minha única alternativa seria transformar Nizeta numa "marca", num produto; e este não seria mais meu avô. Tamanha objetividade não me é possível.

Pequenos troféus e medalhas sobre o peito
simbolizam as conquistas de um atleta que
marcou sua época. Nada tão singelo.

E é sobre essa tal objetividade que desejo falar. No Jornalismo contemporâneo ela é o que deseja matar: a própria alma. Nada mais pobre. Volto a Nelson Rodrigues:
(...) o jornalista que tem o culto do fato é profissionalmente um fracassado. Sim, amigos, o fato em si mesmo vale pouco ou quase nada. O que lhe dá autoridade é o acréscimo da imaginação. (...) ai do repórter no dia em que fosse um reles e subserviente reprodutor do fato. A arte jornalística consiste em pentear ou desgrenhar o acontecimento, e, de qualquer forma, negar a sua imagem autêntica e alvar. [Manchete Esportiva, 31/3/1956 - Republicada em A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol, brilhante seleção feita por Ruy Castro e editada pela Companhia das Letras em 1994].
Estamos, eu e Nelson Rodrigues, falando de jornalismo esportivo. Ou melhor, estamos falando do esporte recriado pela mídia. Nos tempos de Nelson, a dramaticidade do relato passional servia de marketing para lotar eventos. Pelo acréscimo da imaginação a palavra (impressa ou falada) descrevia o que ninguém podia ver, "servia para aumentar a idolatria", de acordo com Paulo Vinícius Coelho no livro homônimo ao tipo de Jornalismo a que nos referimos; "seres mortais alçados da noite para o dia à condição de semideuses" alimentavam uma rica indústria.

Nizeta também teve, em sua época, seus Nelsons Rodrigues; vozes midiatizadas que o idolatraram a ponto de seu nome transcender sua vida. Por opção, contudo, Nizeta preferiu continuar mortal. Ser levado à semidivindade pedia sacrifícios que não podia ou não queria fazer. Uma escolha e tanto: afastar-se da mídia e do clube representou a cisão necessária entre o nome esportivo e a pessoa. Os que gostam de futebol sabem quem foi Nizeta; só não conseguiriam reconhecê-lo na rua.

Retórica outra, mesma indústria. Para o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, cuja dimensão poética é mais contemporânea, a
história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. (...) o futebol condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. (...) O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. [Futebol ao sol e à sombra, editado pela L&MP em 2002].
Tamanho espetáculo foi protagonizado agora por Flamengo e Ronaldinho Gaúcho. Negócio de milhões de dólares sustentado pela mídia e por uma indústria que, já há algum tempo, busca valorizar a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Ronaldo, Adriano e Robinho já fizeram parte do rol de produtos usados para este fim. Não se faz uma negociação dessas sem o tempo necessário de exposição da imagem do jogador e dos clubes envolvidos, sem entrevistas coletivas organizadas para não se dizer nada, pressões de toda a sorte manipuladas para envolver paixões... Todos ganham, mesmo quem "perde". Importa a imagem autêntica e alvar dos acontecimentos, como temia Nelson Rodrigues.


Antes mesmo de vestir a camisa do Flamengo, Ronaldinho Gaúcho pode ser visto
fazendo gols pelo novo clube. O acréscimo de imaginação, outrora expresso em
crônicas inteligentes e bem humoradas, tem novas formas de materialização

Surpreende, contudo, a passividade dos jornalistas esportivos. A entrevista coletiva de Ronaldinho Gaúcho pós-negociação é marcada por um "cerco" que em outros segmentos da imprensa seria tratado como censura. Perguntas enviadas com antecedência por e-mail, selecionadas por assessores do Flamengo e feitas ao atleta por um porta-voz; o cenário é o requinte de uma indústria que tem aprendido a valorizar a própria imagem e a fazer marketing com riscos cada vez menores para seus investimentos. A retórica jornalística sobre esporte hoje quase já não vem carregada de poesia; o excesso de imagens, de exposição da marca fala por si mesmo. Que jornalista viraria as costas para a entrevista coletiva mais esperada do momento? Melhor submeter-se às regras. Galeano está coberto de razão; o jogo agora é outro. Como diz Paulo Vinícius Coelho,
A única maneira de mostrar que o esporte é viável, é mostrar que o jornalismo esportivo não é feito apenas por esporte. [Jornalismo Esportivo, publicado pela Contexto em 2003]

Ricos em superlativos, os símbolos criados pela mídia são hoje naturalizados
por apaixonados pelo esporte e seus ídolos. Nada mais objetivo: a marca
Ronaldinho Gaúcho precisa impulsionar um mercado periférico de produtos

As fotos de família usadas para ilustrar meus argumentos são uma lembrança, parca lembrança do futebol recriado por uma narrativa mais artesanal; tão artesanal quanto as homenagens à Nizeta, ignoradas pela grande mídia. Ronaldinho Gaúcho dispensa qualquer narrativa acrescida de imaginação; há imagens de sobra para ilustrá-lo, sejam reais ou virtuais. Uma coisa entre ambos, no entanto, é semelhante ainda que por razões diferentes: ambos tiveram na mídia esportiva o ponto de referência para separar nome e pessoa, vida esportiva e vida pessoal. Um para não virar negócio; o outro para negociar o próprio nome. O jornalismo esportivo prefere a segunda escolha e dedica-se a manter vivos os que aceitam jogar o jogo.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Educar pela pesquisa é educar para a Ciência?

O amigo e professor Daniel Izidoro refere-se à tecnologia sempre como fenômeno da Cultura. Pode parecer óbvio mas esse aspecto antropomórfico tende a desaparecer em função da natureza das relações que engendram o "novo", que fomentam a "inovação". A tecnologia no mundo contemporâneo, como argumenta o filósofo e cientista político Pierre Musso, é uma ideologia; é a própria utopia de transformação social. As ferramentas de transformação das relações sociais esgotam-se como próteses da sociedade mesma. Faz-se da cultura um fenômeno da Tecnologia.

Mário Sérgio Cortella chama de antropolatria essa adoração pela exuberância da tecnologia e pelo conhecimento científico descolado das questões humanas essenciais. A natureza ferramental da tecnologia deu lugar à sua finalidade última de justificar-se pela própria existência. Os artefatos tecnológicos contemporâneos carregam em si mesmos o tempo necessário para fazer do próprio descarte o fundamento das supostas transformações. E a Ciência? O conhecimento decorrente de seus métodos de investigação tem ficado enclausurado no ambiente que o separa dos outros possíveis disponíveis. Diríamos, há uma espécie de segregação intelectual que orienta uma indústria do conhecimento.


Na base desta indústria está o que os cientistas e nós, acadêmicos, chamamos de pesquisa. Nela depositam-se os investimentos para promover a "inovação", inclusos todos os valores semânticos possíveis ao termo. Em entrevista recente, o ministro da Ciência e Tecnologia Aloizio Mercadante expôs as áreas potenciais para o Brasil que se avizinha e, timidamente, faz alusões a algumas políticas de investimento em pesquisa e desenvolvimento.
A primeira prioridade é expandir, melhorar a formação de recursos humanos. Nós formávamos 5 mil doutores e mestres em 1987. Em 2009, estávamos formando 50 mil mestres e doutores, mas ainda estamos abaixo da média internacional, especialmente em algumas áreas. Nós formamos um engenheiro para cada 50 formandos, a Coreia tem 1 engenheiro para cada 4 formandos. Segundo, aprofundar a pesquisa. Na inovação, temos de ter uma visão sistêmica, que articule todos os agentes e com atenção especial para as cadeias que tem grande potencial inovador. (...) Uma das metas é transformar a Finep numa instituição financeira, para aumentar a capacidade de financiamento, tanto de projetos reembolsáveis como não reembolsáveis, teria muito mais capacidade de alavancagem, inclusive com recursos de mercado. (...) As empresas brasileiras ainda investem pouco em pesquisa e desenvolvimento: 0,51% do PIB. O Japão tem investimento de 2,7% do PIB, só as empresas. (...) Nós queremos fazer a repatriação de talentos brasileiros que saíram nas épocas difíceis. Só professores nas universidades americanas, em exercício, são cerca de 3.000. É bom que tenha gente nos principais centros, na fronteira do conhecimento. Mas, além de atrair talentos, estamos precisando de técnicos, engenheiros, não só repatriar, como atrair talentos estrangeiros que queiram vir para cá. Vivemos durante um período uma diáspora de talentos, hoje somos um imã.
Interessante que estejamos pensando finalmente em superar o colonialismo científico. O problema da visão sistêmica é que ela não alcança os espaços vazios dentro de suas próprias fronteiras nem o horizonte diante dos olhos. A pesquisa, no contexto que alinhavamos, é um capital riquíssimo para se mensurar o lugar de ocupação no ranking geopolítico e os rendimentos deste capital no mercado de ações. O desenvolvimento "prometido" pelo investimento público em mestres e doutores, pensado isoladamente, pode efetivamente gerar desenvolvimento. Falta-nos, contudo, um projeto de sociedade, que tenha por princípio a solidariedade diante das diferenças.

Recentemente o Banco Mundial divulgou relatório avaliando que os investimentos em educação no Brasil cresceram mas não produziram os resultados esperados. Continuamos respondendo aos critérios de competitividade com a visão sistêmica de articular diversos atores sem mudança de regras. Os sistemas até aqui engendrados vão muito bem, obrigado; basta o esforço de articulá-los. Como a tecnologia, os sistemas se bastam. Mas a pergunta é: queremos estar no lugar dos países ditos desenvolvidos? É esse nosso objetivo? Não admira a miopia diante dos horizontes. Nosso apartheid social, como define o ministro Mercadante, está longe de ser diluído por esta via.

A moeda "pesquisa"
Pedro Demo estabelece uma diferença para o termo que não esgota o debate, obviamente. Mas é suficiente para o argumento ora desenvolvido. A pesquisa é concebida por ele como princípio científico e como princípio educativo. Saber construir conhecimento, reconhecer o legado intelectual que impulsionou a humanidade em seus "avanços" compõem a primeira concepção. E dela decorre hoje a ideia de "inovação", cujo processo não escapa ao jogo político das relações de interesse em determinados projetos.

Nesta direção estão indo todas as grandes instituições de ensino superior brasileiras que pretendem cultivar e manter o status de universidade. É, aliás, o que reza a legislação educacional: universidade tem de ter pesquisa. Mas a pesquisa com essa concepção é cara, depende de indústria própria ou financiamento do Estado. Portanto, para subsidiá-la são necessários resultados mensuráveis, retorno num tempo adequado ao capital investido e aplicação dos conhecimentos construídos. A tecnologia fornece possibilidade para a materialização desses quesitos.

Uma segunda concepção de Pedro Demo sustenta a pesquisa como método formativo. É pelas práticas de investigação, defende o professor, que se deve estimular a aprendizagem. Significa inserir a pesquisa num plano bem mais modesto em termos de resultados quantitativos. Pelo menos no curto prazo. Como princípio educativo, a atitude cotidiana de relacionar objetos e conceitos, de reconhecer e mobilizar recursos para solucionar problemas é que nos direciona para o bom apredizado. Também há aqui a proposição de "saber construir conhecimento", conhecer métodos como forma de qualificar os processos de aprendizagem, mais autônomos em relação à aula tradicional.


Seja como princípio científico seja como princípio educativo, não se faz pesquisa sem um ambiente adequado. No primeiro caso, identificar as oportunidades e investir nas possibilidades de concretizá-las é um passo. Mas ainda estamos inseridos num contexto de competitividade, numa economia em que o capital intelectual é o capital político. No segundo, dinamizar as relações entre professor e estudante e promover espaços de aprendizagem que conjuguem ação e reflexão também é um passo. Entretanto, há pouquíssimas experiências de ruptura com a segregação intelectual que institui a diferença entre os que aprendem bem, os que aprendem mal e os que não aprendem nunca.

Educação para a Ciência
Educar pela pesquisa não significa necessariamente formar pesquisadores. É preciso entender a Ciência também como fenômeno da Cultura. As práticas de investigação, quando incorporadas aos processos de formação cotidianamente, auxiliam na organização dos estudos, dão autonomia à aprendizagem, fornecem métodos para a elaboração dos argumentos que traduzem a realidade e proporcionam a convivência com outros pontos de vista sobre um mesmo fenômeno. Com diferentes graus de complexidade, a pesquisa é uma atividade cujo valor não se resume aos resultados obtidos através da "profissionalização" de seus métodos.

Miguel Nicolelis, renomado neurocientista, desenvolve um projeto de educação científica em Natal e Macaíba, no Rio Grande Norte. Cerca de mil crianças de escolas municipais e estaduais entram em contato com a geração do conhecimento em estado latente. Um dos principais objetivos do projeto é mostrar que através do método científico de investigação se pode "protagonizar a própria educação". A Ciência é "ferramenta pedagógica" para o exercício do pensar o mundo e elaborar as teorias que nos ajudam a entendê-lo.


Numa mesma direção, a organização Casa da Arte de Educar desenvolve projetos que propõem a investigação sobre a realidade dos lugares em que vivem seus estudantes. Um dos exemplos é o Núcleo de Educação para as Ciências. As atividades por ele desenvolvidas buscam valorizar as "tecnologias populares" e aproximá-las do conhecimento científico. Ferramentas aparentemente simples, usadas para solucionar problemas específicos, característicos das regiões em que a organização atua, são referência para a busca de explicações sobre seus contextos sociais.

Diferentes saberes propõem leituras sobre o cotidiano dos lugares investigados e as áreas do conhecimento escolar compõem um cenário para além de suas fronteiras. Tal iniciativa foi incorporada a programas financiados pelo Governo Federal em função de sua proposta de dar sentido aos currículos. A organização atende diretamente a crianças, jovens e adultos no Morro da Mangueira e no Morro do Macaco, periferia do Rio de Janeiro. A metodologia desenvolvida ao longo dos 11 anos de ação nas favelas do Rio é usada nas escolas públicas de tempo integral ligadas ao programa Mais Educação.


Projetos desta natureza ainda convivem com a formalidade das aulas tradicionais, são complementares aos currículos que estabelecem arbitrariamente o que deve ser ensinado; funcionam no horário em que não há "aula". Falar em pesquisa num contexto assim é reconhecer que estamos engatinhando, se é que já começamos a nos mover. A pesquisa de ponta, essa associada à "inovação" por meio da tecnologia ainda ideologizada, precisa ser pensada como decorrência de ambientes arejados, livres em fluxo de ideias, abertos a negociações constantes quanto aos resultados a serem alcançados, inseridos na realidade de quem os ocupa.

A tecnologia, para ser vista como fenômeno da Cultura, precisa ser desideologizada. As práticas de investigação associadas aos lugares em que são realizadas podem promover uma concepção de desenvolvimento em que a tecnologia retome sua função ferramental de apoio às soluções propostas para determinados problemas. Mais do que fazer pesquisa é sobre a própria ideia de pesquisa que precisamos nos debruçar. E as instituições de ensino precisam aprender muito ainda sobre isso. Quem sabe investigando as próprias práticas.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O técnico, a empresa, o computador e a geladeira


Entre o Natal e o Revéllion, duas situações marcaram de modo singular como ainda caracterizamos a formação para postos de trabalho em função da ocupação e seu nível de complexidade. E por que singular? Há nas duas situações algo de síntese que pode materializar políticas universais no que dizem respeito à educação. Não se está usando o termo educação no sentido genérico; o estamos associando à preocupação com a formação nas dimensões sociocultural e sociotécnica (para ficarmos com as que mais se adequam ao contexto).

Vamos às situações. Em viagem aos Estados Unidos, comprei um MacBook. Isso há três anos. Antes de vencer a garantia, o topcase do computador apresentava rachaduras. Numa primeira tentativa, levei-o a uma assistência técnica, a única da Apple emFlorianópolis até aquele momento. A resposta foi rápida: uso inadequado do equipamento; portanto, não valeria a pena o transtorno de enviar à matriz nos Estados Unidos as informações para a troca do topcase. Aceitei a explicação dois anos atrás.

Há algumas semanas fui em outra loja autorizada, aqui mesmo em Florianópolis, comprar um novo computador. Meu antigo MacBook dei ao meu filho. Por desencargo de consciência, fiz a pergunta a respeito da possibilidade da troca do topcase. Surpresa: não só era possível, como o procedimento levou menos de uma semana, incluindo o envio das informações para a matriz nos Estados Unidos e uma "pesquisa" de satisfação me enviada por e-mail após a conclusão do serviço.

No mesmo período, compramos uma geladeira da Electrolux direto da fábrica, através de um sistema interessante de indicações compartilhadas de compradores. O eletrodoméstico não funcionou adequadamente. São mais ou menos dez dias de indas e vindas da assistência técnica. Duas "placas" e um "sensor" foram trocados e, no momento em que escrevo este texto, espero com ansiedade um sopro de vida do equipamento. O diagnóstico foi decretado: "se não funcionar agora..." só a troca (e que 2011 comece bem!).

Diante do problema, algumas ligações para a assistência técnica, outras para a própria Electrolux. Nenhum contato nos foi feito espontaneamente. O laudo técnico é a única comprovação de necessidade da troca da geladeira. E, em dez dias, ainda não saiu. O mais engraçado: dá para ficar sem computador; sem geladeira, difícil. Três visitas técnicas depois, explicações que mal conseguimos decifrar e respostas pouco convincentes para leigos, resta apenas a esperança: sobrevida ou troca.
O que têm as dimensões de formação a ver com isso?

É preciso reconhecer que a qualificação para os postos de trabalho aqui ilustrados tem diferenças. O nível de complexidade tecnológica de um computador, em tese, é maior que o de uma geladeira. Em tese. A questão tem mais a ver com procedimentos, com aquilo que relacionamos em primeira instância a atitudes, a capacidades de resposta aos problemas. Neste aspecto, as duas empresas em questão mostram comportamento idêntico ao de seus técnicos. Significa dizer que o nível de desempenho técnico, em ambos os casos, atende ao nível de qualificação exigido pelas empresas para a função.

Parece evidente também que, no caso do computador, o técnico tem outras qualificações, para além da própria função. Bem informado a respeito dos produtos com os quais lida, bem articulado nas explicações, preocupado em usar uma linguagem mais próxima possível dos consumidores leigos (e este não é bem o meu caso)... a postura fala por si mesma. Mas há um componente ainda mais importante: ao receber de volta o computador "consertado", comentei sobre a negativa da outra loja autorizada em fazer os reparos ainda com o equipamento na garantia. O técnico tratou logo de, com explicações cuidadosas, levantar uma série de razões possíveis para "defender" a "concorrente".

No caso da geladeira, ao contrário, as razões para o não funcionamento do eletrodoméstico eram sempre colocadas sobre os ombros de terceiros. Os "culpados" pelo problema tinham como identidade o pronome na terceira pessoa do plural. Este componente ético é significativo. Primeiro, ilustra bem o tipo de preparo para lidar com situações-problema. Não há responsabilidades a assumir a não ser as imediatas, as que estão relacionadas a habilidades meramente funcionais, circunstanciais. Seguidos os procedimentos-padrão, os que constam dos manuais de treinamento, o resto é problema dos outros.

A dimensão sociotécnica no processo de formação está relacionada ao mundo do trabalho mas não se resume à funcionalidade dos lugares de ocupação determinados pelo mercado. Reconhecer que os postos de trabalho são fruto, resultam de relações sociais em todas as suas perspectivas é seu principal fundamento. Neste aspecto, o técnico de computador aqui descrito parece mais preparado para lidar com as profundas mudanças que estão por vir. O técnico da geladeira, entretanto, parece incapaz de identificar contextos que fujam à aparência imediata do seu lugar de ocupação. Quanto às empresas, bem, vale um outro texto.

Já na dimensão sociocultural, o aspecto ético, os procedimentos observáveis, os diálogos e as formas de expressão (descritas pauperrimamente aqui) propõem dois tipos de técnico. Mas é importante salientar que tais características também dizem respeito ao lugar que ambos ocupam. Consegue-se perceber o que lê, tem argumentos, parece satisfeito com sua situação atual, responde por seus atos, assume suas responsabilidades. Tal dimensão ainda não compõe o cenário da economia contemporânea nem mesmo faz parte do contexto formal de formação para o mundo do trabalho. Mesmo os cursos de nível superior, em sua grande parte, não têm se preocupado com isso.

Mensurar os recursos cognitivos e materiais disponíveis para solucionar problemas é uma das habilidades fundamentais no mundo contemporâneo. Mas isolada, descontextualizada, circunscrita aos manuais de procedimento-padrão (seja no trabalho ou na vida) esta habilidade não nos torna capazes de enfrentar o cotidiano naquilo que ele nos apresenta de inusitado. Para o técnico da geladeira, foi a primeira vez que um eletrodoméstico apresentou tanta dificuldade quanto à perspectiva de solução. Eis aí o problema: talvez, nas três visitas que me foram feitas, um tempo para pensar nas possibilidades fosse mais importante do que trocar peças supostamente defeituosas.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Sobre esquinas e manhãs seguintes


Tenho por hábito, vez em quando, fazer leituras aleatórias num mesmo livro. Abrir uma página qualquer e a partir de um ponto qualquer começar uma leitura desprovida de métodos "canonizados". Qualquer livro. É uma dessas atitudes necessárias para manter a saúde mental, sobretudo quando a palavra impressa está em jogo. Fico vagando pelos parágrafos a procura de algo que me fixe por mais tempo. A leitura pode durar uma manhã ou terminar na primeira frase. Divertido; divertido profanar palavras alheias. Os que me lêem agora, à vontade.
"... sem algum outro lugar além de um número específico de próximas esquinas e manhãs seguintes, não há e não pode haver humanidade".
Essa frase surgiu numa destas viagens de profanação. É de Zygmunt Bauman, escrita num livro que ainda não li (pelo menos com método "canonizado"). Engraçado, sempre ele. Uma das coisas a que me proponho mudar em 2011 é abrir espaço para outros "pensamentos". Não que eu vá dispensá-lo; Bauman é, para mim, uma dessas figuras carismáticas cujo pensamento vem carregado de sabedoria. Suas abstrações estão bem aqui ao lado. E isso me conforta: saber que pensar é também agir. As palavras em Bauman têm vida porque as vemos todos os dias nas ruas. Ele não é o único com esta capacidade, claro. É só uma questão de escolha; no atual contexto, aleatória.

Digressões, digressões...

Fiquei imaginando a que outro lugar Bauman poderia estar se referindo. Só consigo ver um número específico de próximas esquinas e manhãs seguintes. Até pensei em usar o método "canonizado" de leitura para tentar entendê-lo. Desisti! Preciso achar este outro lugar sem a ajuda divina. Esse compromisso assumi há algum tempo. Os orientais entendem que todo o caminho para a salvação é errático e precisa ser trilhado sozinho. Não há salvação fora dos passos que escolhemos. É neles que está a resposta. E Bauman me vem com esse tal outro lugar.

Os movimentos contemporâneos são estranhos: troca-se, quase sempre, o benefício da dúvida pelas certezas. Nossos lugares de ocupação são mais fixos e rigorosos do que nunca. As responsabilidades inerentes a esses lugares resumem-se a promover espasmos periódicos. Regurgitam-se velhos conceitos sem, essencialmente, mudar o rumo das prosas. As esquinas e manhãs seguintes são rigorosamente iguais não importa quantas vezes passamos por seus espasmos. Será esse o sentido que Bauman quis dar a esse tal outro lugar?

Não importa! Se a leitura é aleatória, posso usar a ideia para expressar o que penso. Esse outro lugar precisa ser ali adiante; ali onde não há esquinas pré-fabricadas com soluções postas em prateleiras para consumo; ali onde as manhãs seguintes não respondem a cronologias, são manhãs kairológicas, daquelas que fazem sentido não importa a que tempo nem quantos a viveram num dado momento. Esse outro lugar está no vazio das ações não instituídas, das atitudes desprovidas de legitimidade. Está no fardo que a história impõe à paciência.

Enxergar em 2011 uma cara de outro lugar é um desafio e tanto. É preciso fazer, para isso, que suas manhãs seguintes não sejam devoradas pelo Deus Chronos e suas próximas esquinas estruturem-se pelo potencial de situação a cada instante. O vazio é sempre o lugar que não ocupamos; por que então ocupar sempre o mesmo lugar? Não perguntem a Bauman. Ele já tem suas respostas. Perguntem a si mesmos sempre que tiverem oportunidade.

domingo, 21 de novembro de 2010

Educação e Ciência, a especialidade e as faces das coisas

O especialista que conhece um único tema a fundo e esquece o resto do mundo vai ser gradativamente substituído pelo jovem que não se contenta em enxergar apenas uma face das coisas.
Renata Spers, pesquisadora do Programa de Estudos do Futuro da Fundação Instituto de Administração da USP, refere-se ao mundo do trabalho num futuro próximo. Significa dizer que uma só pessoa terá de transitar por áreas distintas no que tange à formação para dar conta de assumir as responsabilidades inerentes a esse cenário, de hierarquias flexíveis e redes de produção. Entende-se que as empresas não serão mais caracterizadas por grandes corporações, mas por organizações modulares e interligadas por processos produtivos disponíveis circunstancialmente em projetos comuns.

Neste ambiente, os "profissionais" serão reconhecidos pela multiplicidade de competências desenvolvidas concomitantemente às atividades produtivas, pelo uso da informatização para agilizar a produção e evitar deslocamentos desnecessários, e pela preocupação com a saúde e com o meio ambiente. A inquietude será uma necessidade, na medida em que os salários estarão associados a serviços prestados e não ao tempo dedicado ao trabalho, o emprego será um termo em desuso, a aposentadoria estará fora de moda e as escolhas profissionais não estarão associadas apenas ao retorno financeiro. Os locais de trabalho serão tão fluidos quanto os processos de produção e as decisões relativas a esses processos, descentralizadas.

Há muito mais a prospectar. Diriam os mais céticos, a sofismar. Por mais absurdas que pareçam as questões aqui apontadas, todas estão sendo estudadas, submetidas ao método científico de tese e antítese. Admita-se a possibilidade de os argumentos não conferirem totalmente com o futuro que se avizinha. Entretanto, pensar no que será é reconhecer o que já é. Não há adivinhações. O mundo do trabalho parcamente sinalizado aqui já pode ser visto em desenvolvimento. As novas gerações irão se encarregar de efetivá-lo. Com mais ou menos grau de pertinência quanto a itinerários específicos, o cenário será bem parecido com o que descrevemos. A não ser que enxerguemos outras faces.

As faces das coisas
Ressalvas sejam feitas: as tendências no mundo do trabalho trazem argumentos sempre focados na dinâmica dos negócios e das relações de produção. A visão costuma ser redutora, uma vez que o contexto sociocultural não é considerado em suas dimensões. O cenário prospectado associa-se a um possível disponível. Revelado sob a face das relações de produção, o futuro do trabalho é "projetado" em cima das referências que constituem os ativos da economia. Dizendo de outro modo: as lógicas que determinam os modelos de negócio, que modelam os processos produtivos e seus resultados só entram em questão quando não põem em crise os fluxos já estabelecidos.

As faces das coisas carecem de curiosidade, de inquietude. Não há feições prontas; elas expressam o que somos capazes de criar, de mobilizar. Em termos científicos, a prospecção de cenários tem por base a análise de variáveis cuja combinação permite aferições de possibilidade. Os estudos neste campo levam em conta as lógicas presentes na construção das variáveis até o momento da análise, mas raramente propõem variáveis estruturantes de outros possíveis disponíveis. Sendo assim, os modelos econômicos que regem as bases sobre as quais se apontam as tendências são, considera-se, invariantes.

Trazendo o tema para o mundo acadêmico, as similaridades de prospecção estarrecem. As lógicas da estrutura acadêmica, por exemplo, inscrevem-se numa tradição disciplinar sobre as quais os ativos do conhecimento ganham valor. Em termos econômicos, a titulação é mais importante que o conhecimento; por outra, a titulação é o atestado do conhecimento. Sem generalizações, o fato é que esta lógica valoriza a especialidade pelo aprofundamento de saberes num reduzido campo do conhecimento humano. É de se pensar se o problema talvez não esteja na organização do processo de construção do conhecimento.


Em setembro de 2009, a UnB promoveu durante a IX Semana de Extensão, o seminário Reflexos sobre os desafios da universidade no mundo globalizado e na sociedade do conhecimento. Professor Emérito da UNICAMP, o matemático Ubiratan D'Ambrosio fala sobre o método disciplinar e os problemas de interpretação decorrentes em relação às estruturas. Seu questionamento final, a respeito de como superar as "gaiolas" disciplinares, nos oferece possibilidades de caminhos e perspectivas.

Superar as disciplinas?
Disciplinas escolares são hoje confundidas com disciplinas científicas. Os modelos de organização curricular decorrentes desta lógica privilegiam os conteúdos considerados essenciais para o aprendizado em função de recortes, digamos, arbitrários. É pelo professor que se estrutura o conhecimento. Mas a Ciência não se fragmentou em disciplinas para subdividir categorias de conteúdos. As disciplinas científicas organizam-se em função de objetos e métodos comuns, identificam as faces das coisas que as ilustram; não determinam o que delas se deve apreender nem em que fase da vida.

Sendo assim, a organização da aprendizagem por disciplinas científicas não pressupõe uma estrutura de conteúdos recortados por si mesmos, sem objetivos relacionados aos contextos da aprendizagem. O sentido praxeomórfico desse dilema está no uso momentâneo dos conteúdos para instrumentos de aferição quanto ao que se pôde guardar na memória num dado espaço de tempo. Os avanços quanto aos processos de ensino e aprendizagem, até agora, não provocaram transformações significativas no modo como tendemos a fazer as coisas e como as fazemos costumeiramente.

Não há o que superar quanto aos sistemas de organização do conhecimento propostos pela Ciência. Pelo menos no que diz respeito aos processos de aprendizagem. A Ciência não é o aprendizado. Seus conhecimentos são, no máximo, recursos para a aprendizagem. É a organização curricular que deve estimular a mobilização dos recursos oferecidos pela Ciência em função de ações que nos levem aos possíveis disponíveis num dado momento de nossa vida. E para que tenhamos acesso aos recursos da Ciência, seu sistema de classificação por disciplina dá conta.

Os especialistas em educação alertam há tempos sobre o problema da fragmentação disciplinar. Contudo, a face desse problema ainda é a Ciência e seus métodos. Com franqueza, não há como nem porque depositar sobre os ombros de uma forma de conhecimento toda a culpa pela inoperância do sistema educacional. Curiosidade e inquietude também se ensinam. As disciplinas escolares viraram um porto seguro para os que "conhecem um único tema a fundo". Talvez por isso os jovens estejam buscando outras formas de "enxergar as faces das coisas". Eles estão mais sintonizados com o presente e, portanto, com o devir.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Convergência de recursos e os possíveis disponíveis para o Jornalismo

Pedro Kuhnen (foto), da RBS de Florianópolis, falava na "Noite de Comunicação" sobre as potencialidades do twitter para o Jornalismo. Conversa informal, puxada a partir de ideias levantadas por trabalho monográfico em que ele, Pedro, é fonte de entrevista. Falávamos sobre a possibilidade de os posts no twitter servirem de pauta para os jornalistas e de "manchete" para notícias personalizadas, encontradas nos diversos pontos da rede e socializadas em função de interesses e escolhas individuais. Não houve tempo para aprofundamento. A conversa foi rápida mas inspiradora. Tentemos estendê-la.

Na sociedade contemporânea, já dissemos, o lugar do Jornalismo pede novos espaçamentos cognitivos, estéticos e ético-morais. O que isso significa? Alertam os especialistas que formataram a proposta para as novas diretrizes curriculares em debate: os valores democráticos na atualidade fundamentam-se pelas "armas da linguagem" e através dos "suportes tecnológicos". E é pelo Jornalismo, dizem, que os sujeitos agem discursivamente no e sobre o mundo. Neste sentido, cumpre à atividade assumir "uma linguagem narrativa e uma eficácia argumentativa" no espaço público. Até aqui, nada de novo. Não há outros possíveis disponíveis.

Novos espaçamentos cognitivos, no entanto, situam o Jornalismo como ação mediadora num contexto hoje inusitado. Professores da Universidade de Columbia já falam em formar gestores de comunidades sociais. A concepção aponta para a possibilidade de um exercício intelectual de interpretação do mundo dentro das próprias redes. Uma ação para além de capacidades discursivas, portanto. Jornalistas passarão a ser também os meios, não só arautos de mensagens informativas. Nessa perspectiva, as redes sociais são entendidas como "grande manancial do conhecimento" e a produção de notícias tende a ser mais colaborativa. Jornalistas são percebidos como "curadores de notícias", aglutinadores de informações.

"Mídias interativas" têm sido ferramenta para simulações de aprendizagem nas mais diversas áreas. Também no Jornalismo. Jogos eletrônicos baseados em conflitos mundiais adotam a atividade jornalística como mote; um reforço à ideia de que os valores democráticos necessitam de "guardiões". O importante, contudo, é que estes jogos inscrevem o exercício intelectual de interpretação do mundo na capacidade de mobilização de recursos para a produção de textos sobre temáticas específicas. Não a circunscrevem, portanto, à simples capacidade discursiva.

Diante de um quadro cujas possibilidades ganham exponencial abertura, os espaçamentos estéticos modificam-se de maneira relevante. Fala-se muito hoje em convergência. Os argumentos dão ênfase às mídias, aos modelos econômicos sobre os quais as informações são produzidas e através das quais circulam; reforçam também a circularidade discursiva a respeito dos "fenômenos" midiatizados numa espiral que recria aspectos do cotidiano e inspira interpretações descontextualizadas, afastadas da origem. A concepção de convergência, portanto, diz respeito aos meios expressivos em razão dos meios econômicos.

Novas formas de expressão surgem de habilidades relacionadas à convergência de 
recursos. O ofício jornalístico também merece atenção quanto à sua arte expressiva.

Há outras formas de perceber a convergência para além da miopia a serviço de uma economia que congrega entretenimento, informação e publicidade. Jornalistas têm à disposição ferramentas que reúnem todos os recursos técnicos necessários para, minimamente, exercer a atividade. Não apenas no que tange à produção, mas também quanto à veiculação de informações consideradas relevantes. Essa convergência de recursos talvez seja mais importante que a aglutinação de meios expressivos. Isso porque inverte a lógica do processo: da concentração de meios em relação a diversidade de recursos para a concentração de recursos em relação a diversidade de meios. Julgam alguns estudiosos que as notícias serão personalizadas no futuro; reconheçamos, não tão distante assim.

Espaçamentos ético-morais merecem também reavaliação. Informações instantâneas não nos chegam mais ao vivo; elas estão online. Essa característica é significativa uma vez que tais informações compõem uma espécie de inteligência coletiva, estão organizadas numa prótese de memória sempre disponível quando necessária; não são mais fugazes, não se perdem no tempo. A instantaneidade não pode, contudo, ser relacionada simplesmente aos discursos imediatos sobre acontecimentos, no caso do Jornalismo. Estar online é também estar nesse mundo instantâneo, é também fazer parte dele num contexto político de defesa dos valores democráticos.

Vamos esclarecer: a defesa dos valores democráticos aqui não é simplesmente assumir um discurso de contrapoderes. Se as redes sociais são a bola da vez e a convergência de recursos abre caminho para múltiplos canais de mercado e modos de produção, os valores democráticos inscrevem-se na comunicação como locus de produção cultural, de relações sociais e de desenvolvimento humano. Não haverá mais espaço para meros prestadores de serviço e construtores de discurso preocupados em mediar fontes. O exercício intelectual neste contexto não comporta mais estereótipos baseados num suposto poder de autoridade e legitimidade quanto aos dizeres sobre o mundo.

Se o Jornalismo se pretende professoral, no sentido de ter no cerne de sua atividade "habilidades pedagógicas na prestação de serviços públicos", como afirmam as novas diretrizes em debate; se o Jornalismo precisa assumir a defesa da cidadania pelo viés do esclarecimento, colocando-se como fiscal dos direitos alheios; se o Jornalismo ainda põe-se a "intermediar" influências, pode-se esperar que procure fazê-lo ajudando a criar canais de comunicação e não apenas assumindo discursos esterotipados sobre os possíveis disponíveis à sociedade. O uso do twitter, tema do início de nossa conversa, é um mero detalhe.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Ser professor

O termo Ensino não é sinônimo de Educação. Tampouco complemento.
Ensinar é atividade educativa; mas educar não é apenas ensinar.
Educar é também conviver; dividir as complexidades do mundo.
Por divisão entenda-se generosidade de troca.
Educar é também criar; gerar oportunidades de descoberta.
Por descobrir estamos a todo o momento.
Professor é, antes de tudo, educador. É amante de descobertas.
Descobre-se, ele mesmo, na imensidão das incertezas.
Ao orientar-se, orienta; ao experimentar-se, experimenta;
ao aprender, ensina que o caminho para a aprendizagem é próprio.
Professor é, antes de mais nada, um estado permanente do educar.
Em si mesmo, transborda; não cabe em um único ser.
É um ser coletivo, que abarca. Funda-se no princípio do desconhecido.
Sabe que o ato de conhecer é fluido, circunstancial, tem prazo de validade.
Por isso mesmo está em permanente processo. Ele está em ser.
Ser professor é dividir-se enquanto indivíduo e ser com os outros o que não se pode ser sozinho.